terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

“Não se pode ler a Lei Mãe a partir do regimento”- Teodato Hunguana

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Tomada de assento ou posse?
Teodato Hunguana, antigo ministro da Justiça com passagem pelo Conselho Constitucional, esclarece a polémica sobre a posse dos deputados
Há debates que vão subindo de tom, sobre a tomada de posse dos deputados da Assembleia da República e membros das Assembleias Provinciais. Quais são as reais implicações legais desta situação nas duas vertentes?
A implicação legal da não tomada de posse é a perda de mandato, claramente. Se as pessoas não tomarem posse nos prazos em que o devem o fazer, perdem o mandato. Isso não tem outras implicações a não ser essas. Em caso de não tomarem posse, podem ser substituídos pelos suplentes. Não terá implicações em relação à Assembleia da República nem no aspecto de legitimidade pois, se tiver quórum para reunir e deliberar, não há nenhuma deficiência de legitimidade nem nada que se pareça com isso. O número dos deputados existentes garante a constituição e funcionamento da Assembleia em termos absolutamente normais, do ponto de vista legal, jurídico e político.
O constitucionalista Gilles Cistac disse que, independentemente de não tomarem posse, os deputados podem exercer o seu mandato e só o perderiam se não tomarem os assentos. Qual é o seu entendimento sobre isso?
O doutor Gilles Cistac levanta um problema pertinente, do ponto de vista da interpretação correcta da Constituição. Quando falamos de Estado de Direito, dizemos que a Constituição deve ser respeitada e interpretada correctamente e não por conveniência. Eu estou atento a este debate e tenho seguido os vários pronunciamentos. A Constituição fala de dois órgãos de soberania, nomeadamente, o Presidente da República e a Assembleia da República. O Presidente da República é um órgão individual eleito por via do sufrágio universal e, segundo a Constituição, deve ser investido. Quanto aos deputados, a Constituição diz apenas que tomam assento. O início do mandato dos deputados é marcado pela primeira sessão da Assembleia. Os deputados perdem o mandato se não tomarem o assento ou se ultrapassarem o número de faltas estabelecido no regimento. Cada deputado tem um assento ganho por meio das eleições e por via da validação e proclamação dos resultados pelo Conselho Constitucional. Ele não ganha qualidade de deputado quando chega a 24 de Junho. A qualquer momento, durante o funcionamento da plenária, eles podem tomar assento. Neste momento, a segunda sessão não está em funcionamento e não há, nos termos da Constituição, como esses deputados tomarem posse. A Constituição diz que compete ao Regimento estabelecer o número de faltas que, uma vez excedido, tem como efeito a perda de mandato. Para mim, estamos perante uma situação idêntica àquela do MDM que elegeu um número de deputados inferior ao suficiente para constituir bancada. Ai, tivemos que ir para a Constituição que reconhecia que aqueles deputados, sem estabelecer nenhuma limitação, tinham o direito de constituir a bancada. Hoje, estamos numa situação idêntica em termos de interpretação. A tomada de assento significa tomar fisicamente o assento e ser notado na Assembleia, não é mais do que isso. A nível regimental, nós organizamos uma cerimónia de investidura dos deputados, mas a Constituição não prevê isso. O problema é em relação à contagem daqueles 30 dias do regimento, contados a partir da tomada de posse que não existe na Constituição. Para contarmos os 30 dias nos termos da Constituição, temos que nos referir ao funcionamento da plenária. O deputado que tomou posse não apanha faltas que não sejam faltas ao plenário. Se o plenário não está a funcionar, ele não tem faltas.
Então, considera que o Regimento da Assembleia da República pode ser inconstitucional?
Eu considero que esta reflexão nos obriga a uma revisão do Regimento, do mesmo jeito que tivemos que o fazer aquando da necessidade de se admitir ou não a constituição da bancada do MDM. É preciso revisitar e discutir com rigor este problema e resolvê-lo a partir da Constituição, porque não podemos cometer o erro de ler a Constituição a partir do Regimento.
 Ao remeter assuntos tão fundamentais ao Regimento, não terá a Constituição algumas lacunas? Não há, também, que se tocar na Constituição em relação a estes aspectos?
Eu acho que não. Não foi necessário para os outros e não é necessário para nós. Quando a Constituição remete à lei ordinária, o legislador ordinário tem que ser muito atento ao regulamentar, porque não lhe está a ser dado um poder discricionário. Há princípios que a Constituição estabelece e que, depois, remete ao legislador ordinário a competência para os desenvolver, mas não dá liberdade total e inclusiva ao legislador ordinário de desenvolver para além dos princípios constitucionais. Eu penso que não há nenhuma lacuna ou deficiência da Constituição, nós temos que ser humildes e aceitarmos onde tivermos cometidos erros, porque participei desde 1994 nas revisões constitucionais e regimentais e, se calhar, nunca discutimos muito profundamente estes problemas. Estamos a ser forçados por situações novas a pensar mais a fundo não porque não podemos resolver os problemas de uma forma expeditiva. Nós tivemos uma situação anterior em que deputados da Renamo não tomaram assentos no princípio e vieram tomar posteriormente. Agora está a levantar-se o problema porque há uma vontade expressa do seu líder de que não tomem posse, pretendendo dizer que só vão tomar posse quando ele decidir, mas não é assim, não é quando ele decidir, vão tomar posse nos termos da Constituição e da lei. Sob pena de nós podermos tomar uma decisão hoje sobre esta questão e depois confrontarmo-nos a nível de instâncias que terão que dirimir em definitivo estas questões, com deliberações diferentes ou contrárias com isso, daí que temos que nos precaver agora com interpretações rigorosas da Constituição.
São aspectos de interpretação que divergem os juristas em torno desta matéria. A quem cabe em última instância clarificar esta situação?
Como é uma questão de constitucionalidade, envolvendo a Constituição, caberá à jurisdição constitucional do nosso país, que é o Conselho Constitucional, se a questão tiver sido encaminhada, porque o Conselho Constitucional não vai buscar a questão. Se alguma parte interessada e com legitimidade, se sentir prejudicada com alguma decisão, poderá eventualmente levar ao Conselho Constitucional. Nessa altura, este órgão terá que dirimir a questão em definitivo e com muito rigor porque é a última instância.
A Assembleia da República refere que, volvidos 30 dias depois da tomada de posse, convocam-se os suplentes. Esta medida é nula porque contraria a Constituição da República?
Eu não me vou pronunciar se o acto é nulo ou não. Sugiro uma leitura e interpretação rigorosa da Constituição. Isso é que pode determinar a validade ou invalidade. Eu dou-lhe aquilo que considero a interpretação correcta de um assunto perante o qual não posso permanecer indiferente. É de um ponto de vista estreitamente jurídico que estou a confrontar a análise feita pelo Doutor Gilles Cistac. O que acontece é que, decorrente da importância política que os órgãos têm, concebem-se coisas que achamos que estamos à altura dessa importância política.
É o caso da posse, que ao longo dos anos vem assumindo um carácter mais formal. É preciso que os aspectos formais não se sobreponham ao fundo da questão. Não comecem a retirar delas implicações jurídicas que elas não têm, por mais grandiosas que elas possam ser. Veja que a investidura do Chefe de Estado nos termos da Constituição é feita em acto público, perante os deputados da AR e demais representantes de instituições e órgãos de soberania. Olhe para a Praça da Independência no dia da tomada de posse, onde é que estavam os deputados? Eu tive dificuldades de vê-los, mas pude ver onde estavam os convidados, não é disso que a Constituição fala. A Constituição determina que é perante os deputados e os demais representantes dos órgãos de soberania que o Chefe de Estado é investido.
Referiu-se que os deputados, uma vez eleitos e confirmados pelo Conselho Constitucional, já são deputados e que vão à Assembleia da República como deputados. Entretanto, no dia da tomada de posse, o Chefe de Estado cessante clarificou que só seriam depois da tomada de posse.
É esse o problema. De onde resulta a qualidade de deputado? É do acto eleitoral e da validação e proclamação pelo Conselho Constitucional. Ele apresenta-se à assembleia e a mesma verifica se é  aquela pessoa que consta do acórdão.

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