Lula da Silva foi um ícone político que construiu o seu poder com base na sua biografia. O nordestino fez da sua história de pobreza a alavanca para a mudança no Brasil. O operário-presidente cumpriu boa parte da promessa. Ter-se-á esquecido dela nos labirintos do poder?
De Garanhuns até Guarajá e daqui para Brasília, Lula da Silva é o protagonista de uma biografia capaz de alimentar a mais sentimental das novelas. O seu caminho até à presidência é lento, sinuoso, mas determinado. Foi adorado, idolatrado e odiado em doses iguais. Saiu em grande do Palácio da Alvorada. Mas a enxurrada da operação Lava-Jato ameaça arrastar o seu brilho na torrente da corrupção. Cinco momentos de uma vida intensa e improvável. Principalmente no Brasil.
13 de Março de 1979
A ditadura militar prometera abertura em 1977, mas a abertura estava a ir longe de mais. Principalmente no triângulo operário do Sul de São Paulo. Depois de organizar as primeiras greves, o sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo torna-se uma força que lidera a mudança política. Lula da Silva tem 35 anos e sabe como ninguém interpretar o significado da declaração do Presidente (e general) João Baptista Figueiredo, que revelara o “propósito inabalável” de avançar para a democracia. Chegara a São Paulo em 1952, na vaga de migrantes pobres atraída pela industrialização. Em 1966 vai trabalhar para a Indústria Vilares, da família do pioneiro da aviação Santos Dumont. O seu irmão mais velho, Frei Chico, militante comunista, aproxima-o da oposição. Chega à direcção do sindicato em 1972 e três anos depois apresenta-se de fato e gravata na condição de presidente. Mas o que era uma organização tutelada e dedicada à assistência dos metalúrgicos torna-se depressa numa poderosa máquina de mobilização. Em 1978 a fábrica de camiões Scania é paralisada. Em Março do ano seguinte, com a cidade de São Bernardo ocupada por um forte aparato militar, uma greve geral afronta a ditadura. No dia 13, no Estádio da Vila Euclides, os jornais e as televisões captam a imagem de Lula a discursar para mais de 80 mil operários. Lula será preso, mas por pouco tempo. Tinha nascido uma estrela. “Fui tratado como a coqueluche de toda a esquerda brasileira, de todos os sectores conservadores, de todos os liberais, etc.”, diria.
14 de Dezembro de 1989
No auge das greves, Lula pensa na criação de um partido operário. O seu poder era enorme. Em 1978 ajuda Fernando Henrique Cardoso (F.H.C.) a chegar ao Senado (suplente de Franco Montoro). A ideia de criação do PT começa por aí e em Fevereiro de 1980 o novo partido é apresentado em São Paulo. Era uma coligação de trostkistas, católicos progressistas, intelectuais de primeira linha como Sérgio Buarque de Hollanda (pai de Chico Buarque), protagonistas do activismo social como Paulo Freire, ou o camponês nordestino perseguido pela ditadura Manuel da Conceição. Lula começa a brilhar. Obtém mais de um milhão de votos nas estaduais de 1982, afirma-se na luta pelas Directas Já (eleição directa do Presidente), em 1986 é o deputado federal com mais votos em São Paulo (660 mil) e o PT elege no ano seguinte os seus primeiros perfeitos em grandes cidades – São Paulo e Porto Alegre. Nas primeiras presidenciais da era constitucional, em Novembro do ano seguinte, Lula supera oposicionistas históricos como Ulysses Magalhães e chega à segunda volta num confronto com Collor de Mello. No dia 12 de Dezembro, a candidatura de Collor põe a correr a notícia que Lula tinha oferecido dinheiro a uma sua antiga namorada, Miriam Cordeiro, para que abortasse. A notícia era falsa, mas a 14, no debate crucial com Collor na Globo, Lula aparece nervoso e hesitante. No dia seguinte, a estação sublinha o seu suor e escolhe os momentos de dificuldade de Lula – a Globo é uma ancestral inimiga de Lula. Collor ganharia com 35 milhões de votos contra 31 milhões de Lula.
4 de Outubro de 1998
Lula e o PT crescem com a democratização e com a destituição de Collor de Mello, mas esse reforço de poder não basta para travar a ascensão da estrela do centro-esquerda que conhecera de perto em 1978 – Fernando Henrique Cardoso. Lula desvalorizou o poder eleitoral do Plano Real, que F.H.C. lançara ainda na presidência de Itamar Franco (que substituíra Collor) – considerava-o o “cruzado dos ricos”. As classes populares, cansadas de viver com níveis de inflação que chegaram a ultrapassar os 1000% ao ano, pensavam o contrário. Fernando Henrique ganha à primeira volta e uma emenda constitucional permite-lhe recandidatar-se em 1998. Lula encabeça então uma frente de partidos de esquerda, mas, mais uma vez, perde. Terá percebido aí que a pose radical de feição sul-americana estava condenada a prazo num país que se normalizara económica e politicamente. Entre a privatização e o protesto sindical que provoca conflitos com a polícia na Bolsa do Rio de Janeiro em vésperas de eleições, os brasileiros preferem a primeira. F.H.C. volta a bater Lula à primeira volta por 53% contra 31,7%.
27 de Outubro de 2002
É difícil acreditar que um candidato presidencial derrotado três vezes possa ser vencedor à quarta. Mas foi isso que aconteceu em 2002. O fim da era F.H.C. tinha deixado um país melhor e mais moderno. O tempo era de pragmatismo, mais do que de promessas de transformação socialista. Lula emagrece, apara a barba e o cabelo, contrata “marqueteiros”, promete uma política financeira moderada e garante que a injustiça da desigualdade será a sua prioridade. Tinha nascido o “Lulinha paz e amor” que gerou uma extraordinária vaga de fundo no Brasil. Já não eram apenas as camadas pobres ou os operários a ouvir a sua mensagem: as classes médias começaram a acreditar na possibilidade de um país normal, de perfil europeu, sem cidades perigosas e inóspitas. Lula fez passar a sua mensagem. Na segunda volta das eleições, a 27 de Outubro de 2002, Lula é eleito com 60% dos votos. Nessa noite, dezenas de milhares de pessoas inundam a Avenida Paulista, em São Paulo, entre risos e lágrimas de comoção. O povo, diziam, tinha finalmente chegado ao poder.
16 de Março de 2016
Dois mandatos bem sucedidos na presidência reforçam o papel de Lula no PT. Ele é o líder incontestado, capaz de impor sem dificuldade a sua sucessora. Em 2010, Dilma garante a continuidade do PT no poder e Lula torna-se uma espécie de sombra. Entre conferências no país ou no estrangeiro e a gestão da sua fundação, tem tempo para observar os interesses partidários, carreiras e rumos políticos. Dilma, uma ex-gerrilheira, tolera-lhe os movimentos, mas não abdica da sua margem de manobra. O partido parecia unido. E precisava. As alterações do ciclo económico das matérias-primas começam a gripar a máquina exportadora do Brasil. A balança externa agrava-se, o desemprego sobe, os rendimentos congelam e os programas sociais abrandam. Dilma consegue fazer-se reeleger numa segunda volta, em 2014, mas por pouco. A crise e os estilhaços do caso Lava-Jato começavam a minar o PT. Figuras gradas do PT são presos. As suspeitas chegam a Lula e a Justiça abre-lhe um inquérito. O outrora todo-poderoso exemplo do sonho da esquerda fica em causa. Luta agora pela protecção de um ministério e admite ainda recandidatar-se em 2018. Só um milagre o permitirá. Mais do que um activo político, Lula é um fantasma da sua biografia.
EDITORIAL
No Brasil, sem limites para a desvergonha
No ano dos Olímpicos, disputa-se o perigoso jogo dos sem-vergonha. E ninguém se esquiva à competição.
Uns clamam “corruptos”, outros gritam “golpistas”. Mas ninguém age de forma inatacável no indecoroso circo que se apossou da vida política e institucional brasileira. Da Presidente aos juízes, tudo parece contaminado por um desnorte geral. A nomeação de Lula como ministro, nomeação essa que um juiz suspendeu, não pode ter outra justificação que não seja protegê-lo do juiz que ele não quer enfrentar ou de uma eventual ordem de prisão. Ninguém acredita que Dilma se tenha lembrado que lhe faltava um ministro no governo e que Lula era precisamente o indicado. Se ela acusa de golpistas os que querem derrubá-la, as armas que usa são idênticas. Esta nomeação era, sem qualquer máscara, um golpe. E na trincheira adversa, quem encontramos? Um juiz que, apoiante de Aécio Neves (adversário de Dilma nas eleições presidenciais), publica no seu Facebook mensagens a dizer “ajude a derrubar Dilma”; um outro juiz que divulga escutas telefónicas (entre Dilma e Lula) feitas duas horas depois de ele as ter mandado cancelar; e, por fim, um presidente da Câmara de Deputados que quer acelerar a impugnação de Dilma mas é ele mesmo arguido na Operação Lava-Jato. Haverá solução para isto? Uma solução que não passe pela desvergonha colectiva que, a pretexto da defesa das respectivas trincheiras políticas, está a dar do Brasil uma imagem inclassificável? Neste momento, sem tino nem nexo, todos parecem competir para ultrapassar o adversário (às vezes até o parceiro) em velhacarias. A radicalização dos respectivos apoiantes, nas ruas, é uma manobra perigosa que pode descambar em violência e numa espiral incontrolável de rancores. O Brasil que hoje se divide é o mesmo que se dividiu nas presidenciais, onde Dilma ganhou a Aécio. Mas esse Brasil, que agia com bom senso, vê-se agora toldado por mentiras cruzadas de gente pouco recomendável. Vai ser preciso sangue-frio para evitar o precipício.
“Carta aberta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
O agora ministro nomeado da Casa Civil, Luiz Inácio Lula da Silva, divulgou nesta quinta-feira (18) uma carta aberta em que, diante das acusações de que é alvo e do ápice da turbulência política, manifesta confiança na Justiça e, particularmente, no Supremo Tribunal Federal (STF). Um dia depois da divulgação de áudios em que classifica o STF como “acovardado”, além de proferir impropérios e palavrões contra instituições e personagens da República, Lula recorre aos oito anos da sua gestão na Presidência da República para tentar reverter o quadro.
“No meu governo, quando o Supremo Tribunal Federal considerou-se afrontado pela suspeita de que o seu então presidente teria sido vítima de escuta telefônica, não me perdi em considerações sobre a origem ou a veracidade das evidências apresentadas. Naquela ocasião, apresentei de pleno a resposta que me pareceu adequada para preservar a dignidade da Suprema Corte, e para que as suspeitas fossem livremente investigadas e se chegasse, assim, à verdade dos factos”, diz trecho da carta (leia a íntegra abaixo).
Alvo de liminares judiciais que impedem o uso das suas prerrogativas como ministro nomeado, Lula agora aposta no êxito da Advocacia-Geral da União para assegurar a sua posse na Casa Civil – a Polícia Federal acredita que Dilma e seu antecessor, numa das interceptações telefônicas autorizadas pelo juiz Sérgio Moro, combinam a formalização de um termo de posse que assegura status de ministro e, nessa condição, torna-o livre de um pedido de prisão expedido por Moro, por exemplo. Com foro privilegiado, como se sabe, autoridades como Lula e Dilma só podem ser processados ou presos por determinação do STF.
Lula está sob investigação e com pedido de prisão feito no âmbito da Operação Lava Jato, em inquérito que apura a posse de sítio por ele usado em Atibaia (SP) e um tríplex que, segundo a PF, foi comprado – como presente para o petista – por empresas envolvidas no esquema de corrupção descoberto na Petrobras. Lula nega ser o proprietário dos imóveis e se diz vítima de perseguição política.
Confira a íntegra do documento:
“Carta aberta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
Creio nas instituições democráticas, na relação independente e harmônica entre os Poderes da República, conforme estabelecido na Constituição Federal.
Dos membros do Poder Judiciário espero, como todos os brasileiros, isenção e firmeza para distribuir a Justiça e garantir o cumprimento da lei e o respeito inarredável ao estado de direito.
Creio também nos critérios da impessoalidade, imparcialidade e equilíbrio que norteiam os magistrados incumbidos desta nobre missão.
Por acreditar nas instituições e nas pessoas que as encarnam, recorri aoSupremo Tribunal Federal sempre que necessário, especialmente nestas últimas semanas, para garantir direitos e prerrogativas que não me alcançam exclusivamente, mas a cada cidadão e a toda a sociedade.
Nos oito anos em que exerci a presidência da República, por decisão soberana do povo – fonte primeira e insubstituível do exercício do poder nas democracias – tive oportunidade de demonstrar apreço e respeito pelo Judiciário.
Não o fiz apenas por palavras, mas mantendo uma relação cotidiana de respeito, diálogo e cooperação; na prática, que é o critério mais justo da verdade.
Em meu governo, quando o Supremo Tribunal Federal considerou-se afrontado pela suspeita de que seu então presidente teria sido vítima de escuta telefônica, não me perdi em considerações sobre a origem ou a veracidade das evidências apresentadas.
Naquela ocasião, apresentei de pleno a resposta que me pareceu adequada para preservar a dignidade da Suprema Corte, e para que as suspeitas fossem livremente investigadas e se chegasse, assim, à verdade dos fatos.
Agi daquela forma não apenas porque teriam sido expostas a intimidade e as opiniões dos interlocutores.
Agi por respeito à instituição do Judiciário e porque me pareceu também a atitude adequada diante das responsabilidades que me haviam sido confiadas pelo povo brasileiro.
Nas últimas semanas, como todos sabem, é a minha intimidade, de minha esposa e meus filhos, dos meus companheiros de trabalho que tem sido violentada por meio de vazamentos ilegais de informações que deveriam estar sob a guarda da Justiça.
Sob o manto de processos conhecidos primeiro pela imprensa e só depois pelos diretamente e legalmente interessados, foram praticados atos injustificáveis de violência contra minha pessoa e de minha família.
Nesta situação extrema, em que me foram subtraídos direitos fundamentais por agentes do estado, externei minha inconformidade em conversas pessoais, que jamais teriam ultrapassado os limites da confidencialidade, se não fossem expostas publicamente por uma decisão judicial que ofende a lei e o direito.
Não espero que ministros e ministras da Suprema Corte compartilhem minhas posições pessoais e políticas.
Mas não me conformo que, neste episódio, palavras extraídas ilegalmente de conversas pessoais, protegidas pelo Artigo 5º da Constituição, tornem-se objeto de juízos derrogatórios sobre meu caráter.
Não me conformo que se palavras ditas em particular sejam tratadas como ofensa pública, antes de se proceder a um exame imparcial, isento e corajoso do levantamento ilegal do sigilo das informações.
Não me conformo que o juízo personalíssimo de valor se sobreponha ao direito.
Não tive acesso a grandes estudos formais, como sabem os brasileiros. Não sou doutor, letrado, jurisconsulto. Mas sei, como todo ser humano, distinguir o certo do errado; o justo do injusto.
Os tristes e vergonhosos episódios das últimas semanas não me farão descrer da instituição do Poder Judiciário. Nem me farão perder a esperança no discernimento, no equilíbrio e no senso de proporção de ministros e ministras da Suprema Corte.
Justiça, simplesmente justiça, é o que espero, para mim e para todos, na vigência plena do estado de direito democrático.
Luiz Inácio Lula da Silva”
COMENTÁRIO
Lula e a negação de si mesmo
O homem que nos seus anos de luta dizia que os pobres iam para a cadeia e os ricos para o governo fez a sua opção de classe.
O que é feito daquele líder político que vindo da pobreza extrema do Nordeste conquistou o Brasil com a promessa de que “a esperança vence o medo”? O que é feito desse fenómeno de popularidade que naquela madrugada de 28 de Outubro de 2002 encheu as principais praças das cidades brasileiras com a crença de que, com ele no poder, todas as crianças teriam pão e leite todos os dias, que o Brasil enterraria, finalmente, as clivagens entre a casa grande e a senzala e garantiria a todos as mesmas oportunidades da cidadania plena? O que é feito do Presidente que tirou 42 milhões de brasileiros da pobreza, que alargou a classe média, que tornou os centros urbanos lugares habitáveis, que fez da outorga da dignidade aos mais pobres uma bandeira, que levou ao mundo a crença de que a esquerda estava de regresso às suas origens históricas, feitas de ideias progressistas e de esperança?
Luís Inácio Lula da Silva aceitou agora ser ministro. Com essa escolha criou para si um estatuto especial de imunidade perante a lei. E com esse estatuto desfez todo o seu legado político. Deixou de ser o que foi e, politicamente, passou a ser coisa nenhuma. Quem o viu fotografado de tez suada nos combates sindicais do final dos anos 70 em São Paulo, no vale do Jequitinhonha a proclamar o fim da pobreza ou, em 1999, na Marcha dos 100 mil, a pedir “ética na política”, olha para ele por estes dias e vê apenas uma figura patética empenhada na insensatez da sua desconstrução.
Lula não se imolou, apenas: afundou o governo de Dilma Rousseff e arrasou o crédito dessa máquina partidária transversal, criativa e poderosa que foi o PT. Se as suas explicações sobre o triplex do complexo de luxo de Guarujá pareciam erráticas e inconsistentes, a sua tentativa de escapar ao foro da procuradoria de São Paulo acaba por provar a sua incapacidade de se rever na pele de um cidadão igual aos outros. O Lula que criou a sua aura mitológica na luta contra os privilégios já não habita o território dos “fraquinhos” que o Estado teria de apoiar, dos sem terra, dos sem tecto ou simplesmente dos operários. Lula passou-se para o lado dos intocáveis que sempre combateu. Estatelou-se nas suas próprias contradições. Explodiu na banal apetência do poder. Tornou-se uma figura de plástico, um insulto para os milhões de pessoas que acreditaram nele, uma prova viva de que na política não há lugar para as crenças nos amanhãs que cantam.
O caminho da autodestruição de Lula como símbolo político não o afasta por completo do alcance da Justiça – José Dirceu, que ocupou exactamente o mesmo Ministério da Casa Civil que Lula se prepara para ocupar acabou condenado e preso pelo Supremo Tribunal Federal na sequência do caso do Mensalão. E fá-lo transportar o vírus da suspeição para o interior do Governo. No planalto de Brasília, Lula será visto não pelo que foi, mas pelo que se tornou: um político acossado que se refugia no Governo.
Dilma, que parecia resistir à interminável vaga de delações da Operação Lava-Jato, surge neste cenário como a principal vítima colateral. Já não é a primeira magistrada da República; ao acolher Lula tornou-se uma tarefeira ao serviço dos interesses do seu partido. A Presidente tornar-se-á na criatura sem espaço nem poder para disputar o protagonismo do seu criador, que certamente tenderá a acabar com as políticas de ajuste fiscal e a optar por medidas expansionistas que podem agravar o tumulto financeiro – os sinais dos mercados nos últimos dias são a esse propósito esclarecedores. E a oposição e o povo não deixarão de aumentar a pressão sobre um Governo em dificuldades. O serviço em bandeja de um pântano moral há-de agravar a intolerância e o radicalismo que ameaçam erodir ainda mais as instituições e a democracia brasileira.
Custa a perceber como pode o Brasil segurar em tantas pontas soltas e resgatar os consensos mínimos que fizeram a prosperidade do país entre o colapso de Collor de Mello e o segundo governo de Dilma. A delação de Delcídio do Amaral alarga ainda mais as suspeitas de corrupção, que envolvem agora Lula, o vice-presidente, um ministro, os presidentes do Senado e da Câmara de Deputados ou o líder do principal partido da oposição, Aécio Neves. Junte-se a isso a mais grave crise financeira das últimas décadas e perceba-se o grau de dificuldade que o Brasil atravessa. Uma dificuldade que não se supera apenas com os vastos recursos naturais ou com uma sociedade e uma economia dinâmicas. O problema maior do Brasil de hoje, já se sabia, é de natureza moral. E Lula da Silva, o profeta da ética, veio reforçá-lo. O homem que nos seus anos de luta dizia que os pobres iam para a cadeia e os ricos para o governo, fez a sua opção de classe. Décadas de promessas e de discursos a favor da igualdade de direitos e de oportunidades num dos países mais injustos do mundo tornaram-se de súbito numa sórdida mentira.
OPINIÃO
Brasil: um país irmão a ferro e fogo
Um pouco de justiça brasileira ao vivo...
“Fato é que enquanto milhares de famílias se viram lesadas, despojadas do sonho da casa própria, malgrado regular pagamento, o Ex-Presidente da República se viu contemplado com um triplex à beira da vistosa praia das Astúrias na cidade de Guarujá com direito a outras benesses, tais como: pagamento de reforma integral no imóvel para proporcionar mais bem estar a família, instalação de elevador privativo entre os três andares para evitar utilização das escadas, pagamento integral de móveis planejados na cozinha, área de serviço, dormitórios; enfim, em todos os ambientes da casa com a inserção, outrossim, de eletrodomésticos tudo às custas do generoso José Aldemário Pinheiro Filho, responsável direto pela OAS Empreendimentos SA…”
Este excerto da denúncia do Ministério Público num dos processos criminais em que são investigadas as actividades, rendimentos e património do ex-presidente Lula, tem uma resposta por parte do denunciado: o triplex continua em nome da construtora, nunca lhe foi vendido, embora lá tenha ido uma vez com a sua mulher Marisa e o filho Fábio Luiz Lula da Silva, “Lulinha”, que lá voltaram outra vez.
Segundo Lula, foram ver o apartamento mas o mesmo era pequeno e nunca o adquiriram, antes pelo contrá rio, pretendem a devolução do dinheiro com que tinham entrado para uma quota na cooperativa construtora do empreendimento. Certo é, também, que o triplex nunca foi vendido a ninguém, nem promovida a sua venda publicamente, que os vizinhos sempre ouviram dizer que era Lula quem ia para lá, que, na sequência da visita de Lula ao apartamento, foram feitas obras pela construtora de adaptação no valor de cerca de 80.000 euros e mesmo instalado um elevador. Os SMS trocados entre os responsáveis da construtora falam da obra da cozinha do “chefe” e da necessidade de marcar visita com a “Madame”. Mas o apartamento é de Lula ou não?
Para o ministério Público Federal, Lula recebeu-o da empresa construtora OAS no âmbito dos subornos da Petrobras, só se afastando do mesmo depois das denúncias na imprensa. Lula nega ser dono do imóvel e diz que anda “muito puto da vida, muito, muito zangado porque a falta de respeito e a cretinice comigo extrapolou”.
Já quanto à quinta em Atibaia, a mesma foi comprada por dois amigos de Lula, “para ele poder descansar”, segundo disseram. Mas segundo o Ministério Público Federal, os amigos são fachada e o sítio pertence a Lula da Silva que o utilizava como sendo seu. No circuito do dinheiro constata-se que as obras e o recheio foram pagos com dinheiro de envolvidos no esquema de corrupção da Petrobras. Parte dos móveis de Lula, no fim do seu mandato presidencial, foram directamente para Atibaia.
Lula protesta contra a actuação do Ministério Público e as fugas de informação para a imprensa em termos veementes: “Antes de eu levar o nome de alguém à dúvida, eu tenho que ter prova, (...) faz 7 anos que esse Brasil vive assim, na quinta-feira alguém da operação Lava Jato vaza uma matéria para a Folha de São Paulo, vaza uma matéria para O Estadão, vaza uma matéria para a Veja, vaza para a Época, (...), eu estou de saco cheio”.
No interrogatório de Lula sobre a quinta, o seu advogado interveio a certa altura nos seguintes termos: “Doutor, o senhor me permita uma intervenção, se a linha de investigação é que o sítio (Atibaia) é do presidente e não dos reais proprietários, isso é prova documental, ou seja, o senhor tem aí a escritura, o senhor tem o cheque que comprou o sítio. O fato de (Lula) frequentar, de ter pedalinho, de ter barco? Nós somos profissionais do direito, isso não transfere propriedade, isso a imprensa pode explorar, mas nós, operadores do direito, não podemos explorar isso”.
Já o Ministério Público Federal vê o problema da propriedade dos bens de outra forma. E enquadra-a dentro do fenómeno da lavagem do dinheiro: “Entre as tipologias comuns de lavagem, uma é justamente a do chamado empréstimo de regresso ou retro-empréstimo em que o dinheiro alegadamente emprestado já pertence ao tomador, havendo simulação de empréstimo, por parte da empresa ou da pessoa interposta para o lavador, dando a aparência de licitude ao dinheiro que desde o início já lhe pertencia”.
Mas as suspeitas criminais sobre Lula não se esgotam nos casos referidos. Os pagamentos efectuados à sua fundação, o Instituto Lula e a uma empresa sua, a IILS Palestras, alegadamente a troco de palestras, não são para o Ministério Público mais do que verdadeiras contrapartidas por parte das empreiteiras por vantagens indevidas e, agora, surgiu a acusação de que Lula teria procurado “barrar as investigações” do processo Lava Jato.
Certo é que Lula não hesitou: preferiu entrar para o governo a correr o risco de entrar para a prisão; mas seja o convite, seja a sua aceitação, seja a divulgação da conversa telefónica entre Dilma e Lula, seja ainda a suspensão da nomeação, tudo indica que no país irmão a “coisa tá preta”.