O conceito de Soberania surgiu entre os séculos XVI e XVII como uma
noção de duplo sentido: Por um lado, os governantes são soberanos,
porque não reconhecem iguais a nível interno; por outro lado, são
soberanos, porque não reconhecem superiores a nível externo
(internacional).
Julgando a partir deste simples duplo sentido do
conceito de “soberania”, no conflito que contrapõe o Governo do
Presidente Filipe Nyusi e o maior partido de oposição, a Renamo, o
primeiro (o Governo de Filipe Nyusi) estaria justificado ao rejeitar as
pré-condições impostas pelo partido Renamo e pelo seu presidente, Afonso
Dhlakama, relativas à presença de mediadores – a Igreja Católica, o
Presidente da África do Sul, Jacob Zuma, e a União Europeia -, para o
reinício do diálogo político que visa pôr fim às hostilidades militares
no País.
No entanto, alguns estudiosos de assuntos políticos,
como Brown C. e Ainley K. (2012), sugerem a existência de uma distinção
entre soberania enquanto estatuto jurídico e soberania enquanto conceito
político. Na primeira asserção, dizer que um Estado é soberano é fazer
um julgamento sobre a sua posição jurídica no mundo, nomeadamente, que
não reconhece qualquer superior legítimo; que não é, por exemplo, uma
colónia. Na segunda asserção, dizer que um Estado é soberano implica,
geralmente, que possui um certo tipo de capacidades e competências para
agir de determinadas maneiras e executar determinadas tarefas. A
diferença essencial entre estes dois significados de soberania é que o
primeiro é incondicional – os Estados ou são, ou não são, legitimamente
soberanos -, enquanto o segundo envolve claramente uma questão de grau,
isto é, um conjunto de poderes e capacidades que podem aumentar ou
diminuir.
Pode parecer que esta distinção não tenha grande
importância se se pensar (como faz o vice-Ministro moçambicano da
Defesa, Patrício José) que a função principal de um Estado, a nível
interno, é o estabelecimento da lei e da ordem. No entanto, se se
aceitar que entre as funções de um Estado soberano estão a realização de
certo tipo de objectivos sociais e uma boa regulação, se não uma gestão
efectiva, da economia, a situação muda muito drasticamente. E, como se
depreende da Constituição da República de Moçambique (CRM), um dos
“objectivos fundamentais” do Estado moçambicano é, precisamente, “a
edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar
material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos” (Art. 11, c).
De facto, é no contexto da exigência da realização de certo tipo de
objectivos sociais e uma boa regulação que todos os países do mundo –
inclusive os mais industrializados – aceitam e procuram a cooperação
externa e a colaboração de todos os segmentos sociais. Na “nova ordem
mundial”, concebida pelos principais actores da Segunda Guerra Mundial,
o Primeiro Ministro britânico, Winston Churchill, e o Presidente
americano, Franklin Roosevelt, a cooperação (sem prejudicar o seu ideal
da reciprocidade) foi, gradualmente, caracterizando-se pelo fluxo
unidirecional dos países ricos para os países pobres, tanto das ideias
como dos recursos, simplesmente porque sempre se acreditou que, nos
países do hemisfério sul, a causa fundamental do subdesenvolvimento era a
falta das infraestruturas e de fortes instituições
político-administrativas.
Ora, depois de Filipe Nyusi ter
afirmado solenemente, no seu discurso de tomada de posse, que assumia as
suas “funções como Presidente de todos os moçambicanos, disposto e
disponível a escutar todos os sectores da opinião pública”, parece-me
muito ridículo que ele e o seu Governo continuem a assistir
impavidamente o cenário dos mais de 11.000 moçambicanos condenados a
viver no Malawi na condição de refugiados; os milhares de deslocados que
vagabundeiam dum esconderijo para o outro a procura de um lugar seguro;
que o Governo continue a endurecer os corações diante da morte
violenta, sem digna sepultura, de um número desconhecido de jovens nas
estradas e matas de Moçambique, simplesmente porque as pré-condições
colocadas pelo líder da Renamo, para a retomada do diálogo político,
representam um atentado à soberania.
Existe, evidentemente, uma
forte dose de hipocrisia, da parte do Governo liderado por Filipe
Jacinto Nyusi, quando envida esforços colossais para tutelar o princípio
de “não ingerência nos assuntos internos” (da parte da vizinha África
do Sul e da União Europeia) só quando se trata da mediação no diálogo
político com a Renamo e, para todos os outros aspectos da soberania
nacional as portas ficam escancaradas para a ingerência quer por parte
da vizinha África do Sul como por parte da União Europeia. De facto, o
Governo da Frelimo reúne-se, anualmente, com os representantes da União
Europeia para rogar o financiamento do orçamento do Estado, quer em
forma de donativos ou em outras formas de “transfusão” e, o mesmo
Governo, mostra-se, pelo menos a nível formal, disposto a satisfazer as
condições impostas pelos doadores.
Quanto à vizinha África do
Sul, só quem não quer não sabe que a economia da nossa “Pátria amada” é
fortemente dependente da economia sul-africana; que o nosso País é um
“mercado permanentemente aberto” para todo o tipo de produtos, quer
industriais como agrícolas sul-africanos; que a África do Sul absolve
também a mão-de-obra moçambicana (estima-se, de facto, em 43.000
moçambicanos que trabalham na indústria mineira na África do Sul, e
12.000 que trabalham nos campos agrícolas; sem mencionar os
“mukheristas” que legal ou ilegalmente atravessam as fronteiras para
fazer compras na África do Sul). Além de tudo o que até aqui foi dito, o
capital sul-africano está massivamente presente nos projectos de
desenvolvimento em todo o País e, uma parte significativa dos
dirigentes políticos moçambicanos e suas famílias fazem compras e passam
tempos livres na África do Sul. Mas, estranhamente, nenhuma destas
ingerências massivas é vista pelo Governo do Presidente Nyusi como
atentado à soberania. O atentado à soberania é susceptível só quando se
trata da mediação no diálogo político. Tamanha hipocrisia!
Quanto à relutância que o Governo de Nyusi manifesta em relação ao
envolvimento da Igreja Católica, além de ser absurda (considerando que a
Igreja Católica esteve envolvida nas negociações que, em 1992, puseram
fim a guerra dos 16 anos), é também contrária ao espírito da CRM que, no
ponto 4 do Art. 12, afirma que “o Estado reconhece e valoriza as
actividades das confissões religiosas visando promover um clima de
entendimento, tolerância, paz e o reforço da unidade nacional, o
bem-estar espiritual e material dos cidadãos e o desenvolvimento
económico e social”.
A Igreja não deve, portanto, ser bem-vinda
só quando, em ocasiões das principais festas litúrgicas, ela faculta
visibilidade aos representantes máximos do regime que – passando por
cristãos exemplares – fazem passar mensagens políticas tendenciosas e
incutem nas mentes dos menos informados a ideia de que a Igreja é aliada
do regime. A Igreja, consciente de que no Mistério da Paixão, Morte e
Ressurreição de Cristo, Deus tomou um corpo humano e transformou-o num
novo corpo espiritual, mantendo, todavia, as suas anteriores
propriedades, assume como sua missão e responsabilidade de nutrir e
promover o “clima de entendimento, tolerância e paz” entre os homens,
onde quer que esteja. E foi dentro deste espírito que, depois do
humilhante cerco à residência de Afonso Dhlakama na cidade da Beira, no
dia 9 de Outubro de 2015, os bispos da Conferência Episcopal de
Moçambique, tendo percebido que o diferendo entre o Governo e a Renamo
estava a exasperar-se, tomaram a iniciativa de oferecer aos dois
beligerantes a sua colaboração – tutelada pela Constituição - na busca
do entendimento entre as partes.
Quando na primeira semana de
Março, o Presidente Nyusi nomeou Jacinto Veloso, Maria Benvinda Levi e
Alves Muteque, e investiu-lhes com poderes, não para a retomada do
dialogo político com a Renamo, mas com simples mandato de preparar um
encontro entre o Presidente da República e o Líder da Renamo, tornou-se
evidente que o partido no poder estava ainda decidido a hipotecar, mais
uma fez, o futuro de Moçambique.
Atendendo e considerando que,
depois das duas descaradas tentativas de eliminar Dhlakama fisicamente, e
o cerco da sua residência na Beira, ele abandonou (e o Governo de Nyusi
o sabe) a ideia de ultrapassar o diferendo que resultou das eleições de
2014 através de um simples “gentlemen agreement” (acordo de
cavalheiros), a criação de um grupo para preparar o encontro
Nyusi-Dhlakama é, evidentemente, um gesto maquiavélico que visa ganhar
tempo e preparar um possível pós-Dhlakama.
O tempo que se
ganha é utilizado em dois convergentes projectos: em primeiro lugar, é
utilizado na materialização do persistente plano de assassinar o líder
da Renamo e, em segundo lugar, é necessário aos ideólogos “analistas”
políticos do regime que devem fazer o trabalho da “lavagem do cérebro”
da opinião pública: estes, em vez de discutir a pertinência ou
impertinência das pré-condições colocadas por Dhlakama e pela Renamo,
desdobram-se a inculcar nas cabeças dos moçambicanos que o País continua
em estado de guerra porque Dhlakama não aceita o convite do Presidente
da República para dialogar – sem, todavia, falar das razões que o levam
a não aceitar.
O que mais preocupa é que o principal alvo da
política maquiavélica do Governo do Presidente Nyusi não é nem Dhlakama
nem a Renamo, é sobretudo a democracia. Dhlakama é apenas um obstáculo a
ultrapassar, mas o coup de grace é a democracia.
Para que a
morte da democracia não seja violenta, estão já em curso duas acções
anestésicas: por um lado – como já o dissemos – já foi lançado o
trabalho da formação duma opinião pública segundo a qual o único
responsável pela não retomada do diálogo político é Afonso Dhlakama e,
espera-se que a mesma propaganda sirva para preparar o partido Renamo
para aceitar um negociado INCONDICIONAL, no período sucessivo ao
assassinato do seu Presidente.
A formação da consciência pública
é tarefa de todos os altos dirigentes do partido porque, no partido,
todos são megafones de uma única voz de comando. Os discursos
tendenciosos proferidos pelo Secretário Geral do partido, Eliseu
Machava, nas suas digressão pelas Províncias, são repetidos pelos
Governadores nos distritos da própria jurisdição, e as nuances desses
mesmos discursos estão também presentes nas alocuções feitas nas
universidades, em ocasiões das inaugurações do ano académico, ou nas
Igrejas, em ocasião das celebrações litúrgicas. E, por fim, são
repetidos por “todo o povo” nas “marchas de repúdio” da guerra,
organizadas pelas instituições do partido ou pelas instituições públicas
controladas pelo partido.
Enquanto a hipocrisia da soberania
mistifica o percurso rumo ao totalitarismo, a morte da democracia poderá
obrigar os moçambicanos a fazer uma verdadeira escolha entre viver como
cabritos puxados pelas cordas ou como homens livres.
Alfredo Manhiça
Cristiano Matsinhe Por vezes fico com a impressão de que escondemo-nos atras de jargões, para endurecer posições quase indefensáveis.
Carlos Trocado-Ferreira ... muito bom, Professor. Parabéns por mais um excelente texto.
Anastacio Tijo Sabes
frei O país está a braços com uma onda de crimes de sangue, não
esclarecidos, sendo o mais recente o assassinato, esta segunda-feira,
11, do procurador Marcelino Vilanculos, que tinha em mãos o processo de
raptos, envolvendo Danish Satar, extraditado
em Dezembro do ano passado da Itália para Maputo. À excepção do
assassinato do jornalista Carlos Cardoso, os outros crimes violentos
mediatizados, sobretudo as mortes do economista Siba Siba Macuacua, do
constitucionalista Giles Cistac e do membro do Conselho Nacional de
Defesa e Segurança, ainda não foram esclarecidos. A Policia da República
de Moçambique diz estar a trabalhar em coordenação com a policia da
cidade de Maputo, no sentido de esclarecer este caso. Caro cidadão, como
interpreta a morte do procurador e de outras figuras ainda por
esclarecer?
Mondlane Dzowo Grande
lição. Infelizmente, o povo moçambicano parece não ter ainda a
capacidade de analisar a situação a partir da base. Ainda temos muitos
irmãos nossos que hipotecam as suas faculdades mentais, analíticas e
intelectuais em defesa dos interesses desmedidos
do governo do dia. Numa incansável missão de confundir a opinião
pública dia e noite andam de televisão em televisão, jornal em jornal
rádio em rádio difundido a ideia de responsabilização de quem diz que
aceita o diálogo pré condicionado. Os mesmos irmãos ovacionam o
escândalo flagrante da insuportável dívida EMATUM. Estes irmãos,
sinceramente são um grande perigo para a nação. Aliás, está dívida é
mais um exemplo da incoerência do nosso governo face a soberania. O
Presidente da Republica se não consegue se assumir como piloto da paz,
ouvindo o Conselho da sociedade civil, então se assume como presidente
do seu presidente de um grupinho de gente e demonstra com clareza que
está a serviço de um partido político.
Firmino Chinai Muito analítico o texto... pena que nem todos lê opiniões independente...
Calvino Cumbe Obrigado mente brilhante
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