segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

E o jornalismo irresponsável continua…


E o jornalismo irresponsável continua…

A linha que separa o jornalismo responsável do irresponsável é muito fina e politicamente delicada. É muito fácil considerar irresponsável apenas aquilo que vai contra as nossas preferências políticas. Num país como o nosso é difícil usar este tipo de qualificação sem que haja por detrás uma motivação meramente política. Mesmo assim, arrisco-me a qualificar o jornalismo praticado pelo semanário Savana no que diz respeito à tensão política. É irresponsável. Não faço isto por hostilidade contra o jornal – que, aliás, até nutro – mas por o reconhecer, apesar de tudo, como um importante actor na civilização política da esfera pública. Há um critério mais ou menos objectivo que podemos usar para nos conferirmos o direito a este tipo de qualificação. Esse critério é o da coerência cívica.

Defino como coerência cívica a justificação de intervenções públicas – por marchas, escritos, discursos, etc. – com base na defesa de princípios políticos (e constitucionais) que protegem a minha indignação ou crítica como factores essenciais ao funcionamento da política. Há uma tríade virtuosa nesta definição: o acto político, o princípio que o sustenta e a protecção que o acto político dá ao princípio. O sistema político liberal assenta nesta tríade virtuosa. Se faço uso da liberdade de expressão para criticar o que está mal (acto político), faço-o ao abrigo do princípio constitucional que defende esse direito (liberdade de expressão) e, agora a coisa fica um pouco complicada, protegendo o princípio (liberdade de expressão) com o meu acto (crítica) fazendo uso da crítica em moldes que não comprometam o seu exercício pelos outros. Por exemplo, se, como já aconteceu com o jornal Savana, os grupos muçulmanos que se sentiram lesados pela publicação das caricaturas de Maomé forem atacar o jornal eles fazem uso da liberdade de expressão, mas em moldes que comprometem o seu usufruto por parte de todos. Na nossa esfera pública existem muitas dificuldades com esta tríade. É a fonte de muita incoerência. Estamos contra a corrupção e violência da polícia, mas não achamos que a polícia como instituição mereça respeito; consideramos a justiça inoperante, mas quando nos convém abandonamos rapidamente a presunção da inocência e abraçamos o linchamento. E, claro, somos pelo respeito à constituição, mas só quando isso promove os nossos objectivos políticos…

Então, é com base neste critério de coerência cívica que considero o jornal Savana extremamente irresponsável. Não admira. A ideia de democracia lá naquela redação, como em muitas outras, é tão nova quanto ela é para muitos de nós com a agravante de que algumas das pessoas que estão à frente desse jornal tiveram uma socialização política que sempre considerou a democracia como uma farsa capitalista. Esses hábitos não morrem dum dia para o outro e o potencial de abuso, quando a liberdade chega, é enorme porque o princípio que a intervenção pública segue não é o princípio liberal que fundamenta a liberdade de expressão, mas sim a cultura iliberal que defende a sacralidade dos fins que justificam os meios. Para verificarmos este critério em acção só precisamos de ler o editorial mais recente do jornal. Segue-se um extracto que resume o meu desconforto. É a propósito dos moçambicanos que se encontram em centros de refugiados no Malawi:

“Mas estamos perante refugiados de guerra ou simples emigrantes? A partir de Addis Abeba (Etiópia), onde participava em mais uma cimeira da União Africana, o Presidente Filipe Nyusi, atabalhoadamente, tentou dissipar equívocos e afastar fantasmas. Colocou em causa a autenticidade dos refugiados, quando questionado sobre informações postas a circular sobre a presença de moçambicanos em campos de acolhimento precários no vizinho Malawi. Disse que o assunto deveria merecer uma abordagem mais ampla e minuciosa. Socorreu-se da geografia e da história. Precisou que a linha de fronteira entre Moçambique e Malawi não é clara em determinadas regiões e que muitos cidadãos assumem a nacionalidade moçambicana ou malawiana em função das suas conveniências de momento. Nyusi prosseguiu. Afirmou que o mais alto representante diplomático de Moçambique no Malawi está a acompanhar a evolução dos acontecimentos, “porque não queremos ter o problema de chamar de refugiados a um movimento migratório que é regular”. Disse ainda, que existe um movimento ao longo da fronteira que é desencadeado por uma série de factores, tais como seca e distribuição de fertilizantes. Mas o que dizem as Nações Unidas? Um emigrante é aquele que busca condições melhores de vida noutro país, enquanto que um refugiado é alguém que foge de perseguição, conflito ou guerra. Quanto a nós, é simplesmente falso falar de emigrantes moçambicanos em Kapise, enquanto há um claro conflito político-militar em curso no país, que está a atingir níveis preocupantes em Tete. Claro que reconhecer a existência de refugiados é embaraçoso para o Governo. É tão embaraçoso como reconhecer que lavra um conflito de baixa intensidade em Gaza, em Inhambane, em Sofala, na Zambézia e em Tete com mortes frequentes escondidas do público devido a razões políticas. Nestas circunstâncias, os moçambicanos dos campos do Malawi são um embaraço para o governo e por isso são, para já, tratados como um mero expediente político. Bem sabemos que, cinicamente, o governo gostaria que o foco das atenções fossem as populações afectadas pela seca no sul do país, para ver se acorrem ao país as tradicionais ajudas internacionais e para depois, no fim do ano, se justificarem incumprimentos de programas e metas por culpa da falta de chuva ou precipitação pluviométrica a mais.”

Tenho enormes dificuldades em imaginar como é que um indivíduo que escreve linhas tão incoerentes como estas pode se considerar jornalista com direito a emitir opinião publicamente. Primeiro, na entrevista em questão o Presidente da República fez um reparo importantíssimo sobre a necessidade de se abordar a questão com cuidado. Não foi atabalhoado e, se como o articulista julga, ele tentou afastar fantasmas, isso não afecta a qualidade do raciocínio por ele exposto. Ele não negou a existência de tensão, não pôs de lado a possibilidade de se tratar de pessoas fugidas dessa tensão, nem minimizou a importância do assunto tanto mais que o Alto-Comissário do país está a acompanhar o assunto. A questão geográfica e histórica é importante, apesar de tudo. Segundo, a definição que as Nações Unidas têm de “refugiado” e “emigrante” não põe em causa o que o Presidente da República disse. Antes pelo contrário, essas definições reforçam o que ele disse. De resto, a vocação do ACNUR não é de apoiar “emigrantes”, logo, a simples economia política dessas burocracias internacionais também ajuda a ver um problema específico, e não necessariamente o verdadeiro problema. Terceiro, não percebo porque seria embaraçoso para o governo reconhecer a existência de refugiados ou mesmo reconhecer a existência dum conflito de baixa ou alta intensidade. O único que Nyusi disse é que é preciso ter cautela para não produzirmos um problema que possa ser mais semântico do que real. Se ele fosse apressado como o articulista é até podia vir a público dizer que a intransigência da Renamo e de seus apoiantes levou o país a um conflito armado que já está a produzir mortes e refugiados. Aí o Savana era o primeiro a reclamar…

Mas é justamente aqui onde está o problema da irresponsabilidade jornalística. O Jornal Savana parece ter apostado na ideia de que o país está em guerra aparentemente pelo prazer infantil de poder dizer que isso é culpa do governo. Só isso. Toda a peça jornalística parece ter como objectivo demonstrar isto. O uso que se faz da crítica aqui não tem como objectivo promover nenhum princípio político, nem proteger a liberdade de expressão. Se o objectivo fosse mais nobre o artigo teria sido escrito como crítica a todos aqueles que tornam o país instável – chamando-os à responsabilidade – e revelaria mais respeito pelo tratamento cuidadoso de temas sensíveis, que é o que Nyusi fez numa didática demonstração do respeito que ele parece ter pelo país.

Reconheço uma certa parcialidade da minha parte, pois incomoda-me toda a intervenção sobre este assunto que minimiza a responsabilidade da Renamo nisto, que é o que o Savana faz de forma irritantemente constante. Incomoda-me não só pela hostilidade que nutro por ambos, mas também porque não percebo o prazer que a Renamo tem de ser tratada de forma tão paternalística. Parece um maluquinho qualquer que nunca tem culpa de nada, apenas reage ao que não entende ou a provocações. Eu havia de me sentir incomodado com amigos que me tratassem desta maneira…

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