quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O que posso fazer por ti meu amor?

É o que muitas vezes me pergunto quando penso na minha terra. Ontem tive mais uma razão para fazer essa pergunta porque fui ver o concerto de Rokia Traoré em Zurique na companhia doutro amor. E ela faz essa pergunta numa das composições musicais mais lindas que conheço do nosso belo continente. “Ka moun kè?”, canta ela. Pergunto-me porque é assim tão difícil pôr término a esta tensão que o país atravessa. É só uma questão de o governo e a Renamo se sentarem, negociarem em boa fé, chegar a acordo, assiná-lo e, prontos, a gente vive alegremente para todo o sempre. Prazer, sem medida (“Diyaniè mana wara nia dô ma”), como ela canta em banamá. Parece fácil. Porque é que eles não fazem isso? Esta é uma pergunta que ocupa muitos de nós. Muitos dos nossos “debates” por aqui são sobre isso. As respostas giram em torno das motivações ignóbeis dos principais actores políticos. São essas motivações que colocam entraves à solução que muitos de nós pensamos ser fácil de alcançar. Pode ser. O problema, porém, é que enquanto não for possível entrar na cabeça desses actores para ver mesmo o que não bate certo lá dentro vai ser difícil chegar a conclusões seguras.
Uma possibilidade seria fazer um exercício de introspeção e olhar para a maneira como nós abordamos as outras coisas da vida. Aí ocorre-me um outro filósofo do Gana, Kwame Anthony Appiah, que escreveu um interessante livro sobre o cosmopolitismo. Nele ele defende a ideia de que somos todos uma comunidade moral com modos de vida diferentes. A fórmula que ele usa é simples: universalismo mais diferença. Muito interessante. Para Appiah não são os valores que nos separam, mas sim desentendimentos em torno da interpretação de factos. Não sei se concordo com ele completamente, tanto mais que me parece que ele investe muito na ideia da razão como condição para se ser cosmopolita. É uma condição excludente, pois nem todos nós temos essa relação saudável com a razão. Mas é uma dica útil. Pode ajudar. Se traduzisse a minha preocupação em relação ao país diria que a questão se resumiria ao seguinte: porque não somos razoáveis? Já uma vez argumentei aqui no meu mural que uma coisa que nos impede de sermos razoáveis (e torna o debate de ideias frustrante) é o excesso de moral, não a sua falta. Continuo a pensar assim. Usamos os nossos compromissos morais para evitarmos reconhecer aquilo que nos torna ocupantes do mesmo espaço normativo.
Vou dar dois exemplos de como nos protegemos da comunidade. O primeiro diz respeito à forma como interpelamos os outros no debate. Por exemplo, se eu escrevo um texto a criticar um político, um partido ou um jornal com o qual não simpatizo as reacções que recebo incluem, invariavelmente, alguns reparos de pessoas que exigem que critique as mesmas falhas no político, no partido ou no jornal com o qual simpatizo. Tenho reagido muito mal a este tipo de interpelação. A questão não é o que esse político, partido ou jornal específico fizeram (ou não fizeram), mas sim o princípio (moral) que o que eles fizeram viola. A questão aí não é porque não critiquei os outros, mas sim se podemos usar esse princípio para criticarmos tudo aquilo que o viola, independentemente das nossas preferências políticas. É assim que o debate público na democracia contribui para o progresso. Vamos lá, se eu condeno o Savana por praticar um jornalismo que promove a guerra a questão não é se devia fazer o mesmo com o jornal Notícias, mas se os critérios que uso para condenar o jornal Savana podem ser aplicados para também condenar o jornal Notícias. E se for esse o caso, se eu sou consequente na minha crítica. A vantagem disto é que faz do debate na esfera pública um momento de produção de espaços cosmopolitas – no sentido de Appiah – que reforçam a nossa pertença a uma comunidade moral. Está muito difícil transmitir esta ideia básica e simples. A mesma atitude que nos impede de discutirmos com utilidade aqui na esfera pública é a mesma que impede o governo e a Renamo de progredirem. Acho.
O segundo exemplo tem a ver com uma postura política herdada da Frelimo gloriosa e que ainda vai levar tempo para sair do nosso imaginário. É a ideia de que ser boa pessoa significa apregoar aos quatro ventos que me preocupo com a sorte dos miseráveis da terra – para usar os termos de Franz Fanon. Há, infelizmente, muita gente que pensa que um argumento se ganha simplesmente produzindo a maior encenação da minha preocupação com a sorte dos injustiçados. Basta dramatizar a injustiça que algo representa para o povo para alguém pensar que tem razão em alguma matéria. Curiosamente, há uma tendência algo vincada de as pessoas que usam essas formas de argumentação terem enormes dificuldades em respeitar os outros como, aliás, a gente viu na nossa própria história pela forma como a Frelimo gloriosa tratou aqueles que não cabiam no seu conceito de “moçambicano”. A sua preocupação pelo povo não se traduz no respeito pelo outro. Na verdade, a obsessão com o “povo” torna muita gente intolerante e propensa à diabolização daqueles com os quais não concorda. E aí, mais uma vez, intervém Appiah com a sua ideia do cosmopolitismo quando diz que o reconhecimento duma moral partilhada é uma condição do diálogo, na verdade a única condição. Há quem ache ridícula a importância que atribuo à forma como falamos sobre os assuntos políticos, na verdade tão, se não mesmo mais importante, do que o conteúdo do que dizemos. O problema dessa postura é que é sustentada pela ideia de que quem é pelo povo tem à partida razão, logo, o debate só pode ter uma função, nomeadamente livrar o povo dos maus. Essas pessoas vivem num mundo muito simples que torna difícil a compreensão dos problemas que temos como, por exemplo, esta tensão.
E a Rokia canta: não existe leão verdadeiramente invencível / mesmo as piores serpentes podem ser domadas / não importa quem somos, a cada um a sua alma gêmea / não importa quem somos, a cada um a pessoa amada.
Tento imaginar o dia em que a Pérola do Índico vai cantar estas estrofes junta. Vai ser a verdadeira independência. A independência dos nossos particularismos destrutivos. Até lá vou escutando a voz linda dessa maliana incrível e sonhar…
sur le superbe dernier album de Rokia Traoré...fabuleuse chanson
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