domingo, 8 de maio de 2016

A CRISE MIGRATÓRIA NA EUROPA


Capitão-de-mar-e-guerra 
Manuel Amaral Mota

Migrantes e refugiados de África, do Médio Oriente e do sul da Ásia têm vindo a inundar a Europa, apresentando-se, assim, para os líderes e decisores políticos europeus como o seu maior desafio, desde o início da crise económica do velho continente.
A Organização Internacional para as Migrações (OIM)[1] já designou a Europa como o destino mais complexo para a migração irregular, e o Mediterrâneo como a passagem fronteiriça mais perigosa do mundo. Apesar do reconhecido desastre humanitário com crescentes perdas humanas, a resposta coletiva da União Europeia (UE) para o atual fluxo de migrantes continua a ser um improviso mal gerido. Os críticos mais acérrimos acusam a Europa de estar mais focada no bloqueio das suas fronteiras do que proteger os direitos dos migrantes e refugiados. Concomitantemente, partidos com tendências nacionalistas em muitos Estados-membros mostram-se preocupados com o possível e provável alastramento do terrorismo islâmico no continente. O certo é que ainda não está claro de que forma a Europa é capaz de implementar reformas estruturais duradouras para o asilo e a imigração que, de resto, não só não vai parar como vai aumentar.
A agitação política no Médio Oriente, em África e no Sul da Ásia está a remodelar as tendências migratórias na Europa. O número de deteções de passagens ilegais da fronteira da UE começaram a surgir, em 2011, quando milhares de tunisinos começaram a chegar à ilha italiana de Lampedusa, logo após o início da Primavera Árabe. Por outro lado, africanos subsarianos, que inicialmente haviam migrado para a Líbia, prosseguiram para a Europa na era pós-Khadafi. A onda mais recente de deteções, em números crescentes, ao longo das fronteiras marítimas da UE, são de origem síria, afegã e eritreia.
A OIM estima que mais de 460 mil imigrantes atravessaram a fronteira para a Europa, por via marítima, nos primeiros nove meses de 2015. Os sírios, que fogem da guerra civil que assola o seu país, constituem o maior grupo, perfazendo cerca de 39%. Afegãos, procurando escapar da guerra em curso com os rebeldes Talibã, representam cerca de 11% e os eritreus, fugindo de trabalhos forçados, uns 7%. Os restantes resultam da deterioração da segurança e da pobreza extrema no Iraque, Nigéria, Paquistão, Somália e Sudão.
Distinguir um migrante daquele que pede asilo e do refugiado nem sempre é um processo fácil de enquadrar no domínio das leis e convenções internacionais. A justa, adequada e correta caracterização e classificação do seu estatuto é crucial, pois para cada situação importam deveres, direitos e níveis de assistência diferentes, a coberto desses mesmos instrumentos legais.
Um requerente de asilo é definido como sendo uma pessoa que foge da perseguição ou do conflito e, portanto, procura proteção internacional ao abrigo da Convenção da ONU de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados; um refugiado é um requerente de asilo cujo pedido foi aprovado. No entanto, a ONU considera migrantes que fogem de guerras ou perseguições como sendo refugiados, mesmo antes de receberem oficialmente o direito ao asilo. Um migrante económico, pelo contrário, é uma pessoa cuja principal motivação para deixar o seu país de origem é apenas o benefício económico. A palavra “migrante” é vista como um termo genérico para todos os três grupos. Dito de outra forma, todos os refugiados são migrantes, mas nem todos os migrantes são refugiados.
A Europa está atualmente a assistir a um fenómeno de migração mista, em que os migrantes económicos e os requerentes de asilo viajam juntos, tornando a classificação do seu estatuto difícil, agravada pelos métodos inconsistentes, com o qual pedidos de asilo a membros da UE são aceites sem demora ou melhor avaliação.
Em 2012, 51% dos migrantes que entraram ilegalmente na UE fizeram-no através da Grécia. Esta tendência mudou em 2013, depois das autoridades gregas terem reforçado o controlo das suas fronteiras no âmbito da operação Aspida (“Escudo”, em português), que incluiu a construção de uma cerca de arame farpado na fronteira greco-turca. Mas, em julho de 2015, a Grécia voltou a ser o ponto de entrada preferencial, com a FRONTEX[2] relatando mais de 130 mil passagens ilegais, cinco vezes o número detetado no mesmo período do ano transato. Sírios e afegãos formaram, nos primeiros sete meses de 2015, a maior parte dos migrantes que viajaram da Turquia para a Grécia, principalmente para as ilhas gregas de Kos, Chios, Lesbos e Samos. Este aumento migratório, mais recente, coincidiu com a crise do país que acabou por derrubar o seu sistema bancário e o próprio governo.
A passagem do Mediterrâneo Central para conectar a Líbia à Itália foi a rota mais traficada para os migrantes, em 2014. A agência FRONTEX relatou um número superior a 170 mil passagens ilegais pelas fronteiras italianas. Em outubro de 2014, a operação Mare Nostrum, do governo italiano, creditada por salvar mais de 100 mil imigrantes, foi substituída pela operação Triton, da FRONTEX, uma operação de controlo de fronteira de menor escala e com um terço do orçamento operacional do Mare Nostrum. Em abril de 2015, os líderes da UE triplicaram o orçamento para a patrulha de fronteira no âmbito da Triton, cifrando-se nos 9 milhões de euros por mês, mas recusaram-se a alargar o seu âmbito para incluir busca e salvamento. Enquanto o número de travessias ilegais para a Itália, no primeiro semestre de 2015, se manteve elevado, num total ultrapassando 91 mil, o número crescente de mortes (ao longo desta rota, estimado pela OIM, em 2015, acima dos 2 mil) e a deterioração da segurança na Líbia tem obrigado muitos migrantes a procurarem caminhos alternativos para a Europa, através da Grécia e dos Balcãs. 90% dos migrantes que utilizaram essa rota, no primeiro semestre de 2015, são da Eritreia, Nigéria e África subsariana.
O número crescente de sírios e afegãos que viajam da Turquia e da Grécia, pela Macedônia e Sérvia, com destino à Hungria, tornaram este estado membro da UE na mais recente linha da frente da crise migratória na Europa. De janeiro a julho de 2015, a FRONTEX relatou mais de 102 mil travessias ilegais para a Hungria. Este aumento levou o primeiro-ministro, Viktor Orban, a ordenar o levantamento de uma cerca de arame farpado na fronteira com a Sérvia, como de resto é do conhecimento geral. Em abril de 2015, uma pesquisa de opinião pública constatou que 46% dos húngaros inquiridos não admite a entrada de qualquer requerente de asilo e, no passado mês de setembro, migrantes encalhados e impedidos de embarcar nos comboios com destinos a oeste, efetivamente, transformaram a estação de Keleti em Budapeste num autêntico campo de refugiados improvisado.
Nesse mesmo mês, os ministros da UE de vinte e três Estados-membros, incluindo Portugal, concordaram em realojar 120 mil migrantes – uma pequena fração das pessoas que procuram asilo na Europa. A Grécia e a Itália não são obrigados a realojar mais migrantes e a Dinamarca, a Irlanda e o Reino Unido estão isentos das políticas de asilo da UE, ao abrigo das disposições estabelecidas no Tratado de Lisboa, em 2009. Este plano foi aprovado apesar das objeções da República Checa, Hungria, Roménia e Eslováquia, e o acordo baseia-se num sistema de quotas e no princípio da voluntariedade. Alguns críticos argumentam, contudo, que esta medida anula efetivamente as quotas da livre circulação de pessoas e bens, à luz de Schengen, para os nacionais da UE que desejam reinstalar-se fora do seu país de origem.
Um plano de dez pontos sobre a migração, adotado pela UE, em abril 2015, inclui pedidos aos Estados-membros para um esforço sistemático e coletivo, no sentido de capturar e destruir navios utilizados pelos traficantes de seres humanos. No entanto, muitos defendem que esta opção não lida com as causas de raiz da migração: a pobreza e os conflitos em grandes áreas do Médio Oriente, de África e do Sul da Ásia, que obrigam muitos, sem recursos, a fugirem em busca de segurança, bem estar e uma vida melhor.
Em maio deste ano, Federica Mogherini[3], solicitou autorização ao Conselho de Segurança das Nações Unidas para o uso da força militar contra os traficantes de seres humanos e os seus navios, ao largo da costa da Líbia. O governo de unidade nacional da Líbia, internacionalmente reconhecido, prontamente rejeitou a proposta, e a Rússia, membro permanente do Conselho de Segurança, também sinalizou que iria vetar qualquer proposta que visava destruir os barcos dos traficantes. No passado mês de setembro, Mogherini anunciou planos para revisitar a questão, contando com o apoio do governo da Líbia e do Conselho de Segurança da ONU.
A resposta política dos países, empurrando os migrantes para fora ou encarcerando-os por longos períodos, é contra os próprios valores que a UE promove na proteção da vida humana e do direito ao asilo. Planos de quotas e operações navais podem ajudar os Estados-membros da UE a gerir melhor esta crise, mas especialistas alertam que estas propostas por si só não vão conter a onda de migrantes. Para isso, os líderes europeus devem enfrentar as causas profundas da migração, mediar um fim à guerra civil na Síria, restaurar a estabilidade na Líbia e incrementar a ajuda à África subsariana.
Não é um problema fácil de resolver e tem contornos impercetíveis ou pouco claros. O certo é que precisa de ser resolvido, nem que seja parcialmente para o bem das gerações futuras. Não sendo assim, as fronteiras europeias continuarão fechadas em clara demonstração de exclusão elitista, as cercas de arame farpado continuarão em pé, relembrando as dores da guerra fria, mantendo o desespero afastado da esperança, e os valores da Europa que norteiam a civilização ocidental continuarão a ser questionados. Em última análise, o que irá acontecer a essa civilização ocidental?
 
 *    Actualmente, presta serviço na Inspeção-Geral da Defesa Nacional.

[1] Organização intergovernamental dedicada à área das migrações.
[2]  FRONTEX – Agência da UE para a gestão integrada das suas fronteiras.
[3]  Alta Representante da UE para Política Externa e Segurança.

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