domingo, 12 de abril de 2015

Quénia, o mea culpa dos media

O massacre em Garissa, no Quénia, não esteve em destaque na imprensa como outros atentados passados no mundo ocidental. Os diretores de jornais, rádios e televisão analisam porquê.
Carolina Reis |13:00 Domingo, 12 de abril de 2015
O massacre ocorreu no mesmo dia que as mortes de Manoel de Oliveira e Silva Lopes / Getty

Dois terroristas invadem a redação de um jornal satírico e matam 12 pessoas, a maioria jornalistas que se atreveram a 'brincar' com Maomé. O mundo reage de imediato. Sites e televisões fazem acompanhamentos em direto, são enviados jornalistas para o terreno, os líderes políticos atropelam-se para prestar homenagens. Dois meses depois, um grupo terrorista ataca uma universidade católica e mata 148 alunos por terem a 'religião errada'. Nos jornais e nos sites há pequenas breves e nas televisões a notícia passa sem diretos, interrupções das emissões ou enviados especiais. Só ao fim de três dias as imagens do massacre se tornam virais na Internet. 

A diferença? O primeiro aconteceu em Paris, o segundo no Quénia. Valem mais as vidas dos ocidentais? Alguns responsáveis de media nacionais reconhecem que a cobertura mediática dada ao acontecimento não foi a melhor, mas não acreditam que se trate de racismo. 

"Até para nós, que no dia anterior tínhamos dedicado o dia aos 21 coptas mortos por causa da religião no Egito, a questão da interiorização da dimensão levou mais tempo", diz Graça Franco, diretora de informação da Rádio Renascença. As mortes de Manoel de Oliveira e de Silva Lopes fizeram com que o tema do Quénia fosse dado, a princípio, de uma forma minimal nos noticiários da rádio, que funcionava na altura mais desfalcada devido ao feriado de Páscoa.

Ensombrada pela morte do centenário cineasta, o dia informativo na SIC Notícias começou por dar a notícia em pivot e só ao fim do dia conseguiu ter as primeiras imagens em vídeo. "É injusta a afirmação de que não reagimos rapidamente. Não houve qualquer resistência a dar eco à notícia", contrapõe António José Teixeira, diretor da estação. 

A emissora católica tem vários missionários em África, o que poderia ter justificado uma maior proximidade. "Há aqui uma subestimação muito grande e muito grave em relação a África", admite Graça Franco, que não vê que seja uma questão de racismo. 

No "Diário de Notícias", o diretor André Macedo alinha na mesma opinião. "Levámos uma brutalidade injustificada de tempo a reagir, coisa que raramente acontece, e quando reagimos, como já foi tarde, não foi da melhor maneira." O diário, que celebra os seus 150 anos e que tinha quinta-feira duas páginas dedicadas ao continente africano, esteve para colocar uma foto do massacre na primeira página da edição de segunda-feira, quatro dias depois do ocorrido. Contudo, acabou por optar por Fernando Medina, que nesse dia sucedia a António Costa. "E é possível que tivesse sido errado. Fazia sentido pela proximidade, pela gravidade não." 

Peshawar, um "dos maiores falhanços jornalísticos"
Ricardo Costa, diretor do Expresso, recorre igualmente ao fator proximidade para justificar o destaque dado ao massacre. "A nossa capacidade de reação não foi brilhante, mas não foi por ser África. Se fosse na Guatemala ou no México era a mesma coisa. Tem que ver com a proximidade cultural e geográfica que temos com o assunto." 

O Expresso acompanhou o assunto no site e fez uma breve para a edição impressa. "Houve muita gente a queixar-se nas redes sociais que a notícia não passou nos telejornais e isso não é verdade." 

O maior falhanço jornalístico, defende Ricardo Costa, aconteceu em Peshawar, um dia depois do sequestro num café em Sydney. A cobertura de um atentado terrorista numa escola de filhos de militares no Paquistão, que vitimou 141 pessoas, a maioria crianças, passou ao lado da imprensa. Já o assalto ao café australiano, que causou a morte a três pessoas, sendo uma delas o terrorista solitário, esteve em permanente destaque. 

"Peshawar, para mim, é um dos maiores falhanços jornalísticos. Foi com uma diferença de 24 horas." A diferença está na maneira "como ligamos o acontecimento com o nosso modo de vida".

Haverá falta de investimento nas editorias de internacional? António Granado, professor de jornalismo na Universidade Nova de Lisboa, diz que "o que está a acontecer no jornalismo português é o jornalismo sentado". "A maioria das coisas é feita na redação e na secção de internacional ainda mais."

Perante o atual contexto, aumenta a dependência das redações portuguesas relativamente ao que as agências internacionais enviam. Enquanto no mundo ocidental há mais facilidade em confirmar a informação, quanto mais longe mais difícil se torna.

"As primeiras imagens em vídeo demoraram a chegar e só as tivemos através de agência", diz o diretor da SIC Notícias, para quem a "velha questão" da proximidade é "injusta mas é a realidade". António José Teixeira lembra que os próprios militares levam sete horas para se deslocarem de Naioribi a Garissa.

A Luisinha do Eça
Quando não há cidadãos ocidentais envolvidos nestes massacres "longínquos", os factos tardam a ser noticiados. Mas não é só em relação a África. "A notícia sobre Portugal que mais tempo esteve na primeira página do 'New York Times', por incrível que pareça, não foi o 25 de Abril. Foi o assalto ao Santa Maria, porque havia lá americanos", frisa António Granado. 

A comparação também pode ser feita com a queda do avião da Germanwings. "Em 2013 houve um atentado semelhante com um voo das Linhas Aéreas Moçambicanas [voo 470] e nessa altura não se discutiram as regras de segurança [quantas pessoas devem estar dentro da cabine]. Hoje discute-se isso porque houve um acidente na Europa", diz Paulo Baldaia, diretor da TSF. 

As manchetes são atribuídas aos acontecimentos que mais colocam em causa o modo de vida ocidental, o nosso. "Nós percebemos que tinha importância quando sabemos que as mortes tinham que ver com a religião católica. Só quando chegamos a este tipo de informação é que percebemos que tinha mais que ver connosco, com o nosso modo de vida", refere Paulo Baldaia. 



África, que está geograficamente mais próxima da Europa do que a Ásia, cujo tsunami de 2004 mereceu ampla cobertura internacional, parece, no entanto, distante. "Há imensas histórias para contar em Angola e em Moçambique, mas nós sabemos delas pelos jornais estrangeiros", diz António Granado, referindo-se às investigações do "Guardian" sobre a captura de tubarões ou à exploração das minas de carvão em Moçambique.

A história de Garissa podia ser o furacão de Vanuatu, os imigrantes mortos em Lampedusa, cuja contagem já se deixou de fazer, ou os 137 mortos em mesquitas no Iémen há três semanas. Estão longe. A questão não é de agora, já há mais de 100 anos que Eça o dizia. "Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera - era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações... Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha - e ela morava adiante, no começo da Bela-Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro dando à rua sombra e perfume."



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