sábado, 21 de fevereiro de 2015

O circo mau


A exibição de argumentos em público, oral ou escrita, pode ser caracterizada, por analogia com o circo, deste modo: os escritores ou os falantes dão saltos e caem do alto dos seus próprios saltos.

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Os circos bons não têm qualquer interesse, e aliás os circos maus também não. No entanto, seguir um número de acrobacia numcirco mau é uma experiência emocional muito mais complexa que num circo bom. Enquanto no circo bom temos uma confiança fundada na eventualidade de os acrobatas fazerem mais ou menos aquilo que tencionam, e tudo se parece com patinagem artística (a actividade mais engenhosa, com excepção do genocídio, a que um ser humano se pode dedicar), num circo mau a emoção consiste em temer que o inevitável aconteça, e depois assistir à concretização dos nossos piores receios. Seguimos assim com piedade e horror os acrobatas, e é com alívio que, depois de um tempo infindo em que se despenharam com método, os vemos levantar-se do chão uma última vez. Podemos voltar PARA casa.

A única outra actividade que suscita emoções tão extremas por parte dos espectadores é o debate público em Portugal. Aqueles que apreciam o género deleitam-se e horrorizam-se com o modo como a cada frase, a cada alternativa, a cada ligação entre frases, a cada razão apresentada, os oradores escrupulosamente acabam por ir atrás de trapézios que não existem e aterrar exactamente onde não querem. A exibição de argumentos em público, oral ou escrita, pode ser caracterizada, por analogia com o circo, do seguinte modo: os escritores ou os falantes dão saltos e caem do alto dos seus próprios saltos.

Bem entendido, a ausência de progressão, se por um lado os coloca nos antípodas da patinagem artística, por outro é duramente compensada pela duração do espectáculo. Nenhum argumento é menos que eterno, nenhum artigo ou nenhuma imagem suscita menos de mil palavras, nenhumaintervenção breve dura menos de vinte minutos. Durante esses períodos, em que se pode ouvir os continentes a mudar de posição, os artistas esforçadamente dão pinotes e despenham-se. Compensam o pouco que sabem com o mal que fazem.

Partilham com os acrobatas do circo mau não apenas o modo como as suas desgraças são largamente auto-inflingidas como sobretudo uma grande indiferença por quem possa estar a assistir. Não agem contudo por sobranceria mas por ansiedade. A sua ansiedade, que é verbal, lógica e intelectual, é grande demais PARA lhes permitir imaginar que quem os ouve ou lê tenha mais que fazer. Nunca conseguem fazer nada à primeira e por isso tentam uma segunda e uma décima-terceira vez. As suas opiniões, espasmos, desabafos e discursos são assim ensaios constantes das ideias que não tiveram, das relações que não perceberam e de tudo o que não escreveram.

Alguns, em boa verdade, apresentam-se cheios de lantejoulas e plumas, e com as sobrancelhas arranjadas; durante alguns segundos julgar-nos-íamos numa matinée em Moscovo. Mas, passada essa decepção inicial, e ao seu primeiro salto, o universo reconstrói-se-nos sem ideal nem esperança e o debate público, como um circo mau, prossegue o seu curso.
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7 COMENTÁRIOS

Caro Miguel
Os meus parabéns. Fez a mais completa descrição da Assembleia da República e dos debates políticos na TV que já vi por aqui.
Também extensível a programas sobre desporto.

Boa prosa. Enquanto a lia ía pensando nas expectativas que criamos ao ler as narrativas do Shaubel(circo bom) e as palhaçadas do Varifakis(circo mau); vamos a ver se corresponde a imagem que temos : um lado eficiente e certo , do outro a retórica rodriguinha mas ineficiente que acaba por se estatelar; mais emocional têm sido, como já o tinham sido a retorica socratica ou de Vale e Azevedo.

Estes palhaços são “democráticamente” eleitos.O menos mau processo de organizar o “casting”

O Pedro, “evidentemente”, é o palhaço rico.

A velocidade mata tudo: o Tempo, o Bem e o Mal e a Memória. Até este artigo já foi esquecido.

Os circos, bons ou maus, podem não ter muito interesse, mas as bancadas… também têm que se lhes diga.

A vida não imita a arte, imita a má televisão, disse o Woody Allen. O debate público, enquanto emanação da nossa vida coletiva, nunca poderá aspirar a ser sublime e tem dificuldade em fugir ao patético. Este é o lado mais deprimente da democracia. É vermos constantemente espelhado naqueles que elegemos o reflexo da nossa própria mediocridade.

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