segunda-feira, 14 de março de 2016

República de mortos-vivos

Em Moçambique existem muitas repúblicas; pequenos feudos onde imperam leis que nada têm a ver com a legislação vigente e ou a Lei Mãe. São pequenos estados dentro de um estado-maior.
Exemplo, a República da Lixeira de Hulene. Ali há gente que rege-se por leis próprias. Há pessoas que não conhecem outras realidades senão aquela. Nasceram ali. Os pais também. Vivem do que a lixeira lhes dá. Parece mentira mas é verdade… se calhar é mesmo por isso que tarda a fechar aquele espaço que, como se sabe, já não tem capacidade para mais um balde de lixo.
Na presente edição, o domingo traz a história de uma outra República; um outro estado incrustado nas entranhas da cidade de Maputo. Trata-se do Cemitério de Lhanguene. Há anos que se diz que não tem mais espaço para realização de enterros mas, ao que tudo indica, a boa maneira moçambicana, consegue-se sempre uma nesga de terra para depositar mais um ente-querido.
Mas não é sobre o espaço – ou a falta do mesmo – que nos propomos discorrer; é sobre a República dos Vendedores que ali existe. Há ali uma pequena República com leis próprias de tal sorte que nem mesmo a administração do cemitério tem controlo sobre os membros dessa trupe. São os jovens que vendem água para que visita os túmulos ou realiza enterros. Vendem água em bidões de 2 a 25 litros. O cemitério não tem torneiras funcionais. A tubagem, consta, foi sabotada há séculos. Só mesmo aqueles jovens sabem como obter água.
O que se diz é que ali – tal como na Lixeira do Hulene -  há pessoas que nasceram ali; ou seja desde que vieram ao mundo a sua vida foi sendo construída dentro daquele perímetro. Convivem com a morte e o seu espectro de forma tão natural que impressionam a qualquer um. O cemitério é um lugar que inspira medos a muito boa gente. Há pessoas que evitam aquele local porque depois não consegue ter paz de espírito por muito tempo. A terra ali está impregnada de tristeza, de lágrimas de milhares de pessoas. O chão é olhado de forma quase sagrada. O silêncio que ali impera amedronta qualquer pessoa considerada normal… mas para aqueles jovens e crianças, o cemitério é o seu território. Ali eles se sentem livres e vivos. Aliás, impõem regras aos que ali chegam. O seu poder vai para além dos muros. Ali fora, onde se parqueiam viaturas também mandam. Ai de quem se atrever a recusar a ajuda dos mesmos; arrisca-se a encontrar o seu carro com riscos e ou com falta de algumas componentes…
Mas o negócio da água, que é parte mais visível daquela república, há outras coisas igualmente assustadoras: roubam-se vasos, peças em mármore e até as próprias lápides. Há ainda histórias de túmulos que foram abertos só para se tirarem bens como anéis, brincos, relógios  e mesmo roupas dos falecidos (não é por acaso que muitas famílias danificam as roupas com que enterram os seus mortos)! A falta de moral é tão grande quanto a vontade de ganhar dinheiro por todos os meios. Esse cenário repete-se também no Cemitério São Francisco Xavier, no centro da cidade. Ali, as jazidas familiares foram quase todas vandalizadas. Roubou-se tudo. Até caixões. No “Francisco Xavier” já foram neutralizados bandos de assaltantes que, depois de arrancarem carteiras, telefones e outros objectos aos transeuntes, refugiavam-se naquele espaço contando, naturalmente, com o medo que os cemitérios causam nas pessoas sobretudo a noite.
No Lhanguene, cemitério que nem sequer está vedado na zona que o separa da zona residencial do Bairro Luís Cabral as fragilidades são maiores. Ali também já foram reportados casos de assaltos… não é por acaso que a Força de Intervenção Rápida tem estado a dar o seu valoroso apoio na salvaguarda da integridade daquele espaço sagrado.
Moralismos à parte, não há dúvidas de que é preciso uma mão enérgica para se devolver a paz aos que ali repousam… ou era suposto porque também estes não têm paz. Há dezenas de famílias que perderam os restos mortais dos seus entes queridos por conta de exumações que são feitas à revelia dos que já ali depositaram familiares para novos enterros!
Não podemos perder de vista a mensagem que a anarquia instalada no Cemitério de Lhanguene pode transmitir aos mais novos; os nossos filhos podem pensar que é normal ver pessoas viverem nos cemitérios. Temos que ter a coragem da indignação e coragem de mudar as coisas.

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