domingo, 6 de março de 2016

O “bom senso” de Passos Coelho é um activo tóxico

OPINIÃO


Vamos lá seguir o conselho de Pedro Passos Coelho e usar o “bom senso” na avaliação do que está em causa com a contratação de Maria Luís Albuquerque pela Arrows Global.
1. O “bom senso” deve levar-nos a presumir que a ministra da Finanças, no exercício das suas funções, soube quem, quando e em que termos foramcomprados 300 milhões de euros de crédito mal parado do Banif. O “bom senso” deve recomendar-nos que a ministra não fez nenhum frete à empresa britânica no negócio entre uma das suas filiais em Portugal e um banco que então estava sob tutela de Maria Luís Albuquerque. O “bom senso” sugere-nos que a ex-ministra não foi contratada por ter olhos claros, mas talvez e principalmente por ter acumulado um conhecimento profundo do estado dos activos tóxicos em mãos da banca portuguesa e, por maioria de razão, na banca sob a égide do Estado. O “bom senso” diz-nos que a informação privilegiada é fundamental para se conseguirem negócios vantajosos – a própria Arrows o reconhece, ao sublinhar, no comunicado que noticiou da contratação, que Maria Luís Albuquerque desempenhou “altas funções” no Tesouro.
Chegados aqui percebe-se que Pedro Passos Coelho errou ao recomendar-nos “bom senso”. Porque ninguém no seu “bom senso” acreditará que, se houver um novo negócio entre a Arrows e a banca tutelada pelo Estado, a ministra não vai usar a informação que acumulou na esfera pública para a rentabilizar a favor do interesse privado. Qualquer pessoa minimamente sensata perceberá que, nessa ocasião, Maria Luís tratará de descarregar o seu conhecimento na mesa das negociações para que o seu novo patrão ganhe o máximo que puder. E, por óbvia causalidade, para que o interesse público perca o máximo que puder perder. Se no exercício das suas funções no passado nada nos indicia a existência de favores, no futuro a ex-ministra estará numa insanável contradição: a deputada que representa a vontade dos seus eleitores usará o saber que acumulou como ministra para fazer valer os interesses do seu patrão britânico. Não, não é uma construção teórica mirabolante; é puro “bom senso”.
A evidência dos riscos políticos que esta realidade comporta deveria ter levado Pedro Passos Coelho a exigir o mínimo: se é legítimo que a sua ex-ministra queira dar um salto para a alta roda da finança internacional, não pode manter um pé em Londres e outro em Lisboa – mesmo não tendo funções executivas. Não pode transferir saberes, alguns sensíveis, sobre o valor real dos activos tóxicos do Novo Banco ou da Caixa Geral de Depósitos para a Arrows e ao mesmo tempo votar com ar sisudo no Parlamento decisões políticas que incidam sobre o sector financeiro. Tem de fazer uma opção. Se é verdade que, por exemplo, Manuela Ferreira Leite foi para o Santanderquando deixou de ser ministra e Carlos César aceitou um emprego de uma empresa com a qual tinha feito ajustes directos quando foi presidente do Governo Regional dos Açores, não é por isso que Maria Luís devia seguir o mesmo caminho. Um erro não se justifica com a existência de outros erros.
Passos teve neste caso a oportunidade de mostrar que é diferente. Mas preferiu manter calmas as águas fétidas da falta de transparência. Já não lhe basta ter percebido que a “geringonça” até funciona e o pode afastar do poder durante muito mais tempo do que inicialmente pensara; já não lhe chega ter de gerir um partido anódino, que tacteia entre a “libertação” da cidadania do Estado do passado e o regresso da social-democracia para o futuro. Impotente para contrariar o discurso do Governo, desgasta-se no vaivém ideológico com a recuperação de uma agenda política do centro-esquerda sem se sujeitar à autocrítica do passado. Pelo meio, decide projectar de si a imagem de um líder frouxo, incapaz de dar um murro na mesa para exigir transparência nas suas fileiras.
Passos, que foi ontem reeleito sem contestação, vai andar por aí sabendo que, neste país desmemoriado e habituado à cadência de escândalos, em breve Maria Luís poderá tornar-se a estrela que em tempos prometeu ser. Mas, a cada dia que passa, vai-se afastando dessa aura de líder que pensava pela sua cabeça, que falava grosso e que tinha ideias próprias para o país. Falta-lhe “bom senso” para perceber que hoje, em Portugal, há tolerância zero para lobistas como Miguel Relvas, para habilidosos dos negócios de bastidores como Dias Loureiro ou Armando Vara, ou para quem se dispõe a aplicar o seu saber extraído em altas funções do Estado por um salário generoso no final do mês enquanto mantém um pé no parlamento.
2 - Cavaco Silva vai sair de cena. Depois de quase 40 anos de vida pública e política, despede-se sem festejos e com muitas congratulações de alívio, da esquerda à direita. Na avaliação do seu percurso, Portugal deita-se no divã e encontra na sua figura austera e ríspida um belo bode expiatório para tudo o que correu mal. Ao fazê-lo, porém, vai ter de sublimar a culpa própria. Cavaco Silva não é uma criação da estratosfera. Foram os portugueses que o elegeram e reelegeram com maiorias expressivas. Foram os portugueses que legitimaram as impertinências da sua personalidade ou o seu reformismo, a sua intolerância perante a crítica ou o seu empenho na consolidação do Estado social, as suas birras mimadas ou os seus esforços na modernização da economia nos primeiros anos da integração europeia.
Cavaco vai sair de cena e com ele segue uma parte da ideia que os portugueses projectaram para o seu futuro. Cavaco errou vezes de mais, como os portugueses. O seu conservadorismo, a sua manha ambígua, a sua irritabilidade com minudências, o seu deslumbramento por um certo país novo-rico, a sua soberba, a sua sensibilidade social sempre tão próxima da caridade ou a atracção das obras faraónicas como ostentação de falsas riquezas são afinal características que o país lhe foi tolerando ao longo de décadas. Dizer agora mal quando se vai embora pode ter o efeito do chá verde no combate à ressaca. Mas, ao fazê-lo, estamos a dizer mal de tudo o que quisemos e fomos. Porque Cavaco foi sem dúvida o político mais português de Portugal deste tempo.
3. Marcelo vai entrar em cena. Com aparato, pompa e circunstância. Vai haver celebrações religiosas ecuménicas, concertos de rock e cerimónias descentralizadas. Depois de um presidente circunspecto é bom saber que há uma brisa mais ligeira, mais cosmopolita e mais afectiva a chegar a Belém. A sua ideia de alargar as cerimónias de tomada de posse ao Porto é a prova desse cosmopolitismo. Pela primeira vez alguém se despe da ideia provinciana de que Lisboa é o país e o resto é paisagem para abraçar a ideia de que todas as pessoas de todos os lugares fazem parte da comunidade nacional. Sim, é apenas um caso simbólico. Mas para que servem os símbolos senão para agregar afectos?

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