domingo, 10 de maio de 2015

Sobre a Guerra e Paz

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MANUEL SILVEIRA DA CUNHA
A propósito do lançamento do projecto Livro CD de Jordi Savall sobre a Guerra e Paz, entendi por bem traduzir um fragmento do seu texto original sobre a Paz e Guerra nesse livro. Texto que discorre sobre esses conceitos ao longo da história e, sobretudo, no que se passa hoje em dia.
Não concordarei com tudo o que o texto afirma, nomeadamente sobre a “caridade” em que Savall cita José Saramago, em que a caridade é vista como conceito assistencial e não como conceito primordial. Caridade é, acima de tudo, amor pelo próximo, e se tivermos de classificar entre Bondade, Justiça e Caridade, como Savall se vê forçado a fazer no final, ordenando Savall por ordem de importância Bondade, Justiça e Caridade, justificando que esta só é necessária quando faltam as duas primeiras, nós, pelo contrário, colocaríamos Caridade em primeiro lugar, porque do Amor nasce a Bondade e do Amor nasce a Justiça. Cremos que é apenas neste ponto que se encontra uma falha filosófica nas afirmações de Savall que tem raiz no desconhecimento etimológico e filosófico do verdadeiro sentido da palavra Caridade, escrevendo em termos do senso comum aquilo que mereceria um tratamento mais sólido.
Ficam então aqui as primeiras linhas do texto de Savall: “Há mais glória em matar as guerras com a palavra do que em matar os homens com a espada; em obter e manter a paz com a paz mais do que com a guerra” (Santo Agostinho). “Nós evocamos através da música o grande século que precede o final da Guerra da Sucessão Espanhola, em 1714. Rico fresco musical e intensa revisão histórica de um período muito curto mas também muito rico da história da Europa e dos seus conflitos. Do ataque dos otomanos contra os húngaros, em 1613, o massacre dos judeus em Frankfurt, em 1614, e os inícios da Guerra dos Trinta Anos até aos tratados de Paz de Utreque e a queda de Barcelona, constata-se o prolongamento desta eterna tragédia da civilização europeia: o uso comum da ‘cultura da guerra’ como forma principal de resolver diferenças culturais, religiosas, políticas ou territoriais. A apresentação da longa e triste sucessão de confrontações, de guerras, de invasões, de ataques, de massacres, de agressões, de saques e de combates entre povos e etnias, ao longo da história da Humanidade (e no nosso caso na Europa), mostra-nos que é necessário e urgente adquirir de novo mecanismos relacionais a fim de reconciliar as diferenças num Mundo fecundo no plano da acção, da palavra e do pensamento.
O século dezassete começa com diversas tentativas de invasão, de incessantes escaramuças e de ataques repetidos por parte dos otomanos que invadem e devastam a Hun- Sobre a Guerra e Paz – I gria em diversas ocasiões, dando-se também início à Guerra dos Trinta Anos. Esta surgiu por causas múltiplas, e pela sua duração e violência pesou violentamente sobre a economia e demografia da Europa central e da Espanha. Os diferentes conflitos armados que se agrupam sob o nome de Guerra dos Trinta Anos decorreram na Europa de 1618 a 1648, opondo o campo dos Habsburgs de Espanha e do Sacro Império Romano Germânico aos Estados Alemães protestantes, confrontando esse mesmo Império e as potências europeias vizinhas, a maioria protestante, com diversas intervenções da França, maioritariamente católica.
A Guerra dos Trinta Anos desenrolou-se em diversos episódios: conflitos perpétuos nos Países Baixos, a Paz de Praga de 1635 que, sem pôr fim à Guerra dos Trinta Anos, opera uma mudança nos beligerantes; a guerra contra Espanha onde as frentes de batalha mudam de Norte para Sul; a guerra do Império Otomano contra Veneza; a guerra civil em Inglaterra, nação que intervém na cena internacional no seio desta guerra, tão longa quanto complexa; a Paz dos Pirenéus; a conquista de Creta pelos Otomanos; os tratados de Nimège e de Ryswick e a guerra dos otomanos contra a Rússia, dão-nos conta de que a Paz não é um bem à parte, mas que ela faz sempre parte, de forma incontornável, da guerra. [ …]
A paz de Utreque, que põe termo [a um século] de conflitos, foi um dos tratados de paz mais importantes da Europa moderna, uma vez que desenha uma carta uma carta geopolítica nova, que irá marcar as relações internacionais durante todo o século dezoito, e que apenas será alterada profundamente no início do século dezanove pelas campanhas napoleónicas [que acabaram com o Sacro Império], que introduziriam um novo ajustamento internacional de importância similar com o tratado de Viena”.
A cultura da Guerra
A guerra acompanha a vida dos homens e das mulheres deste mundo desde há 5000 anos, e ainda agora no início do século XXI a cultura da guerra é mais forte e activa do que nunca. Os conflitos armados, cada vez mais numerosos no Mundo inteiro, são a causa quotidiana de milhares de vítimas, frequentemente inocentes. Com mais de 35 milhões de desalojados no Mundo, jamais na história da Humanidade se atingiu um nível tão dramático de refugiados e de pessoas que não podem regressar ao seu país de origem. As guerras, tal como a escravatura, são formas de violência institucionalizada, não são naturais nem normais, e originam-se na esfera cultural.
Como relembra tão bem Raimon Panikkar [Barcelona, 3 de Novembro de 1918-Tavertet, 26 de Agosto de 2010, foi um sacerdote católico, teólogo e filósofo espanhol, grande promotor do diálogo inter-religioso], na sua obra “Paz e desarmamento cultural” (1993): “o primeiro exército permanente, como organismo especializado na violência, nasce na Babilónia no momento em que a sociedade passa do matriarcal ao patriarcal”. Jan Smuts [1870-1950, estadista sul-africano, primeiro-ministro e marechal, defensor da segregação racial mas também inventor do conceito de holismo] escreveu: “Quando olho para a História sinto-me pessimista, mas quando olho a Pré-história sinto-me optimista”.
Com efeito, a Pré-história não conhecia as guerras, mesmo que a violência mais ou menos tribal já existisse. A Civilização fundada sobre o poder começou cerca de 3000 antes de Cristo, no momento em que a invenção da escrita permitia ao poder a organização e estabelecimento de um domínio preciso sobre a sociedade, o que favoreceu o florescimento da escravatura, para cobrir as necessidades de mão-de-obra barata e de soldados. A partir desse momento o número de guerras e das suas vítimas aumentou progressivamente. Não esqueçamos que o Homem, “durante mais de 95% da sua existência, foi caçador e não guerreiro”.
Paz e Desarmamento
A procura da Paz acompanha assim a vida dos homens e mulheres deste Mundo, desde há mais de 5000 anos, mas ainda hoje em dia a Paz parece, a nível mundial, uma Utopia inatingível. No entanto, a arte da vida humana consiste precisamente em desafiar o que parece impossível. Dito isto, e como tão bem sublinha Raimon Panikkar: “a procura da paz por uma só cultura não ultrapassou o arquétipo de Pax Romana […]. Esta paz pretendida é-nos necessária para impor a nossa cultura, a nossa economia, a nossa religião ou a nossa democracia”. Com efeito, a Paz não é possível sem desarmamento, mas o desarmamento requerido não será apenas nuclear, militar ou económico. É necessário – como propõe Panikkar – um verdadeiro desarmamento cultural, “um desarmamento da cultura dominante, que ameaça transformar-se numa monocultura, que pode subjugar todas as outras e acabar por se asfixiar a si própria”.
[Aqui, Jordi Savall, dentro da sua utopia, é simplista. Como enfrentar culturas de guerra e morte, nomeadamente os fundamentalismos islâmicos? Oferecendo o pescoço? É que os fundamentalismos não conhecem conceitos como misericórdia, compaixão ou tolerância, a reacção será apenas a de chamar estúpidos aos ideólogos utópicos e cortar-lhes alegremente o pescoço. Regressamos ao texto que, apesar das suas contradições, tem muitos pontos de interesse]
Existirá algum meio de parar a corrida aos armamentos, cada vez mais mortíferos, e à proliferação mundial de todas as formas de armas de destruição cada vez mais sofisticadas?
Não nos podemos esquecer dos mais de 124 milhões de mortos que foram causados pelas por numerosas guerras no século XX, isto desde a Primeira Guerra Mundial até aos conflitos mais recentes, nem esquecer que mais de oitocentas mil pessoas morrem anualmente em virtude da violência armada e que a violência armada é, em mais de cinquenta países, uma das dez principais causas de morte em geral. Reconciliação A História tem também memória e mostra-nos que “uma vitória não conduz numa à Paz, a Paz não é fruto da vitória”. As dezenas de milhares de documentos estudados por Jörg Fisch [historiador suíço nascido em 1947] o provam. Estes documentos provam a maior cegueira da Humanidade que se possa imaginar, mas também a maior ingenuidade. Em conclusão, a História mostra-nos que a Paz não se obtém por tratado, da mesma forma que o Amor não se obtém por decreto. Existe algo na natureza da Paz, tal como no Amor, que não pode obedecer a uma ordem. Em definitivo, “apenas a reconciliação pode levar à Paz”. Toda a Paz se compõe de três elementos iguais e essenciais: Liberdade, Harmonia e Justiça. Mas como afirmou Raimon Panikkar, “não se deve confundir Justiça com legalidade”. Será que teremos de lembrar que a Constituição original dos Estados Unidos excluía os escravos e os negros?
Creio firmemente que não poderemos combater os piores inimigos do Homem, a ignorância, o ódio e o egoísmo senão através do Amor, o Saber, a Empatia e a Compreensão; não é esta a contribuição última da Arte e do Pensamento? É por esse motivo que é necessário compreender o mundo globalizado de hoje, ser mais consciente da complexidade das situações nas quais nós vivemos, com o fim de reflectir com independência sobre os caminhos que poderão contribuir para mudar “a terrível situação de desarranjo em que vive uma Humanidade despojada, que parece ter perdido o contacto com os seus valores essenciais de Civilização e de Humanismo” (Amin Maalouf, escritor francês de origem libanesa nascido em 1949).
O desregulamento do Mundo acentuou-se nos últimos anos, por uma política económica desumana que sacrificou milhões de vidas para sistemas de exploração totalmente caducos. É por essa razão que, nesta época de grave crise económica, o aumento das despesas militares no Mundo inteiro ainda surpreende, agora que atinge a soma astronómica de 1.7 biliões de dólares americanos [1 700 000 000 000 dólares, ou seja cerca de 15% ao ano de todos os dólares americanos existentes no mundo] e que não faz mais do que alimentar e prolongar os numerosos conflitos armados que devastam Ocidente e Oriente, muitos destes não resolvidos e com escassas esperanças de que o sejam a curto termo. Infelizmente, esta proliferação de conflitos de longa data (Afeganistão, Iraque, Tchechénia, Palestina e em África), os mais recentes (Síria), ao lado de guerras chamadas “irregulares”: guerrilhas (América Latina) e terrorismos diversos geraram até hoje milhões de vítimas inocentes e mais de trinta e cinco milhões de deslocados no Mundo. Como Erasmo escrevia em 1516, acusando: “A guerra atinge, na maior parte das vezes, aqueles que nada têm a ver com ela”. Vinte anos depois de se ter permitido a destruição sistemática de Sarajevo e o massacre de milhares de bósnios inocentes, assistimos ao martírio do povo sírio com a mesma indiferença humana e a total impotência das grandes nações.
O mal absoluto é sempre aquele que é infligido pelo Homem ao Homem, é um facto universal que atinge toda a Humanidade. Hannah Arendt foi, provavelmente, a primeira a reconhecê-lo, quando em 1945 escreveu que “o problema do mal será a questão fundamental da vida intelectual da Europa no pós-Guerra! A arte, a música, a beleza, podem salvar o Homem deste mal?
[Talvez não. Hitler, depois de tentar ser pintor, continuou grande apreciador de pintura, arquitectura e, sobretudo, música, com grande ênfase para o genial Wagner. Staline era também um grande apreciador de arte e apreciava literatura e música]
No romance de Dostoievsky “O Idiota”, um ateu chamado Hipólito pede ao príncipe Mychkine: “É verdade, príncipe, que vós haveis dito um dia que a Beleza salvará o Mundo? Senhores, gritava tomando toda a sociedade como testemunha, o príncipe pretende que a beleza salvará o Mundo [...] . Qual beleza salvará o Mundo? [...] O príncipe contemplou-o de forma atenta e não replicou absolutamente nada”. O príncipe não tem resposta, mas nós cremos, como Antoni Tàpies, “na arte que seja útil à sociedade, uma arte que pela beleza, a graça, a emoção e a espiritualidade, pode ter o poder de nos transformar e pode tornar-nos mais sensíveis e mais solidários.
Eu gostaria de terminar citando José Saramago, um grande escritor, um homem engajado e um caríssimo amigo: “Se me pedissem para ordenar por ordem de prioridade a Caridade, a Justiça e a Bondade, eu colocaria a Bondade em primeiro lugar, em segundo a Justiça e em terceiro a Caridade.
[Aqui já fizemos a crítica, há duas edições atrás. A Caridade, sendo de facto sinónimo de Amor, é apenas conhecida pelo seu valor de senso comum por Saramago e não pelo seu sentido filosófico, o que atesta a parca bagagem cultural, ou a má fé e o preconceito contra o conceito, visto pelo escritor no sentido limitado de assistencial e usualmente praticado pela Igreja]
Porque a Bondade, por si só, dispensa a Justiça e a Caridade, e porque a verdadeira Justiça contém a Caridade. A Caridade é aquilo que sobra quando não há nem Bondade, nem Justiça. [...]
Eu [continua agora Saramago] acrescentaria uma pequena nota. Sou suficientemente velho e suficientemente céptico, para me dar conta de que a Bondade activa, como a chamo, tem bem poucas hipóteses de se transformar num ambiente social partilhado. Ela pode, no entanto, tornar-se num recurso pessoal de cada indivíduo, o melhor contraponto do qual se pode munir este animal doente que é o homem”.
Um texto para reflectir. Como acabar com as guerras, peste endémica do Homem? Desarmamento cultural uma mera utopia ingénua?

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