quarta-feira, 6 de maio de 2015

Carta sobre maus tratos e discriminação no Ministerio da Justiça –

 M’banza Hamza

AO
EXMO SENHOR DELEGADO PROVINCIAL DA JUSTIÇA E DOS DIREITOS HUMANOS DE LUANDA
LUANDA
Solicito a atenção de V.Excia para o assunto que passo a expor:

Sou o Afonso Matias, também conhecido por “M’banza Hamza” e “Prof. John”, cidadão angolano, residente na província de Luanda, município de Cacuaco, comuna da Funda;
No dia 23 de abril de 2015, pelas 6 horas desloquei­me à Repartição do Registo Civil da Vidrul em Cacuaco. Depois dos procedimentos bancários, concluídos as 8h20 numa das dependências do Banco BPC na Vila de Cacuaco, fiz­me novamente a referida Repartição para a renovação do meu Bilhete de Identidade caducado desde setembro de 2014. Contextualização:
Desde fins de 2013 que decidi não cortar o meu cabelo com o fito de deixa­lo crescer em dreadlocks (cabelos longos, encachados, deixados crescer naturalmente), mais vulgarmente conhecido como cabelo rasta;
Levo a vida exercendo a minha profissão de professor primário, bem como a de ativista cívico e defensor de direitos humanos. Entre a indignação de alguns e a curiosidade de outros vou fazendo o meu percurso, esclareço a quem mo solicita e defendo­me ante críticas, quase todas baseadas em preconceitos e desinformação sobre os dreadlocks.
De volta ao dia 23 de abril;
Depois da recolha dos BIs que iam para renovação, fui chamado e à porta, o funcionário (que mais tarde vim a saber chamar­se Cândido) perguntou­ me se eu ‘tinha o documento da cultura para o cabelo’ eu disse que não tinha e que não era necessário. Ele pediu que o acompanhasse até a um gabinete para ir esclarecer­se com o seu superior (que vim igualmente a saber tratar­se do chefe de Repartição local);
No gabinete o superior disse, ao lhe ser solicitado se eu podia ou não renovar o meu bilhete com o cabelo que tinha:
– O senhor não sabe que tem que ter o documento da cultura para tratar o bilhete com cabelo? Eu perguntei se me podiam mostrar alguma lei ou uma nota escrita que afirmasse tal.
– Mas você não está escrito no ministério da Cultura, não sabes que para teres o cabelo assim tens que estar escrito no Ministério da Cultura? – continuou o chefe de Repartição.
– Vou estar escrito por quê? Como? O ministério da Cultura pelo que sei é um ministério que lida com instituições e agentes que promovem a cultura –
Assunto: Solicitação de acção imediata Saudações, disse eu. Eu não sei se há lá um gabinete para atender pessoas que mudem a fisionomia como dizeis.
– Tem! – responderam unanimemente todos.
– Como se chama esse gabinete? – perguntei a eles.
– Vai lá, vão tem informar – respondeu o chefe de Repartição.
– Não! Vocês têm que me dizer – repliquei.
– Podes me deixar trabalhar? Ou então procura outro posto e vai lá
tratar – foi o ultimato do chefe de Repartição. Eu disse que não iria a outro posto, era aqui onde tinha de ser atendido ou que ao menos me esclarecessem. Peguei na constituição para ler o artigo 23o e o 41o, não adiantou em nada. O Cândido teve a luz verde para protagonizar a sua arrogância e incompetência autoritária. Começou a empurrar­me para abandonar o gabinete, eu ofereci resistência e continuei a falar e a tentar abrir a lei, ai, o chefe de Repartição e mais um funcionário juntaram­se ao “empurra esse gajo.”
– Mostrem­me uma lei! Eu estou a ser discriminado! Que lei é maior que esta [a constituição]? Foi o que fui clamando enquanto empurravam­me do gabinete para a sala de tratamento e renovação de BI. Os empurrões tornaram­se mais violentos e por duas vezes os meus óculos caíram por efeito da agressividade com que estive a ser tratado, protagonizados pelo Cândido, chefe de Repartição e um funcionário. O chefe de Repartição havia pedido paz para trabalhar, pois eu estava a ser uma espécie de incomodo, só não sei se essa paz era para energicamente se engajar no teatro do “empurra esse gajo”.
Eles queriam humilhar­me em hasta pública, levar­me aos empurrões até fora da sala de renovação de BI, mas eu mostrei­lhes que se insistissem na intentona, só podiam é piorar as coisas e o alvoroço seria maior. O Cândido ameaçou bater­me e tudo. Continuei a gritar que estava a ser discriminado e ser agredido, algo que eu não esperava numa instituição do Ministério da Justiça. Aos poucos os empurrões foram acalmando e não insistiram na minha expulsão. O chefe de Repartição voltou a falar da necessidade de legalização da mudança de aparência, com os mesmos argumentos anteriores. As minhas questões mantiveram­se e ele acabou por retirar­se. Veio um funcionário que começou a falar calmamente comigo e a tentar esclarecer o motivo por detrás da suposta rejeição. Fomos falando amigavelmente e saímos para o pátio e até à rua. Pela conversa, percebe­se claramente a desinformação e, o pior, a falta de capacidade para perceberem que a sua atitude como instituição foi discriminatória. Em suma, eis o que estive a exigir:
Que me mostrassem uma lei a informar que cidadãos que tenham mudado a aparência careçam de autorização do Ministério da Cultura;
Ou em alternativa que me mostrassem pelo menos uma nota escrita, presente na Repartição a informar que casos de alteração da aparência, ou casos de uso de dreadlocks careçam de autorização do Ministério da Cultura e afiliação à Comunidade Rasta;
Procurei saber porque tenho de ir ao ministério da Cultura para fins de legalidade quando estes aspectos são da tutela do Ministério da Justiça? O que é isso de tão complexo que escapa as competências do Ministério da Justiça, para se socorrer do Ministério da Cultura? É um procedimento de cuja justeza e legalidade não consigo compreender;
Pedi para que me deixassem ler­lhes o que a lei magna, a Constituição da República de Angola nos seus artigos 23o e 41o diz; mas se há alergia dos nossos servidores públicos, é a de ouvirem o que a lei diz. A minha tentativa a isso valeu­me ser arrastado e empurrado que nem um porco, acção protagonizada inclusive pelo chefe da Repartição do Registo.
Depois de estar fora da Repartição (com o funcionário Farias) e ter esgrimido os argumentos legais que queria poder fazer perante o chefe de Repartição, um outro funcionário, solícito, e que me estive a ouvir, recomendou­me fazer um recurso hierárquico, começando com o chefe de Repartição. Foi essa recomendação que ajudou­ me a saber que um dos sujeitos que me estive a empurrar era justamente o chefe de Repartição. Quando voltei a solicitá­lo, os seus argumentos não mudaram, apenas o temperamento. Conversamos amigavelmente desta vez, mas para ele só havia duas saídas: 1. Cortar o cabelo ou 2. Registar­se numa comunidade rasta e com o parecer positivo do Ministério da Cultura. A tão solicitada fundamentação legal dessas condições, ficou para segredo dos deuses.
Neste dia, entrei para o gabinete do chefe de Repartição 3 vezes. A primeira que resultou no teatro “empurra esse gajo”; a segunda para falar com o chefe de Repartição e a terceira foi quando voltei para ir buscar o borderô do depósito bancário que havia esquecido. O funcionário Farias (não estou muito certo quanto ao nome) ao qual apresentara a argumentação legal fora da Repartição, e que antes havia negado o meu professorado (por causa do meu comportamento – entenda­se, por reclamar um direito que me cabe), depois dos argumentos e conversa na rua, é provável que tenha mudado de opinião e quando me viu no pátio, chamou­me:
Senhor Professor, Senhor Professor, vem. Olha, está ai um outro funcionário no gabinete do chefe de Repartição, vamos tentar novamente. Vamos lá e explica o teu caso calmamente a ele, quem sabe ele te atende.
Mas não adiantou em nada. O Cândido quando me viu ficou indignado por estar novamente naquele gabinete e já esteve a ranger os dentes. Expliquei a minha situação e rejeição que sofrera no período da manhã. Ele não foi diferente na argumentação, “documento da cultura!”. Perguntei­lhe, se uma senhora viesse de postiço ou tissagem na cabeça, careceria igualmente da autorização do Ministério da Cultura? Disse Não! Perguntei se estava a par do princípio da igualdade enunciado artigo 23o da CRA (o Cândido já estava a mofar nesta altura), do apelo a “não ser prejudicado, privado ou isento de um direito em razão de religião, convicções políticas, ideológicas ou filosóficas”? Os rostos franziram e os dentes rangeram.
Reforcei dizendo que o postiço e a tissagem além de figurarem na lista de acessórios que alteram a aparência, são acessórios artificiais, que podem ser trocados ou removidos ao cabo de uma semana, já os meus dreads, além de 100% naturais, constituem­se num look (visual) que vai manter­se por uma longura de anos. Ninguém cria dreads para cortá­los uma semana, ou mês após consegui­lo.

O absurdo é a resposta vinda do outro lado, que nega­se redondamente a admitir que postiços e tissagens alteram a aparência, justifica tudo como sendo “elas [as mulheres] o fazem para realçar a sua beleza”. Mas realçar a beleza altera ou não a aparência? Quanto a questão da igualdade mencionada no artigo 23o, este funcionário defendeu que ‘nós não somos iguais, ou se é que eu achasse que somos iguais, que viesse tratar o BI de vestido e fio dental.’
Em 2011 quando fui registar a minha filha, vivi um incidente similar. O gabinete de registo civil do Centro Materno Infantil da Funda tinha (não sei se continua tendo) uma lista com os nomes “oficialmente” permitidos para nomes próprios a atribuir aos filhos, realçar que não consta nenhum nome de origem africana nesta lista, são todos nomes de origem portuguesa e ocidental. Dois casais que presenciei, acabaram por mudar os nomes aos filhos (nomes africanos para nomes portugueses) porque não constavam naquela lista. Eu por pouco não registava a filha, pois o nome “Leonor” que dei, a senhora não encontrava na lista, eu insisti que ela lesse bem, Leonor é um nome português, tinha certeza que estava na lista, depois de mais uma lida, ela achou o nome e aceitou registar a filha.
Eu me pergunto, afinal, o que valeu­nos a independência? Grande parte do que se constitui em nossos valores e princípios éticos hoje, foram exigências do colonizador para nos aculturar, assimilar, fazer­nos negar a nossa identidade e nos tornarmos portugueses. O rapar obrigatório do cabelo, a imposição de nomes portugueses, a obrigatoriedade de ter­se mais de um nome (antes da colonização os africanos podiam ter um nome só, exemplo: Mandume, Ekwikwi, Ngola­Kilwanji, Nzinga­Mbandi, Shaka­Zulu, Asantewaa, Nanny (rainha, Ghana), Rahmzés, Imohtep, etc.) são apenas alguns exemplos. 40 anos depois da independência, ainda não traçamos o nosso próprio rumo, não há flexibilidade para esses assuntos? Continuamos na mesma imposição colonial? Será que Nzinga­Nkuvu, Mandume, Ekwikwi, Nimi­a­Lukeny e muitos outros usavam cabelo escovinho?
Outro aspecto que também me deixa inquieto é o facto de que deixei igualmente crescer a barba e as unhas das mãos. Durante toda essa fanfarrice em volta da alteração da aparência, ninguém mencionou o factor barba longa, muito menos as unhas compridas, será que elas não abrangem na famigerada “alteração da fisionomia”? Se sim, onde irei conseguir legalização para eles, será também no Ministério da Cultura? Ou terei que igualmente afiliar­me a uma comunidade qualquer de barbudos e unheiros com o parecer positivo do Ministério da Cultura? Careço de informações a respeito para que se não me ponha novamente impedimento em renovar o BI por causa da barba e das unhas. Um segundo aspecto que não quero deixar de parte são os óculos. Tenho recomendação e prescrição médica para usar óculos permanentemente por causa do problema de visão. Tem sido embaraçoso removê­los sempre, pois “não estás assim no BI e nem no passaporte”. Não sei se haverá objeção para que no meu novo BI esteja de óculos ou se precisa igualmente de um recurso legalizador.
Excelência, é por esses factos que lhe escrevo, solicitando a sua intervenção para o meu caso. Eu preciso renovar o meu Bilhete de Identidade, já recorri ao chefe de Repartição local, os seus argumentos são os já apresentados acima. Fui para o Posto de Identificação de Cacuaco na vila municipal em cumprimento do “procura outro posto e vai lá tratar” do chefe de Repartição da Vidrul, o cenário foi o mesmo, mal informei a situação, a resposta dos funcionário foi “documento da cultura.”
Por isso me dirijo a si senhor Delegado, para a solução do meu caso e quiçá de muitos milhares de angolanos amordaçados e discriminados sem fundamentação; mas por todo amor à pátria que se possa ter, não me peça por favor para ir registar­me ao Ministério da Cultura que não irei, muito menos em filiar­me a uma Comunidade Rasta, pois eu não posso entrar numa associação, comunidade ou ONG cujo objecto social seja criar cabelo, não faz o mínimo de sentido para mim. Por outra, associar­se a uma organização, não importa que fim prossiga é um acto voluntário e de consciência, não pode ser imposto ou compulsivo.
Quanto aos funcionários (Chefe de Repartição do Registo Civil da Vidrul, seu auxiliar e o funcionário Cândido) que me maltrataram e agrediram verbal e fisicamente, solicito uma acção disciplinar exemplar e à medida.
Levo igualmente ao seu conhecimento senhor Delegado que, assim que tiver a acusação de recepção desta carta, levarei a público o que me sucedeu assim como as diligências perante o senhor Delegado.
Sem mais nada a expor, despeço­me na expectativa de breves notícias da vossa parte. Luanda, 04 de Maio de 2015.
Contactos:
Telm.: +244 937 775 616

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