quarta-feira, 13 de maio de 2015

O discurso do método


O discurso do método
12.05.2015
MIGUEL GUEDES
Aconteceu a propósito da inauguração de uma queijaria em Aguiar da Beira no dia que precedeu o Dia do Trabalhador. Bem a propósito, vendo Dias Loureiro na plateia, Pedro Passos Coelho não resiste ao elogio público do amigo e correligionário de partido, natural desta histórica vila do distrito da Guarda. Em discurso livre, afirma que Dias Loureiro "conheceu Mundo, é um empresário bem-sucedido, viu muitas coisas por este Mundo fora e sabe - como algumas pessoas em Portugal sabem também - que se nós queremos ter uma economia desenvolvida, pujante, temos de ser exigentes, metódicos". Quando as estimativas apontamPARA os 4 691 milhões de euros de factura que os contribuintes pagarão pela vergonhosa e escandalosa ruína do BPN, o elogio público do primeiro-ministro a um dos seus principais responsáveis é um monumental "visto gold" à impunidade daqueles que se passeiam por cima da lei ou fazem chacota de um país que, por razões que a razão desconhece, por diversas vezes os elegeu democraticamentePARA servir algo que vagamente conhecerão como causa pública.
Quando fala sobre Dias Loureiro, a referência subliminar ou inconsciente de Passos Coelho ao "método" é um acto falhado (mas sem erro) que Freud poderia psicanalizar. No fundo, uma magnífica revelação da verdade. Quando Descartes escreveu o seu "Discurso do método", no século XVII, sistematizou três sonhos invernais que lhe anunciaram a ideia de um método universal para encontrar a verdade. A absoluta autoridade da razão para o conhecimento significativo, o desprezo pelos sentidos, a certeza da certeza pela matemática, o desprezo pelo qualitativo, o apreço pelo quantitativo e a inexistência de dúvidas. Como já foi dito pelo mais alto magistrado da nação (então, primeiro-ministro), "não tenho dúvidas e raramente me engano". Puro Descartes, puro método.
O método do "ataque ao BPN" e as suas ligações estão bem patentes no relatório da comissão de inquérito onde o nome de Dias Loureiro aparece por singelas 55 vezes. É quantitativo e o discurso do método não deixa mentir. A metodologia que mais assusta é aquela que não arrepia caminho perante as mais insuspeitas evidências, aquela que acelera as privatizações a todo o custo e não desistirá caso seja reeleita: TAP, CP Carga e EMEF, o sector da água, STCP, Metro, Carris. Quando sabemos que as intenções de privatização chegam ao Oceanário ficamos, de facto, cientes e sem dúvidas: só poderemos aguentar esta deriva de negociatas com os sectores estratégicos da economia portuguesa até às eleições, munidos a garrafas de ar com nitrox perante o perigo de narcose. Estamos no fundo, se é que não batemos nele.
A luta desenvolvida pela sociedade civil contra a corrida desenfreada à alienação de grande parte da alma mater da nossa economia teve, na passada sexta-feira, uma nota arejada. O Supremo Tribunal Administrativo aceitou julgar uma acção e uma providência cautelar interposta pela Associação Peço a Palavra, braço jurídico do movimento "Não TAP os olhos", que poderá significar areia na engrenagem na metodologia da privatização da companhia aérea. Depois da longa e irresponsável greve de (parte dos) pilotos, é altura de convocar o Estado de direito e de apelar aos sentidos. Negar Descartes. Dizer-lhe que foi um génio trôpego que não descobriu que o Homem pode voar se conseguir sentir à sua volta. Que há dúvidas que nos transcendem e que há razões que a razão desconhece. Fazendo valer a nossa indignação.
Raúl Castro prometeu voltar a rezar e Descartes não negava a existência de Deus. Pelo contrário. Mas se há alguma lógica nisto tudo e se a anestesia não for colectiva, temos alguns meses aindaPARA evitar que se confirme o que a deputada Mariana Mortágua afirmou aquando da apresentação das conclusões da comissão de inquérito ao BES: "as palavras de Passos Coelho (sobre Dias Loureiro) são a prova provada que o tempo tudo apaga se não forem tomadas medidas". Amanhã, quarta-feira, o novo acordo ortográfico passa a ser obrigatório em Portugal. A maioria dos países da CPLP ratificou o acordo mas não o pôs em prática. Eu, que não estou de acordo, espero pela decisão dos tribunais. A impunidade sente-se mais fraca quando a razão não lhe assiste e lhe abala o método.

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