quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Últimas recomendações do Manhique



Quarta, 07 Outubro 2015 00:00

“SEI que há os que me criticam porque ainda não vêm o que eu vejo e não entendem.
Ainda o que eu já entendo. Por isso, a minha missão é continuar a usar a força da rádio e outros meios de comunicação para iluminar os que ainda não vêm o que eu vejo, e ensinar os que ainda não entendem o que eu já compreendo. Farei isto porque o problema deles é que ainda não chegaram onde eu já cheguei, e por isso não vêem ainda o que eu já vejo. Quando Eduardo Mondlane e alguns outros compatriotas já iluminados, nos diziam que era possível vencermos o colonialismo português, havia então muitos outros moçambi­­­canos que diziam convictamente que era impossível. Mas vencemos o colonialismo. Agora há moçambicanos que não acreditam que nunca e jamais seremos capazes de desenvolver o nosso país para o mesmo nível atingido pelos EUA. Mas eu acredito que podemos desenvolve­-lo se as nossas crianças e os nossos jovens se empenharem nos estudos e nós adultos, nos empenharmos no trabalho árduo``, Emílio Manhique
Este artigo que o caro leitor está a começar a ler, escrevi­­-o em cumprimento de um pedido que o meu agora falecido colega e amigo fez-me insistentemente na última sexta­-feira, dia dois e ainda no último sábado, dia três, portanto, um dia antes de morrer na manhã de domingo seguinte dia quatro, data em que celebrávamos o 23º aniversário do Acordo de Paz de Roma cuja assinatura ele próprio cobriu directamente em 1992, a partir da Itália.
Pediu­­­­-me quando estive com ele nessa sexta­-feira, como era normal estarmos, e depois via celular já no sábado, dia três. Ele sugeriu que desse a esse artigo, o título “Independência para que? Notando que eu não estava entendendo muito bem a razão deste título e o seu porque de questionar a nossa independência, ele começou então a trocar­­­-me o seu raciocínio em “quinhentas”, como se sói dizer-se na gíria popular.
``Sabe Gustavo, a mim me entristece muito, ver o que certos moçambicanos fazem do nosso país. Cabe a nós jornalistas, explicarmos a esses moçambicanos que o que estão a fazer, só nos empurra irreversivelmente para o abismo, e nunca chegaremos à terra da prosperidade que nos foi prometida pelos nossos libertadores, como Eduardo Mondlane e Samora Machel. Temos que dize­­-los que se devem redimir de uma vez por todas das práticas erróneas em que estão envolvidos e que nos vão arrolando contagiosamente. Temos que fazer de tudo para travarmos os belicistas e os que fazem tudo para acumular ilicitamente fortunas, em prejuízo da maioria de nós. Não entendo como em pleno século XXI há ainda moçambicanos que se julgam educados, que defendem que Dhlakama tem razão para teimar em querer nos matar, e fazem tudo para defender e apoiar o seu belicismo, do mesmo modo que não entendo que haja quem opte por tirar do que é de todos nós, para acumular ilicitamente, cada vez mais riqueza, como se não acreditassem que são tão mortais como nós, e que, por isso, um dia vão morrer e deixar tudo nesta terra! Tens que escrever esse artigo, e denunciar tudo isto e muitas outras coisas que esses moçambicanos fazem do nosso país. Se não tem coragem de assumir o que estou a dizer­-lhe agora, então cita a mim, desde que no fim desse artigo, deixes muito claro que eu Emílio Manhique, não estou desiludido por termos lutado pela independência, e muito menos pela nossa independência, mas estou sim, muito desiludido com o que esses moçambicanos fazem do nosso país``.
Nestas suas recomendações, que neste caso as assumo já como tendo sido as últimas que me deu naquela sexta durante as mais de seis horas em que estivemos juntos, insistiu ser imperioso que nós jornalistas intensifiquemos a educação das camadas mais jovens, para que não enveredem também por práticas mundanas que estão a dar cabo deste país, cujo futuro melhor foi bem delineado por alguns dos seus melhores filhos, como Eduardo Mondlane e Samora Machel, que se resume na unidade, na nossa integridade e espírito solidário ou ajuda mútua.
Ele vincou que se não formos rigorosos na educação dos mais jovens, não tardará que alguns desse jovens comecem a pôr em causa a razão da nossa independência, “como bem o disseste naquele artigo que escreveste o mês passado a partir da China, em que revelas que quando Mobutu arruinou o Zaire com a sua desenfreada corrupção, alguns jovens zairotas que não tinham vivido a brutalidade do colonialismo, já desejavam o fim da independência do seu país, tal como os seus pais e avós desejavam o fim do colonialismo que os oprimia. Emílio destacou que se continuarmos a não combater o belicismo e todos os males que inibem o nosso desenvolvimento, como a corrupção, a insensibilidade, falta de empenho no trabalho, nepotismo que resulta na promoção de incompetentes e ineptos para chefiar gente competente, não tardará muito que tenhamos jovens que desejarão também o fim da nossa independência, que perguntarão para que a independência? Ou que farão também a tal pergunta dos jovens zairotas. Quando é que a independência passará ou terminará?
“Não estou preocupado porque predestinado a ter um encontro com a história”
`
Esta era uma das frases predilectas de Emílio Manhique quando resumia o que ele acreditava que seria o seu destino como homem que nasceu e viveu neste mundo. Na longa conversa que tive com ele na sexta-feira e sábado, voltou a declamar esta frase, no que voltou a lembrar­-me uma outra profética de Eduardo Mondlane, quando escreveu numa das milhentas cartas que enviou a sua esposa, Janet, que estava certo que a História gravaria para sempre a sua passagem por este mundo. Emílio também acreditava na sua própria imortalização. Era de convicções firmes porque devia estar ciente de que estavam assentes em bases científicas. Uma das suas maiores virtudes, era ser frontal e escravo da verdade, fosse ela boa ou má, amarga ou dolorosa. Não dissimulava nada e muito menos reprimia os seus pensamentos, como não obrigava a sua língua a trair o que lhe ia pela mente. Não era desses que dizia o que não era o que pensava. Os que tiveram oportunidade de ter conversas com ele, sabem que ele era mesmo amante da verdade. E dizia o que pensava ou acreditava a todos sem excepção. Esta sua característica e maneira de ser granjeou-lhe muita admiração mas também muitos inimigos, porque há infelizmente pessoas que não gostam que lhes seja dita a verdade ou de ser criticadas, mesmo que saibam que são justas. Para o Emílio, apontar os erros de alguém, devia ser uma prática que devia ser feita mesmo para quem seja amigo. Ele defendia que não devemos deixar um amigo entrar no mato ou no abismo, porque isso era o mesmo que não lhe querer o bem. Foi nesta senda que ele disse que eu tenho que escrever este artigo, em que tenho de apontar todos os erros e males que certos compatriotas cometem e que dão cabo deste país.
``Não é ser mau amigo quando tratamos as feridas dele. É verdade que o tratamento duma ferida ou duma certa doença causa dores às vezes, mas o que pretendemos é curá­­-la e nunca matarmos os nossos amigos. As feridas sociais curam­­­-se com as denúncias e críticas. Temos que denunciar a corrupção, o belicismo e a sua defesa como o fazem alguns colegas e intelectuais, o divisionismo, a falta de cumprimento rigoroso das tarefas, temos que educar os nossos professores para que não cobrem dinheiro aos seus alunos para os deixar passar de classe sem saber, temos de dizer aos nossos médicos e enfermeiros que nos devem tratar com amor e carinho, porque eles também precisam da nossa ajuda nos nossos postos ou frentes de trabalho, seja na machamba, onde produzimos a comida com que que se alimentam e os mantém vivos e saudáveis. Temos que dizer que a divisão do trabalho foi a única maneira que se encontrou para que cada um de nós fizesse pelo outro o que esse outro não podia fazer por si próprio. Ninguém é capaz de fazer tudo o que pode garantir a sua vida e a dos seus filhos. O professor forma o filho ou a filha do médico, enfermeiro e dos seus assistentes, enquanto aquele camponês que alguns de urbanos olham com desdém ou mesmo desprezo, é quem produz a comida que é a fonte de toda a nossa sobrevivência como seres humanos. Temos que apregoar estas verdades todas Gustavo, para que as pessoas saibam que ninguém é tão poderoso para não precisar da ajuda dos outros. Sem os alfaiates não teríamos roupa, sem os que tratam a água que bebemos morreríamos todos em menos de uma semana. Como podes ver, tens que escrever tudo isto que lhe digo, porque o maior problema que afecta o nosso desenvolvimento, é o espírito ganancioso e a visão míope que leva alguns a acreditarem que têm nas suas barrigas o rei e todos os seus castelos. Os nossos governantes e gestores de empresas têm também de saber governar e gerir bem os poucos recursos humanos habilidosos e financeiros que temos. Não faz sentido que um chefe que entra no serviço as 8.00 horas e termina o seu dia de trabalho rigorosamente às 15.30, tenha mais do que um carro dado pela instituição, e eu Emílio Manhique, que acordo de segunda a sexta às 4.00 horas para poder estar na rádio antes das 6.00 horas, não me dêem sequer uma bicicleta ou motorizada. Isto não faz sentido nenhum, e posso te garantir que isto desmotiva o mais motivado trabalhador`` disse­-me em tom de ordem, vincando sempre que devia escrever e publicar.
Para os que não tiveram a sorte de travar conhecimento com Emílio, poderão pensar que ele disse­ tudo isto porque sabia que não teria que sofrer as consequências porque devia saber que iria morrer antes de se publicar. Mas para os que o conheceram, sabem que era capaz de o dizer a quem quer que fosse, incluindo aos que estão investidos pelos mais altos poderes de Estado ou de outra fonte lícita ou ilícita. Eu já o vi dizer verdades bem amargas a alguns dirigentes do nosso país, como Chissano e Guebuza, mas sem maldade e de boa-fé, porque acreditava que estava a cura­r certas feridas que os afectavam. Para provar que ambos entenderam as suas críticas como construtivas e não maléficas, os dois estão chocados e choram pela sua morte, como estão, acredito, chocados os ouvintes e telespectadores dos seus bem-feitos programam. Chissano e Guebuza foram de entre os primeiros a irem pessoalmente dar condolências à sua viúva e família, e prestar­ ao Emílio a merecida homenagem à imensurável contribuição que ele deu a sua pátria. Para muitos, Emílio era do estilo dum Carlos Cardoso que nunca se preocupou em coisas materiais, mas apenas em apregoar a verdade, porque acreditava que a verdade é a fonte da vida, tal como acreditaram Jesus Cristo e Sócrates. Vá em paz amigo Emílio.
Gustavo Mavie

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