segunda-feira, 18 de maio de 2015

A questão camponesa é uma questão social

A dopto o conceito generalizado de inclusão como movimento de resposta a demandas das camadas habitualmente marginalizadas e exclu- ídas que as sociedades, seja por via do mercado, seja por via das institui- ções, não vem abordando. E porque surge este movimento? Jamais como hoje houve tanta liberdade política e tanta informação a circular, mas jamais como hoje há tanta pobreza e a sua face visível a falta de emprego para muitos, a par de uma enorme acumulação de riqueza. Ou seja, jamais como hoje há tanta desigualdade. A dominação do capital financeiro não fez mais do que agravar a tendência que a equação 99/1 bem exprime. No meu país é no campo que estas temáticas se combinam de forma aguda: aí vive um pouco mais de dois terços da população, tornando o País dos menos urbanizados do mundo. O PIB per capita é de 645,80 USD (2013), muito mais baixo no campo, como de resto acontece em relação aos camponeses africanos: aí os pobres não têm futuro e vêem-se excluídos para todo o sempre, eles e os filhos, da possibilidade de melhorar a sua vida. Há um “social divide” que por disperso geograficamente é menos visível do que nas cidades, mas não é menos real. Vou utilizar duas linhas de força no meu raciocínio: o primeiro vem de um estudo recente de dois autores britânicos, Teresa Smart e Joseph Hanlon, residentes há longos anos em Moçambique que estudaram a estratégia seguida no domínio da agricultura que eles, reportando-se ao académico moçambicano João Mosca, qualificaram de estratégia dual: grandes empresas por um lado e apoio à agricultura de subsistência das famílias rurais, por outro. A crença nas grandes empresas, primeiro estatais na época do socialismo, foi substituída pela esperança do investimento das grandes empresas multinacionais do agro-negócio. Ora, argumentam os dois autores, o agronegócio na sua componente agrária é um investimento a longo prazo, requer o que se qualifica de “patient capital”, muitas vezes ligado a famílias que querem deixar algo para os netos. Nas restantes empresas, há uma componente na qual elas são, senão indispensáveis, pelo menos eficazes como na comercialização, nas redes de transporte internacional, na marca. Mas como grandes empresas cotadas em bolsa sofrem os efeitos do capital financeiro, vendem-se e revendem-se, adquirem largos peda- ços de terra por concessão e um dia o capital falta, desaparecem. No que respeita à produção propriamente dita, a economia de escala que nos seus países de origem aparece hoje como vantagem, pode não o ser quando se trata de investimento recente, com diferenças de solos e de ambiente pouco dominados. Em suma, muitos desses chamados grandes investimentos não produzem os resultados esperados. A questão camponesa é uma questão social Por Óscar Monteiro* Em alternativa opõe-se a maior efi- cácia do pequeno e médio produtor que conhece cada pedaço dos seus 3 a 4 hectares, qual a zona húmida, qual a melhor adaptada a determinada cultura. Este produtor pode nascer por iniciativa autónoma sobretudo em zonas de grande rentabilidade: assim o tabaco e soja permitiram a emergência de 68.000 pequenos e médios agricultores comerciais de sucesso em dez anos, com um padrão de vida razoável e incomparavelmente superior aos restantes camponeses. Pode também nascer a partir dos contratos de produção com grandes empresas que vão abandonando ou nunca adoptaram a produção directa preferindo, em vez disso, financiar em insumos agrícolas os produtores locais. Já o problema dos camponeses de subsistência é outro, argumenta-se, não conseguem elevar a sua produtividade trabalhando apenas com a sua força de trabalho e da sua famí- lia imediata. As áreas são pequenas de mais para justificar um investimento acima da enxada e o resultado ressente-se. Mera subsistência é um estado, não um projecto de vida. E tudo isso conduz à exclusão. Eu acrescentaria uma constatação fundamental: a questão camponesa tem vindo a ser tratada como questão agrícola e não como questão social. Tem sido matéria de técnicos agrícolas, mas não de analistas sociais, melhor dizendo enablers sociais. Ora, pelo menos na presente fase, os resultados económicos da produção devem preocupar-nos não tanto pela sua contribuição para o PIB nacional que é importante, mas sobretudo na medida em que aumentam a integração social dos camponeses na sociedade. Por isso a questão deve ser trazida para o centro do debate social e a ela se devem juntar todas as forças sociais empenhadas na justiça social. A segunda linha de pensamento é a que respeita às comunidades e às terras comunitárias. Uma iniciativa, por sinal de doadores, agora a ser endogeneizada por moçambicanos, vem promovendo a delimitação das terras comunitárias, de forma a garantir no quadro legal os direitos das comunidades sobre a sua terra. De 2006 a 2014 foram delimitadas terras comunitárias e o programa do novo Governo acaba de incluir as comunidades (e também os pequenos e médios agricultores) num ambicioso plano de garantia de posse de terra. Na óptica prevalecente, um dos objectivos vinha sendo garantir direitos da comunidade para assegurar uma relação contratual segura com o potencial grande investidor. Mas a espera pelo investidor não está a ter o sucesso esperado. Em contrapartida, um novo filão está a brotar: nas terras já delimitadas e tituladas, os membros das comunidades já estão a fazer, por sua iniciativa, pequenos investimentos que somados têm elevado a produtividade. Quid do financiamento das acções de promoção e investimento agrí- cola nas comunidades? A legisla- ção moçambicana tem disposições progressistas na matéria. Já não se considera que todas as receitas decorrentes da exploração dos recursos naturais pelos chamados investidores tenham de ir para o Orçamento do Estado que depois faria a sua distribuição balanceada por todo o país. A nova legislação mineira e petrolífera adoptada em 2005 não é uma invenção moçambicana, mas o seu carácter sistemático em todas as áreas é profundamente inovador ao estabelecer como regra a comparticipação das comunidades em todas as receitas geradas na sua região. O mecanismo é de um “fundo de desenvolvimento comunitário vocacionado para interesses próprios da respectiva comunidade’’ e os mecanismos de gestão destes fundos devem ser estabelecidos pelas pró- prias comunidades. Isto decorre do facto de se ter estabelecido que, nesta sua fase inicial (2013) em 2,7% a percentagem das receitas geradas na extracção mineira e petrolífera que é canalizada para as comunidades por via dos orçamentos dos Governos distritais. Para esse ano de 2013, foram apurados os valores e beneficiadas várias comunidades num montante global de 30,049,2 Mil Meticais (cerca de 1 Milhão de Dólares). A estas receitas, acrescem outras, incluindo uma taxa dos 20% pela exploração florestal e faunística. O processo de operacionalização destes fundos de forma a salvaguardar os interesses e decisão das comunidades está em curso e um grupo de OSC liderado pela Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC) está a tentar a ajudar o Governo, mas numa perspectiva de defesa dos direitos e interesses das comunidades, vistas como parceiras e não como “bene- ficiários”, a ajuda que entregam não tem obrigação de reembolso. Iniciativas generosas acabam por cair no caritativismo e retiram à produção o seu carácter essencial e secular de acrescer riqueza e de criar progresso, perpetuam o síndroma da dependência que é ainda uma forma de exclusão social. Uma ideia que nos surge neste momento seria a de procurar não fazer destes fundos como se de um donativo se tratasse, mas sim procurar “reciclá-los” de modo a que sejam utilizados para relançar a economia local através de projectos produtivos ou de geração de rendimentos. A experiência de Cabo Verde subjacente no conceito de “reciclar a ajuda”, nos parece assim muito útil e gostaria que daqui saísse uma expressão de disponibilidade. Os dois grandes tipos de visão de investimento no campo acima apontam para a necessidade de valorizar o capital nacional, por pequeno que seja, e para a necessidade de valorizar outras formas de capital social, saberes, organização e implementar novas ideias sobre essa cultura organizacional. Constitui uma inovação social alcançar um estágio em que ser camponês deixa de ser percebido como estigma. Varrer das mentes o estereótipo do camponês descalço, de calção, camisa esfarrapada que nos vem das gravuras coloniais ou a imagem mais recente do camponês resignado na sua condi- ção marginal, ou aguardando o passaporte para a passagem para outra classe. Para que surja a ideia de um camponês próspero e orgulhoso da sua condição de camponês. Tal vai levar tempo e serão os exemplos de sucesso que levarão a essa mudança de percepções. Premiar e valorizar socialmente o melhor camponês de uma certa área territorial pode elevar o amor próprio. É na questão do aumento da produtividade do camponês e do agricultor que se vai jogar o futuro, na formação, no crédito, na garantia de preços e de mercado, no seguro agrícola, no contrato supervisado por honest brokers, que corrijam o desequilíbrio entre partes desiguais. A formação leva tempo e sabe-se que o camponês precisa de ver e tende sempre a cultivar o que sabe e garante o sustento, mesmo se de forma básica. A melhor forma de promover o progresso tecnológico é através de pequenas melhorias comprovadas com exemplos. Aqui a formação por pares, visitas aos casos de sucesso podem ajudar. Conselhos aos camponeses, a extensão pode hoje recorrer às tecnologias de comunicação (em Moçambique existem três operadoras de telefonia móvel com uma cobertura quase total das zonas rurais, mas ainda ninguém lançou um sistema de informação agrícola e extensão por via de mensagens SMS, apesar do seu inventor, Greg Carr, ser hoje um residente de Moçambique e um notável promotor do desenvolvimento ecológico e social. Está aqui um papel para a juventude e para os programas escolares no campo, com utilização da língua local, sabidas que são as limitações ao aumento de extensionistas rurais por razões or- çamentais. Num curso da Via Campesina compreendi a importância do desenvolvimento das lideranças camponesas, nas associações, no empresariado social, cooperativas e associações de produtores... Finalmente, esta problemática revela uma tensão entre o modelo de governação nacional e transnacional a quem apetece a uniformidade, políticas coerentes e globais e a diversidade e necessidade de diferenciação. Vale dizer que a atitude inovadora, um Estado heterogéneo de que fala Boaventura Sousa Santos, aceitar como normal o comportamento “desviante”, fora do padrão ditado superiormente de que falam Andrews, Pritchett e Woolcock, são atitudes indispensáveis quando se trata de agir ao nível do micro e do diferente como são as comunidades camponesas, para mais num país tão grande (799.000 km2) e tão longo e recortado (7007 km de fronteiras). Vai ser necessário desenvolver um modelo capaz de deixar grande margem aos implementadores, evitar a imposição das “boas práticas” genéricas, e ser também flexível nos modelos de avaliação, pois eles também exercem uma pulsão uniformizante. No fundo, inovarmo-nos também todos nós, lançar sobre o que temos vindo a fazer, um olhar novo. *Intervenção no colóquio sobre a Inovação, Inclusão Social e Qualidade de Vida com Boaventura Sousa Santos e Cristovam Buarque organizado na Praia, a 9 de Maio corrente pelo Instituto Pedro Pires para a Liderança. Revisão do texto da responsabilidade do SAVANA

Sem comentários: