segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

PORTUGAL NA ONU A GRANDE BATALHA



Texto de ORLANDO RAIMUNDO
Anos sessenta. Desarmamento. Colonialismo. Direitos Humanos. 
São os grandes debates que moldam a História. 
Na ONU, a presença de Portugal em África é posta em causa, sob as acusações de massacres, deportações, trabalho forçado, genocídio. 
Os delegados de Portugal procuram a todo o custo inverter a situação. 
Trinta anos depois, os segredos desvendam-se. 
A correspondência diplomática confidencial entre Vasco Vieira Garin e Franco Nogueira é o retrato fiel da estratégia política salazarista, que só em 1974 seria derrotada.
“ADORO PORTUGAL PORQUE É  um país de irrealidade política."
Palavras de André Malraux durante um almoço no Châteaux des Champs, em Paris, no dia 6 de Outubro de 1960. Presentes, Marcello Mathias, ministro dos negócios Estrangeiros, e Franco Nogueira, director-geral dos negócios Políticos do MNE. Na ONU, os grandes debates da Assembleia Geral incidem sobre o desarmamento. Nikita Khruschev bate no tampo da mesa com o sapato. URSS e EUA querem dividir o universo. Eisenhower cede a cadeira a Kennedy. E Portugal está nas bocas do mundo, acossado pelos países afro-asiáticos. É a política colonial portuguesa que está em causa. Agora, com moções e alegações, críticas e considerandos, um clima desfavorável na ONU ao governo de Salazar, que vem desde os finais de 1959.
A Libéria, o Gana, a República da Guiné e a Índia consideram que Portugal viola a Carta das Nações Unidas e apelidam-no de “racista".
As alegações dos países afro-asiáticos tornam-se sistemáticas. Seguem-se os países de Leste, nomeadamente a URSS e a Checoslováquia. “Existência em Angola alem de trabalho forçado, prisões políticas, escravatura, massacres, deportações e quase total ausência de serviços de saúde e de educação para os negros" são algumas das acusações ouvidas pelos representantes da Missão permanente de Portugal na ONU.
O mês de Novembro desse ano foi pródigo em denúncias. Os acusadores consideravam que as autoridades portuguesas em África levavam a cabo uma “política de extermínio". O representante da República da Guiné, falando por ordem de Sekou Toure, apelidou essa política de “exploração escandalosa" e assinalou o colonato de Cela como “o símbolo da discriminação a favor do branco". O mesmo delegado citou informações de um relatório de Holden Roberto, dirigente da UPA (União das Populações de Angola), apresentado à XIV Sessão da Assembleia Geral. Segundo este documento de 14 páginas, existiam “campos de concentração, assassínios e deportações de nacionalistas, falta de escolas e de hospitais". O texto foi enviado de Nova York pelo chefe da Missão portuguesa na ONU, Vasco Vieira Garin, a Franco Nogueira, com a indicação de “confidencial”, em 14 de Dezembro de 1959. Nesse ofício pode ler-se a seguinte nota: “Ao Ultramar chamando a atenção para a gravidade do documento e do uso que do mesmo é feito”.
Os países afro-asiáticos e o bloco comunista votaram na Quarta Comissão um projecto de resolução, propondo a criação de um comité especial de seis membros, com a tarefa de analisar a Carta ao pormenor e elaborar um estudo isento sobre a forma correcta de cumprir os seus pressupostos e formalizar as linhas---mestras do Estatuto dos Territórios Não-Autónomos. Seria uma espécie de tratado teórico que serviria para todos os países coloniais, mas na opinião da Missão em Nova York era uma maneira encapotada de “ultrajar Portugal” e uma manobra para continuar a “defender a autonomia de Angola”. O projecto subiu à XIV Assembleia e foi aprovado em plenário a 15 de Dezembro, tendo o Comité dos Seis ficado composto pela Índia, México, Marrocos, Holanda, Reino Unido e EUA..
As denúncias foram, entretanto, engrossando: Iraque, Ceilão, Birmânia, Mali, Jordânia, Ucrânia, Bolívia, El Salvador, entre outros. Portugal foi amiúde interpelado por não prestar informações nem apresentar relatórios sobre os territórios do Ultramar violando o artigo 73º da Carta das Nações Unidas, o qual obrigava as nações a tratar os países dependentes ou não-autónomos” com o mesmo sentido de responsabilidade que os territórios sob tutela e a assegurarem o respeito pela cultura, progresso político, económico e social, desenvolvimento da instrução, tratamento em igualdade e protecção contra os abusos”. O governo português não só não cumpria estes deveres como não “desenvolvia a capacidade de esses povos se administrarem a eles mesmos segundo as aspirações políticas das populações”.
No ofício “confidencial” para Franco de Nogueira, de 1 de Abril de 1960, o embaixador Garin informava que se encontrou com o representante do Gana, Quaison-Sackey, em casa do embaixador da Finlândia, “depois do jantar, ao café”. Sackey considerava que Angola e Moçambique deveriam tornar-se independentes “dentro de uma comunidade à inglesa” ou corriam o risco de serem lançados nos braços imperialistas da África do Sul. Garin respondeu que “em todos os países havia um reduzido número de pessoas que, por aberração mental, tinham ideias diferentes de todas as outras”. E não aceitou a proposta de Sackey para visitar Angola pois, salienta na carta a Franco Nogueira, “ficara com a impressão de que o embaixador queria ir lá pregar a subversão e a sedição”. E termina deste modo: “E lá nos separámos com mútuas e amistosas palmadas nos ombros”.
O primeiro-ministro britânico, Harold MacMillan, havia dado o tom num discurso proferido na Cidade do Cabo, durante uma viagem que efectuou pela África em Fevereiro de 1960. Pela primeira vez falou de uma “consciência nacional africana e de um vento de mudança que sopra através do continente”. Esta terminologia passou, a partir daí, a ser adoptada nos debates da ONU.
Em Outubro e Novembro desse ano, os ataques à política portuguesa em África foram de tal modo graves que levaram o embaixador Garin a finalizar, do seguinte modo, o telegrama de 2 de Novembro, enviado pela Missão para o MNE em Lisboa: “Atmosfera evidentemente carregadíssima”. E o seguinte comentário no telegrama do dia 8 do mesmo mês: “Franco Nogueira tem-se apercebido da progressiva e ostensiva atitude dos delegados dos países amigos em evitar contactos com ele”.
A conquista da independência do Congo-Léopoldville (ex- Congo Belga) em Julho de1960 veio tornar ainda mais problemática a situação de Angola, que com aquele país tinha centenas de quilómetros de fronteira, com etnias idênticas de um e de outro lado. E Washington e a Rússia sabiam que o domínio do Congo era decisivo para o domínio  da  África Central. Os outros vizinhos de Angola, Guiné Conakry,     Congo-Brazzaville e Senegal, eram já independentes.
“Cega, ignominiosa, cínica e louca", assim considerava o representante do Mali na ONU a política da Administração portuguesa. Franco Nogueira defendia-se como podia. Negando tudo e qualificando as denúncias internacionais de “injuriosas calúnias”, como se pode ler no Jornal do Comércio de 9.11.60. Franco Nogueira diz hoje que 95 por cento das acusações que os delegados  faziam  contra Portugal “eram falsas e puras invenções".
A estratégia política de Franco Nogueira era tão simples como isto: não aceitar dar informações, não permitir visitas de comissões da ONU a Angola nem a elaboração de relatórios por parte de Portugal, pois, se o fizesse era reconhecer que Portugal possuía “colónias ou  territórios não-autónomos", numa altura em que Salazar procurava, a todo o custo, fazer passar por cima da mesa a denominação “Províncias Ultramarinas". As palavras de Américo Tomaz,  reproduzidas  pela imprensa de 5.11.60, a propósito das exigências da ONU, davam a entender a intransigência de Lisboa:
“A nossa resposta será sempre a mesma: um seco e definitivo não.”
Salazar encontrou mesmo uma fórmula sobre o conceito de território não-autónomo para responder aos ataques dos países afro-asiáticos: “O Ultramar não possui vocação para a independência porque já é independente com a independência da Nação. Por isso a ONU não tem o direito de exigir informações sobre a como o Ultramar é administrado. “Qualquer referência ou informação sobre a matéria em discussão seria tida por Portugal como “uma interferência nos seus assuntos internos".
O ano de 1961 representou para o regime a soma de inesperados desaires. O paquete Santa Maria foi assaltado pelo grupo de Henrique Galvão no mar das Caraíbas. Salazar estava doente com uma pneumonia. No estrangeiro os relatos de massacres em Angola lançavam uma mancha negra sobre o governo de Lisboa e aguçavam o apetite aos que atacavam Portugal. O ataque às prisões, ao quartel da PSP e à emissora oficial de Luanda, a 4 de Fevereiro, marcava o início da guerra. Jânio Quadros era eleito presidente do Brasil e John Kennedy dos EUA. Ambos discordavam da política do regime português.
O golpe do general Botelho Moniz, ministro da Defesa de Salazar, abortou, mas deixou marcas. Moniz tinha o beneplácito de Washington. O presidente Kennedy, Dean Rusk, secretário de Estado, e C. B. Elbrick, embaixador dos EUA em Lisboa, estabeleciam o elo de ligação. Mudar “as ideias” de Salazar em relação a África era a intenção dos americanos. Mudar o governo, as Forças Armadas e a política de Salazar “dentro do quadro institucional” era o objectivo de Moniz. Entre outros “males” , o Forte de S. João Baptista de Ajudá é atacado e ocupado pelas tropas do Daomé, e Portugal é atravessado de Norte a Sul por greves e manifestações. Palma Inácio assalta um avião da TAP e a PIDE prende dezenas de oposicionistas. O ano termina com o assassinato do escultor comunista José Dias Coelho e com a ocupação, sem resistência, de Goa, Damão e Diu pelas tropas indianas.
Em Angola, a situação piorava de dia para dia. A policia havia prendido o dirigente Agostinho Neto em Julho de 1960. Este facto desencadeou, em Icolo e Bengo, a sessenta quilómetros de Luanda, uma manifestação que foi brutalmente reprimida pelas tropas portuguesas. Fizeram-se aqui as primeiras vítimas da luta: 30 mortos e 200 feridos. Mas em Janeiro de 1961, após o apelo à revolução por parte do MPLA, deu-se o massacre do povo do vale do Kassanje. Tanto Franco Nogueira, que tomara posse a 4 de Maio de 1961 do cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros como a delegação portuguesa na ONU continuavam a considerar que tudo o que os afro-asiáticos diziam “eram invenções”. O que se passou, segundo escreve Franco Nogueira no livro Salazar - A Resistência, foram "alguns tumultos, desafios às autoridades, ataques a brancos e a postos administrativos por parte de populares negros, invasão de algumas propriedades". E acrescenta: "Com a intervenção firme das forças da ordem é restabelecida a calma."
Aquelas ditas "invenções" começaram a ter ecos fora dos corredores da ONU. A posição do Partido Trabalhista inglês foi bastante notada como refere o telegrama de 10 de Maio de 1961 enviado pela Embaixada de Londres para o MNE em Lisboa. Em papel timbrado da Câmara dos Comuns, 38 membros do PT subscreveram um abaixo-assinado em que se mostravam “horrorizados pelos acontecimentos em Angola e Moçambique". E salientavam: “Existe autêntica evidência de massacres de milhares de africanos debaixo de opressão brutal da ditadura portuguesa, incluindo uso de bombas de napalm."
Nesse mesmo dia, a Missão da ONU dava conta em telegrama ao MNE de que o embaixador Zorin da URSS era dos mais activos e tinha enviado, na véspera, uma carta a Boland, presidente da Assembleia Geral, assegurando-lhe que “não poderiam demorar muitos mais dias" as nomeações para a constituição de um comité para investigar o caso de Angola.
Pela primeira vez na história dos debates da ONU sobre problemas portugueses, os EUA votavam contra Portugal no Conselho de Segurança. Este voto hostil significava, na opinião de Franco Nogueira, que "existia um plano dos EUA para pôr Portugal fora de África e que os países ocidentais não se apercebiam disso". No seu diário Um Político Confessa-se, Franco Nogueira escreve: "Se tudo isto não é uma colossal malha, então não sei o que seja. Aliás, na Embaixada de Espanha, depois de um jantar, Kibrick vejo ter comigo e foi claro: ‘Os Estados Unidos apoiam sem restrição a autodeterminação em África’."
Ao lado dos EUA, foram particularmente duros o Ceilão, a Libéria e a União Soviética. A delegação americana era chefiada por Adlai Stevenson, membro destacado do Partido Democrático e candidato presidencial derrotado por Kennedy. O próprio Stevenson telefona para a Casa Branca a aconselhar-se. O presidente, após consultar Dean Rusk, diz-lhe que:
“Yes, against Portugal”. (foram as instruções de Kennedy)

A resolução foi derrotada no Conselho por não ter conseguido uma maioria de votos positivos. 
Em Portugal, a palavra de ordem do regime ia no sentido oposto ao da ONU: “Para Angola rapidamente e em força”. Salazar chama Nogueira “num domingo de céus baços, húmido e mortiço" e diz-Ihe: "Não é por a atmosfera internacional nos ser hostil num dado momento que nós  vamos mudar a nossa política”. E sublinhou-lhe que não “iria ceder ou fingir que cedia aos americanos”, como queria Botelho Moniz. Manifestações de apoio ao regime são levadas a cabo junto da Embaixada dos EUA em Lisboa e do consulado americano em Luanda. São exibidos cartazes com as palavras de ordem:  “Angola  é  nossa; América para os peles-vermelhas; Abaixo a ONU; Fora dos Açores.”

Nos EUA, o clima político também não é propício. Kennedy sofre um desaire na Baía dos Porcos e rende-se a Fidel Castro. Na Argélia, os oficiais do corpo expedicionário francês revoltam-se com o objectivo de provocar o derrube de De Gaulle, mas este não se intimida e reforça a sua linha de defesa da autodeterminação para os países africanos. A derrota de Kennedy dá força ao bloco soviético e afro-asiático. É nesta altura que Yuri Gagarin surpreende o mundo com a sua proeza espacial, numa órbita à Terra que durou cerca de 90 minutos, à velocidade de 30 mil quilómetros por hora. Em Paris e Londres a situação na África portuguesa não fica na gaveta. Colocam-se ao lado dos EUA, mas não vêem com bons olhos uma mudança de regime em Lisboa. A Libéria propõe o regresso da questão de Angola, mas agora na Assembleia Geral e pede prioridade no debate. Era a voz dos afro-asiáticos que não se dava por vencida. Como salienta Franco Nogueira, estes países tinham conseguido aprovar numerosas moções na ONU, mas ainda não possuíam “uma resolução antiportuguesa emanada da mais alta instância da organização que ligasse a atitude do governo de Lisboa às questões da paz e da segurança.”
Um projecto de resolução que condenava Portugal foi finalmente aprovado em Junho de 1961, no Conselho de Segurança. Lisboa tinha de prestar contas ao mundo, de uma vez por todas.
Semanas antes, a XV Assembleia Geral criara (Moção nº 1603, de 20 de Abril) uma comissão afro-asiática, conhecido por Comité dos Cinco, para estudar a situação em Angola e elaborar um relatório. Integravam-na a Bolívia, Dahomé, Federação da Malásla, Finlândia e Sudão e era presidida por Carlos Salamanca, da Bolívia.
Numa carta dirigida a Franco Nogueira, datada de 19 de Maio, o secretário - geral da ONU, Dag Hammarskjold, envia-lhe o texto dessa resolução, sublinhando a necessidade de o ministro prestar atenção ao parágrafo 1: “As recentes perturbações e conflitos em Angola resultaram em perdas de vida dos seus habitantes e a sua  continuação poderá pôr em perigo a manutenção da paz e da segurança internacionais”.
Poucas foram as vozes que estiveram ao lado de Franco Nogueira. O embaixador de Espanha em Portugal, José Ibañez-Martín, escreve ao ministro português a informar que o embaixador daquele país na ONU, De Piniés, “tinha boas relações com Garin e iria fazer tudo para que a posição dos países afro-asiáticos não fosse para a frente". Iria até tentar que o embaixador do Chile, presidente do Conselho de Segurança na altura, tomasse esse partido. Ibañez-Martin salientava nessa carta que Carlos Salamanca “hizo saber su buena disposición y su deseo de ayudar, en cuanto él pueda, a PortugaI”.
O embaixador Garin enviara, entretanto, a MNE um aerograma confidencial dando informações sobre a vida privada de Carlos Salamanca: “Tem ideias muito esquerdistas. A sua mulher, inglesa, tinha relações de amizade com o representante da Índia Krishna Menon. Parece todavia que Salamanca e sua mulher vivem agora praticamente separados. Salamanca não será em qualquer caso pessoa de muita confiança”. E acrescenta o embaixador Garin: “Talvez não deixasse de ser útil utilizar De Piniés para Ihe transmitir quaisquer informações que nos convenha lhe cheguem ao conhecimento. Isto teria também vantagem de trazer oportunidade a De Piniés para de vez em quando se poder avistar com Salamanca e procurar obter dele informações sobre o seguimento dos trabalhos do Comité e planos deste.”
O próprio Carlos Salamanca escreve a Garin urna carta confidencial pedindo “o apoio e colaboração” de Portugal. Aquele comité preparava já um projecto de resolução contra Portugal, subordinado aos seguintes pontos: “Lamentar perdas de vidas; reafirmar moções anteriores aprovadas na Assembleia; insistir com Portugal para colaborar com subcomité e insistir por reformas. "No dia 3 de Junho os representantes de Inglaterra deslocaram-se à Missão portuguesa para aconselhar Garin e à delegação a nunca dizer que não colaborava com a subcomissão". No dia anterior. o New York Times escrevia em editorial: “Os portugueses devem orientar-se no sentido de dar autonomia às colónias para evitarem o holocausto.”
Franco Nogueira tinha já dado instruções à Missão para que recusassem participar na reunião  do  Conselho  de Segurança da ONU. Corno o Comité dos Cinco ainda não elaborara o relatório sobre Angola, o ministro não encontrava justificação para “qualquer reunião no Conselho de Segurança”, e salientava que “não havia matéria nova para debate naquele Conselho”, cuja reunião prevista tinha por objectivo “proporcionar oportunidade de especulação, de propaganda e de exercer pressão política”.
No início de Junho, na Assembleia Geral, o governo português sofreu urna onda de críticas e acusações directas. A Libéria dizia que Portugal “atrasava o relógio da História”. Desde o Congo Brazzaville a  Marrocos, desde o Ceilão ao Equador, as críticas não paravam. O Gana fechou mesmo os portos aos navios portugueses e cancelou importações, acusando o governo de massacrar entre 30 e 100 mil angolanos; a Espanha continuou ao lado de Portugal. O embaixador daquele país em Lisboa entregou uma nota informativa a Franco Nogueira, a I 5 de Junho, com a menção de “muy reservado” dando conta de que o ambiente nas Nações Unidas era de “grande hostilidade” e que o Senegal decidira adiar o estabelecimento de relações diplomáticas com Espanha devido ao apoio que esta estava a dar a Portugal.
Os jornais continuam a publicar artigos sobre os debates na ONU, retratando a situação em Angola corno “um inferno vivo”. Garin enviara entretanto a Franco Nogueira um telegrama com data de 10 de Junho e com indicação de “secreto”, acerca dos debates no Conselho de Segurança, vincando que “era necessário encontrar uma fórmula para colaborar com a subcomissão, bem como deixar entrar jornalistas em Angola”. Nessa carta, o embaixador Garin salientava: “É preciso ganhar tempo para repacificação (...) e ludribiá-los mediante flexibilidade política, tirando-lhes o argumento de que ignoramos inteiramente a resolução do Conselho de Segurança. Mesmo se prejudicássemos certos princípios para o futuro, voltaríamos a encaixar-nos neles com qualquer pretexto quando o perigo mais iminente que estamos correndo tivesse passado”.
Nesta mesma data, o Conselho pede o relatório ao subcomité e exige que acabe a repressão em Angola, reafirmando que Portugal deve agir de acordo com as resoluções da ONU de Dezembro de 1960, segundo as quais “nenhum povo pode ser subjugado nem explorado”. A 21 de Julho foi a vez de o Comité dos Cinco reunir e denunciar a política ultramarina portuguesa e a violação de direitos e exigir a liberdade para o povo angolano. A situação foi considerada “infinitamente mais séria do que anteriormente e uma ameaça para a paz e segurança, pelo que se reservava o direito de pedir uma reunião de emergência ao Conselho de Segurança”. Nessa reunião, foi feito um pedido para que o Comité visitasse Angola para investigação, o que  foi recusado pelo governo português. Carlos Salamanca deslocou-se a Lisboa e no dia 26 de Julho encontrou-se com Salazar e diversos ministros e insistiu, sem êxito, na necessidade dessa visita.
O isolamento de Portugal tornava-se cada vez maior de dia para dia. Laos, Polónia, Gabão, República Centro-Africana, Israel,  Nepal,  Indonésia, Madagáscar, Níger, Honduras, China, Bulgária, Bielo-Rússia, entre tantos, tomaram posições claras de condenação ao longo dos meses de Setembro, Outubro e Novembro.
No telegrama de 6 de Setembro de 1961, enviado pela Missão ao MNE, Garin informava que Gromyko, ministro dos Negócios estrangeiros da Rússia, dissera na Assembleia Geral da ONU que “a guerra de aniquilação e de extermínio do povo angolano só era possível com o apoio que Portugal tinha da NATO, pois era um país atrasado e protegido por certas potências imperialistas”. O Gana foi mais longe. O telegrama de 26 de Setembro, enviado pela Missão ao MNE, dava conta da posição ganesa: “Portugal já matou 100 mil angolanos, homens, mulheres e crianças e está a liquidar todos os habitantes que sabem ler, escrever e andar de bicicleta.”
Internamente, os angolanos não estavam parados. Holden Roberto,  que  era apoiado pelos EUA, fora entrevistado a 17 de Novembro de 1961 por urna emissora nova-iorquina, tendo sido apresentado corno chefe dos nacionalistas. Roberto disse que preparava urna ofensiva em larga escala nos finais de Novembro e até meados de   Dezembro para “aproveitar as chuvas”. Garin dá conhecimento disto  a Franco Nogueira e assinala que a presença de Holden Roberto na ONU tem a ver com os debates em curso.

O relatório do Comité dos Cinco havia sido entregue a 26 de Novembro de 1961. No dia 9 de Dezembro, Franco Nogueira enviava a todas as rnissões no estrangeiro uma circular com o texto da comunicação da Missão portuguesa na ONU, que comentava aquele relatório. O delegado português acusava-o de “imparcialidade, de omissão dos massacres perpetrados por Holden Roberto". Pôs em causa as informações recolhidas pelo Comité dos Cinco no Congo-Leopoldville e disse que o relatório "não fala do apoio militar dos EUA". Afirmava que a situação em Angola, ”era normal, que as populações estavam a regressar" e concluía que o relatório fora elaborado sobre “falsos princípios e viciado à partida". 
As exigências do Comité dos Cinco e os pedidos de cooperação expressos por Carlos Salamanca continuaram a não ser aceites pelo governo português. Franco Nogueira escreveu a Salamanca em 16 de Março: "O governo português, como qualquer governo responsável, não podendo consentir que a sua palavra e os elementos por ele fornecidos sejam arbitrariamente postos em dúvida ou negados, julga inútil e sem interesse qualquer cooperação que pudesse prestar." E acrescenta que está disposto a dar "uma informação suplementar sobre um problema preciso ou um facto concreto, considerando tais solicitações segundo os seus méritos".

A mesma posição foi expressa em carta de Franco Nogueira enviada ao embaixador finlandês Ralph Enckell, vice-presidente do subcomité sobre Angola, datada de 21 de Junho de 1962. Escreve  Franco  Nogueira: "Sendo a situação em Angola de completa paz, ordem e normalidade, não compreende o governo português a que desenvolvimentos recentes pretende o subcomité aludir nem que problemas deverão ser objecto de solução pacífica num território que se encontra em paz.”
Confrontando-se o esboço da carta e o original enviado a Ralph Enckell, verifica-se que foi riscada, no ponto 7, a seguinte  frase: “(...) Se V. Ex.a. desejar  visitar Angola, não tem o Governo Português qualquer objecção”. Franco Nogueira não quis arriscar a visita do vice-presidente, mesmo a titulo individual.

Carlos  Salamanca voltou a insistir, a 13 de Julho de 1962, em carta confidencial  enviada  a  Franco Nogueira, para que este Ihe fornecesse informações suplementares acerca de Angola. O ministro respondeu a 30 de Julho, reafirmando que “a paz existe, não há presos políticos nem execuções, os angolanos estão a regressar às terras”. Tudo é negado 
. 
Mas a moção 1819, aprovada pela XVII Assembleia Geral da ONU, em 18 de Dezembro de 1962, condenou a “política de extermínio” levada a cabo por Portugal em Angola. O governo português “deveria reconhecer o direito de Angola à autodeterminação, terminar a sua acção armada e as medidas de repressão, libertar os prisioneiros, encetar conversações com os grupos políticos de Angola para a transferência de poderes”. A moção foi aprovada com 57 votos a favor, 14 contra, 18 abstenções e 21 ausências. Para Franco Nogueira, “politicamente foi uma grande vitória”. 

Votaram a favor de Portugal a Inglaterra, a Bélgica, os EUA, a França, a Itália, o Canadá, a Turquia, a Austrália, a Holanda, a Nova Zelândia, a Espanha, a África do Sul e o Luxemburgo.
Mas as decisões da ONU caíam em chão duro e eram sistematicamente “esquecidas" por Salazar, Franco Nogueira e Garin. Em Dezembro desse mesmo ano, um curioso “apontamento" do gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar dava conta ao MNE, em carta enviada ao director dos Negócios Políticos e da Administração Interna, da última estimativa do número de refugiados angolanos nos Congo: 8500 no Congo-Brazzaville e 158.500 no Congo-Leopoldville. Nas matas andavam fugidos “apenas" 392 mil nativos. 
POUPAR 0 DINHEIRO DO ESTADO

“Procuro Jaja Wachuku, ministro dos Estrangeiros da NIGÉRIA, no seu apartamento do Waldorf-Astoria. Está mais do que sumptuosamente instalado. (Eu para poupar o dinheiro do Estado, é toda a delegação portuguesa, estamos em dignos mas modestos hotéis de terceira ordem ; e tenho só um quarto, e sinto-me multo orgulhoso por isso, e não será por esse facto que desempenho menos bem as funções, mas os ministros e delegados do Terceiro Mundo, esses vivem na magnificência.) Wachuku tem quarto, sala de jantar e salão privativos; e tudo do mais  caro e luxuoso que o Waldorf possui. É homem desmesuradamente obeso, e recebe nas suas vestes brancas, que dão a impressão de serem constituídas por uma série de lençóis a envolverem o corpo. Senta-se no sofá depois alastra-se no sofá, depois puxa com os pés  uma cadeira, depois com um sapato tira o outro e com o pé nu tira o sapato que ficou, e depois coloca os dois pés em cima da cadeira: fica quase deitado e põe as mãos e enclavinha os dedos por cima do barriga proeminente. E então fala da autodeterminação. Sobretudo do papel decisivo que ele, Wachuku, tem na Nigéria, na África, verdadeiramente no mundo, em suma. Concordei, e não tive escrúpulo em administrar lisonja em doses maciças. Da conversa resultou nada" 
Nova YorK, 16 do Outubro,  1963  
Um Político Confessa-se Diário do Franco Nogueira 
 

(In Revista “GRANDE REPORTAGEM” Março de 1992)

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