sábado, 10 de janeiro de 2015

O triunfo da incompetência

OPINIÃO

A avaliação dos Estudos Clássicos em Portugal

Quando alguém é avaliado e tem uma má nota com implicações profundas para o futuro, como foi o caso do CEC, o mínimo que se pede é que essa avaliação seja séria.
Na decisão final da avaliação dos centros de investigação portugueses, vem o painel de humanidades elogiar o Centro de Estudos Clássicos de Lisboa (CEC) pelo estudo que propôs “da história e da recepção dos clássicos na Lusitânia”. Muito relevante ao que parece – e talvez o fosse, se no projecto apresentado pelo CEC palavras como “Lusitânia” ou “lusitano” tivessem sido referidas; nunca foram...
Nem percebo a que se referem os avaliadores, já que nunca propusemos estudar a história dos clássicos e a Lusitânia romana tinha capital em Mérida (que hoje fica em Espanha) e excluía o território a norte do Douro. Os avaliadores acham também positivo que estudemos os relatos em latim dos visitantes na China. Mas… quais visitantes? Nós propusemos estudar relatos em latim, mas escritos por missionários na Ásia. Elogiam também os “guias literários” que o CEC produz para um “número de sítios e regiões”. Poderia ser, de facto, interessante. O pior é que eu nem suspeito a que é que se estão a referir, porque o CEC não editou, não edita, nem propõe editar qualquer “guia literário” de sítio nenhum.
Quando alguém é avaliado e tem uma má nota com implicações profundas para o futuro, como foi o caso do CEC, o mínimo que se pede é que essa avaliação seja séria. Já para não dizer que o avaliado tem de reconhecer competência ao avaliador. Ora, nenhuma destas duas condições aconteceu na supostamente irrepreensível avaliação a que o dr. Seabra submeteu os centros de investigação portugueses.
Não foi uma avaliação séria: os casos referidos acima são apenas exemplos, todos retirados do último relatório, que mostram que a avaliação do CEC foi totalmente incompetente. E foi sempre assim desde o princípio: em resposta a todos os relatórios feitos pelos avaliadores, o CEC foi sempre obrigado a corrigir preconceitos acerca do papel dos Estudos Clássicos em Portugal e erros de facto sobre o que tinha proposto. Como é que o CEC pode confiar numa avaliação que, ainda por cima num relatório final, continua a apresentar os erros ou incompreensões que refiro acima? Que credibilidade é que isto tem?
Os avaliadores não eram pares nem competentes: por mais que o dr. Seabra venha repetir que foi uma avaliação por pares, é preciso dizer-lhe que uma mentira muitas vezes repetida não se torna uma verdade. O CEC errou quando aceitou uma visita de dois avaliadores em que continuava a não haver um especialista de Estudos Clássicos. De apenas duas pessoas ficou a depender o futuro de cerca de 30 investigadores e de quase meia centena de estudantes de mestrado, doutoramento e pós-doutoramento. Um dos avaliadores era especialista, segundo página própria, em lexicografia, bibliotecas digitais, aristotelismo, Renascimento, Iluminismo, Kant, Hegel, filosofia intercultural, história da universidade e património intelectual (deve ser a isto que chamam "inovação": um especialista em praticamente tudo desde o século IV a.C. ao século XXI). O outro era especialista em literatura italiana. Mas não tem importância: no fundo, toda a gente sabe que os gregos inventaram a filosofia e os romanos nasceram em Itália: é o que basta. Não deve ter qualquer importância para o dr. Seabra o facto de, durante a visita, nem saberem coisas tão elementares como que Nono de Panópolis escreveu em grego e não em latim…
O problema é que estes senhores dominam toda a ciência na Europa: basta abrir o site da já defunta European Science Foundation para ver que são sempre os mesmos a figurar em todos os comités – alguns deles tinham estado já na avaliação de 2007 e, se nada mudar, hão-de regressar em 2017 e em 2020. Trata-se de um grupo em que todos pensam o mesmo, determinando o que é a ciência e o que deve ser estudado na Europa. E, no entanto, é preciso dizer-lhes que estão errados. Tem a FCT do dr. Seabra alguma ideia para as humanidades ou para os Estudos Clássicos em particular sem ser a vacuidade a que chama "excelência"? Não tem: o que determinou a avaliação na área das humanidades foi a profunda arrogância de quem acha que basta saber umas coisas para avaliar os Estudos Clássicos. A falta escandalosa de pares nunca aconteceria no Reino Unido, em Itália ou na Alemanha. A única ideia que os avaliadores mostraram ter foi a de que os Estudos Clássicos deviam ser algo residual em Portugal: apenas poderíamos gastar o dinheiro dos contribuintes europeus (expressão dos nossos avaliadores) a estudar a recepção dos textos clássicos em autores “lusitanos” ou a fazer a sua tradução para quem não é capaz de ler a não ser português. Um dos avaliadores até foi condescendente: “um ou outro” de nós poderia dedicar-se alguma vez a algum autor mais antigo (“afinal não têm todos de se dedicar à recepção”) – mas isto deveria ser claramente a excepção.
Acham também que nos deveríamos dedicar a temas mais inovadores. Pergunto eu: o que é de facto inovador no campo das humanidades para a FCT do dr. Seabra? A sexualidade nos parques verdes? Os estudos de nu frontal e as novas texturas? É preciso dizer que não estamos abertos a esta “inovação”. Simplesmente não é compreensível que a edição crítica de textos inéditos em latim, o estudo da epigrafia, da poesia grega bizantina (que praticamente nunca mereceu qualquer atenção em Portugal) ou dos códices renascentistas portugueses com textos científicos não sejam tópicos considerados fundamentais; são-no em qualquer lugar do mundo, excepto para os avaliadores contratados pela FCT.
E não venham dizer que querem uns Estudos Clássicos mais internacionais do que são: o dr. Seabra esteve na abertura do congresso que recordou em Lisboa os 2000 anos da morte de Augusto, em Setembro de 2014 – foram mais de 120 comunicações¸ em cinco línguas, com publicação já assegurada na Olms-Verlag, contando com alguns dos nomes mais sonantes a nível mundial. Este é apenas o último exemplo de um esforço que poderia incluir várias outras iniciativas.
Eu não acho que o CEC seja excepcional; e, na estrita aplicação dos intervalos mínimos impostos pela FCT, até talvez não atingisse a marca de “excelente”. Mas é um centro realmente muito bom, que aposta em textos e temas nunca estudados, com real impacte internacional na área dos Estudos Clássicos e da Tradição Clássica, que aposta na formação de jovens e na atracção com êxito de investigadores estrangeiros, e com enorme potencial de crescimento. As perto de 80 pessoas que pertencem hoje ao CEC são um núcleo decisivo para a existência de toda uma área do saber em Portugal, uma das mais complexas no campo das humanidades, a exigir de cada investigador um longo período de formação específica. Em qualquer das grandes universidades dos principais rankings, os Estudos Clássicos constituem uma das áreas de maior prestígio e especialização; excepto no Portugal imaginado por esta FCT.
Professor da Faculdade de Letras de Lisboa

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