Depois duma breve pausa para esfregar bálsamo em vaidades feridas volto com uma provocação ao Jaimito (Jaime Langa), ao Manuel J. P. Sumbana, ao Gabriel Muthisse e ao Júlio Mutisse com um convite a todos os outros para se pronunciarem (sem, contudo, usarem linguagem ofensiva já que o tema parece animar as pessoas para isso).
Politicamente incorrecto, e incoerente…
Era uma vez, havia um país que se chamava República Democrática do Índico. Como todos os países com essa designação não era nem republicano, nem democrático, mas os seus habitantes mantinham isso porque no mundo em que viviam era assim. Havia uma prática milenar nesse país, tão milenar que os seus habitantes acreditavam ser algo natural, de manter empregados domésticos. Toda a gente tinha empregados domésticos, menos os empregados domésticos, está claro, embora eles também, secretamente, nutrissem o desejo de um dia virem a ter empregados. Eram muito mal tratados. Não eram pagos, alimentados, vestidos como devia ser. Ou melhor, negar-lhes este tipo de direitos era visto como normal. Não violar estes direitos era, em contrapartida, visto como um acto de bondade e caridade por parte dos patrões, não como uma obrigação cívica. Os empregados domésticos eram considerados quase como sub-humanos, um pouco ao estilo dos índios nas Américas que foram objecto do grande debate de 1550 em Valladolid entre De las Casas e Sepúlveda sobre se eram humanos ou não. Por causa disso, os empregados domésticos preferiam nunca dar nas vistas. Saíam do serviço, baixavam a cabeça e caminhavam para os lugares onde viviam sempre na esperança de não serem vistos por ninguém para não arranjarem problemas.
Mas um dia a constituição desse país mudou. Entre outras coisas ela passou a respeitar o direito que cada indivíduo tinha à liberdade, o que em termos práticos significava que nenhum poder (ou maioria) tinha o direito de limitar a sua liberdade (nem mesmo com o objectivo de proteger esse grupo de danos que ele próprio pudesse causar a si próprio) e que todo o indivíduo tinha o direito de se articular politicamente criando, por exemplo, associações para a defesa dos seus interesses. Alguns empregados domésticos decidiram, então, criar uma associação chamada “Sigma”, a décima oitava letra do alfabeto grego e em homenagem muda aos laços Sigma da química, o mais forte tipo de laço covalente. E foi aí onde os problemas começaram. Primeiro, era tão natural que empregado doméstico fosse só isso que muita gente achava estranho, e um atentado à ordem natural das coisas, que de repente o empregado doméstico passasse a ter os mesmos direitos que as pessoas de verdade tinham. Era quase um atentado à moral, um pouco ao estilo de como se sentiram as pessoas nos estados americanos do sul quando alguém veio com a ideia fantástica de acabar com a escravatura. Como podiam?
O principal argumento era o seguinte: se a gente deixa que os empregados domésticos se constituam em associação, logo a seguir eles vão pedir para que se adopte legislação que lhes confira o direito de terem o mesmo estatuto que os seus patrões. Isso não pode ser. E não é pelo facto de noutros pontos do mundo se aceitar a igualdade dos empregados domésticos que na RDI se devia também fazer o mesmo. Tudo a seu tempo. Há sensibilidades religiosas por respeitar, por exemplo. A Bíblia aconselha a cada um de nós a aceitar o seu lugar no mundo. Ser empregado doméstico tem cura. É só pedir perdão pelos pecados que levaram Deus a deixar alguém nascer empregado doméstico, e o resto resolve-se. Mesmo o Alcorão é claro nisto tudo. Se Alá – diz uma das Suras – não quer que sejas crente ele vai fechar o teu coração para tu não veres a verdade. Viver em sujeição é parte do pacto que cada um fez com o Todo-Poderoso. Este argumento foi usado com bom efeito pela igreja holandesa reformada na África do Sul para contrariar aqueles que queriam pôr termo ao Apartheid. É preciso não esquecer que se Deus tivesse querido conferir igualdade aos empregados domésticos teria feito todos os seres humanos com mais do que um par de braços para poderem aguentar com as lides domésticas sem terem de recorrer a empregados domésticos. De resto, o povo não está preparado. Precisa de muita sensibilização tal como aconteceu nos países onde os empregados domésticos são aceites como iguais. Este foi o argumento colonial contra a independência, argumento esse que viria a ser vindicado pela incapacidade do continente africano de cuidar de si próprio. É que essas coisas levam tempo. Mudanças sociais, aparentemente, não se fazem da noite para o dia.
Entretanto, o problema que alguns empregados domésticos estão a levantar é simples. Eles exigem – como é seu direito exigirem – que as autoridades Indicanas deem cobertura jurídica ao seu desejo de se apresentarem na esfera pública do país como um grupo para defenderem os seus próprios interesses. Este é um dos direitos mais elementares que um país democrático pode conferir a um grupo. E recordemo-nos: não se trata dum grupo com fins criminosos. É verdade que o grupo, pela sua natureza, vai contra a moral dominante na sociedade (nomeadamente a moral que coloca cada um no seu lugar de acordo com aquilo que Deus decidiu que seria a sorte de cada um de nós), mas a moral, como muitas outras coisas, é sempre um expediente fácil para justificar a discriminação. Da prisão de Birmingham, onde tinha sido metido por participar numa manifestação pacífica e de desobediência civil pelos direitos cívicos dos negros, Martin Luther King Jr. escreveu uma das mais brilhantes epístolas jamais escrita por um homem em luta pelos seus direitos. Era em reacção a prelados católicos, protestantes e judeus que o criticavam por usar o nome de Deus para exigir os seus direitos. Eles diziam que tudo viria a seu tempo. E ele escrevia na carta que os negros tinham aprendido da forma mais dura possível que “mais tarde” significava, no fundo, “nunca”. E que por causa disso não podia esperar.
O que me espanta na controvérsia sobre o reconhecimento da associação dos empregados domésticos não é a rejeição dos indivíduos que a compõem, nem mesmo a linguagem ofensiva que se costuma usar para os caracterizar. A pré-condição para que haja tolerância no sentido liberal do termo é que quem deve tolerar não concorde com uma certa coisa, prática ou condição. Tolerância só faz sentido quando se não está de acordo. Portanto, a rejeição em si não constitui nenhum problema. O que constitui problema é a inconsistência na argumentação, sobretudo vinda de pessoas que ao comentarem o recurso à violência (por parte dum grupo que se sente injustiçado) contra o Estado num país vizinho (Moçambique) acham que é direito desse grupo recorrer às armas para lutar contra o abuso do poder. Ora, as autoridades indicanas abusam do poder ao recusarem o reconhecimento jurídico da associação dos empregados domésticos. Introduzem critérios arbitrários na observação da legalidade ao confundirem dois assuntos completamente distintos: o direito ao reconhecimento jurídico como associação e a aprovação de quaisquer que sejam as exigências que esse grupo vier a fazer. São assuntos distintos. O reconhecimento jurídico da associação dos empregados domésticos não tem nada a ver com o conteúdo das reivindicações que eles vierem a fazer. Se eles depois exigirem que sejam equiparados aos seus patrões haverá necessidade de discutir isso através do processo político normal. Ele pode culminar com a aprovação em lei dessa exigência, ou não. Mas negar um direito constitucional (de associação) como forma de impedir a discussão dum assunto que um sector da população sente como sendo premente é uso arbitrário de poder. E não há pior coisa do que ouvir muitos que estão contra a legalização da associação dos empregados domésticos dizerem que há assuntos mais prementes sobre os quais as autoridades se deviam debruçar do que andar a perder tempo com gente que por culpa própria se encontra na condição em que se encontra.
Mas é nesta convergência entre “anti-G40” e “G40” que a gente vê o que vale o compromisso que cada um de nós tem com a democracia. E isto, para mim, é mais um exemplo dum grave problema na nossa esfera pública, nomeadamente a incapacidade de nos posicionarmos sempre no interesse de protegermos algo mais importante do que o nosso ponto de vista. Neste caso dos empregados domésticos, o valor que se tenta proteger é o preconceito, mais nada. Não é a moral, nem a cultura, muito menos a harmonia social. É apenas o preconceito e, acima de tudo, a falta de vontade de questionarmos opiniões que consideramos sacrossantas. Só isso. Eu defendo o direito dos empregados domésticos de se constituírem em associação não porque eu goste deles ou concorde com a sua maneira de estarem na vida. Defendo esse direito porque defendendo-o estou também a defender o meu direito de não ser molestado por um poder arbitrário.
A tolerância é o preço da liberdade.
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