sábado, 22 de outubro de 2016

Vêm aí os russos?



Alguma imprensa internacional vem a alertar para a escalada de tensão Leste-Oeste, potenciada pelos conflitos na Ucrânia e na Síria. Alguns falam mesmo da possibilidade de estarmos nas vésperas de um novo confronto de dimensão global. Terá isto algum sentido? Com o fim e a implosão da União Soviética, países que viviam sob a tutela de Moscovo e algumas Repúblicas da antiga URSS procuraram estruturar sociedades políticas de matriz similar à dos países democráticos da Europa "de cá". Diga-se que isso correspondeu a um evidente desejo das respetivas populações, ciosas de uma soberania que lhes fora "raptada" desde o fim da Segunda Guerra mundial. A posterior entrada de muitos desses Estados para a UE e a sua inclusão na NATO, em ambos os casos aproveitando a "janela de oportunidade" dada pela debilidade conjuntural de Moscovo, levou ambas as organizações até junto da fronteira russa.

Atravessada por fragilidades de vária natureza - económicas, tecnológicas, militares, demográficas, etc. - que afetavam o estatuto a que se achava com direito, a Rússia viu-se mergulhada num cenário de impotência, que se somava ao sentimento de humilhação histórica pela derrota na Guerra Fria. Neste contexto, a tentativa de alguns de modificar a posição da Ucrânia, vista pela Rússia como o último bastião da "buffer zone" que a separava do ocidente, seria sempre inaceitável. O sonho russo era conservar em Kiev um poder "amigo" que, em especial, não colocasse minimamente em causa o seu livre acesso naval ao mar Negro e ao Mediterrâneo. A mudança "de lado" da Ucrânia não podia assim ser aceite pela Rússia, que deu força militar às populações russófilas no leste do país e aproveitou para tomar a Crimeia, área chave para o poder naval meridional russo. O poder em Kiev pode ser pró-ocidental, mas a Rússia provou conseguir instabilizar o país.

O mal-estar russo criou o caldo de cultura política interna para a emergência de um "cesarismo" na figura de Vladimir Putin, num registo nacionalista autoritário, tendo como objetivo a restauração de algum poder global de Moscovo. Como resposta aos avanços europeus da NATO, que não esteve em condições de travar, a Rússia colocou em questão os equilíbrios em matéria de forças convencionais acordados no fim da Guerra Fria e assume agora iniciativas destinadas a forçar um novo equilíbrio de poder, de que a postura na Síria é uma componente essencial. Moscovo parece aguardar pelo novo poder americano para dialogar olhos nos olhos com a única potência de que se considera (de novo) rival. Até lá, mexe algumas peças do xadrez militar para aumentar as suas possibilidades no tabuleiro estratégico.

Vêm ai os russos? Não me parece, mas a solidão decisória de Putin não garante a prevalência da racionalidade sobre algum possível aventureirismo.

*EMBAIXADOR



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