sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Matar até morrer…


A minha lista de inimigos deve ter aumentado significativamente nos últimos tempos por andar a distribuir dicas onde ninguém pediu por elas. Não me importo. Também é a última dica. Por enquanto. Estou a pensar em mais uma coisa que gostaria que fosse tomada em consideração pelo novo governo. É, na verdade, um princípio: se não és parte da solução, és parte do problema! É um princípio muito drástico, e geral, mas oportuno. Recebo os boletins da AIM e arrumo-os num cantinho até um dia precisar de alguma informação. Por vezes, porém, os meus olhos caiem sobre uma notícia quando abro o meu correio electrónico de manhã. E foi o que aconteceu antes de ontem. Deparei com uma notícia com o título “chuvas no centro e norte matam 84 pessoas numa semana”, cuja parte inicial transcrevo aqui:
“As chuvas torrenciais que têm estado a fustigar as regiões centro e norte de Moçambique causaram a morte 84 (sic) pessoas na semana passada, (sic) em diversos distritos das províncias afectados (sic), com maior incidência na Zambézia onde o número cumulativo é calculado em 62 casos. A maioria das vítimas sucumbiu (sic) na sequência do arrastamento pelas águas, descargas atmosféricas, desabamento de casas, esta última (sic) que deixou milhares sem-abrigo para além de terem (sic) perdido todos os seus pertences”.
Há uma coisa que não está bem nesta notícia e não é nem gramatical, nem nada disso. Bom, é gramatical, mas num sentido figurado. Não tem sujeito da acção. Tem predicados e complementos directos e indirectos, mas não tem sujeito. Ou melhor, o sujeito que tem não devia ter. Está errado e só espero que o novo ministro da educação para além de colocar carteiras nas escolas também reforce o ensino da gramática política. Num país civilizado e com um sistema político democrático, com todas as irregularidades que possa ter, intempéries como chuvas nunca podem ser o sujeito da acção. Nunca, ou melhor, uma sociedade responsável não pode deixar que sejam. Num país civilizado, e Moçambique é um país civilizado, o título da notícia devia ser, colocado de forma neutra e inofensiva, “falta de mecanismos de protecção contra as intempéries causa a morte de 84 pessoas”. Melhor ainda: “inoperância das estruturas de gestão das calamidades aumenta a vulnerabilidade da população”. Eu sei que parece título de jornal independente, mas não é bem isso. É responsabilização. A existência dum Estado implica, teoricamente, que tudo quanto se passa no seu interior passa-se por sua comissão ou omissão. Naturalmente que há coisas que ultrapassam mesmo o Estado mais poderoso do mundo. Mas mesmo isso, quando acontece, precisa de ser equacionado com o que devia ter sido feito, mas não foi feito, e o que deve ser feito para que não aconteça mais ou para que o impacto não seja tão nefasto.
Portanto, estou de novo a convocar o nosso sentido crítico. Não estou a dizer que o governo é responsável pelas fatalidades registadas, nem estou a dizer que devia ter feito isto ou aquilo. Estou a dizer que se queremos uma verdadeira mudança no país devemos (nós mesmo) insistir num outro tipo de interpelação, uma interpelação que procure responsabilizar. A chuva não mata. A falta de medidas de prevenção é que mata. A responsabilidade pode ser individual ou colectiva, isso pouco importa agora. O que importa é que nenhuma pessoa que toma a sério a sua condição de cidadã use a chuva como sujeito de oração política. Não devia ser. Agora, há uma razão, se calhar psicológica, que nos impede de ver as coisas desta maneira. Se uma pessoa ao meu lado cai da ponte da Catembe (em construção…) e morre sem que eu me mexa, ou se eu empurro essa pessoa e morre, o resultado, em ambos os casos, é o mesmo. Mas damos mais peso moral ao acto de empurrar a pessoa (portanto, em que somos activos no resultado) do que à passividade (onde somos omissos). Parece haver uma tendência, se calhar em todas as sociedades, de encolher os ombros perante a passividade do que perante a intervenção activa. Pode ser que o mesmo mecanismo esteja em acção quando as pessoas morrem em resultado de chuvas torrenciais num contexto em que ninguém tomou medidas de prevenção. Só nos iríamos sentir mal se assim que começasse a chover as autoridades usassem aquele poder enorme que têm para direcionar as chuvas contra as casas dos mais pobres e desviar as torrentes para os pontos que mais iriam afectar esses pobrezinhos. Aí sim diríamos que as autoridades são responsáveis pelas mortes. Se não mexerem dedinho que seja, a culpa é da chuva.
Dei à reflexão um título xangan, nomeadamente “ku mudhlaya afa”. É dum sentido filosófico muito profundo. Um Matxangana (e suspeito que seja assim com todo o “bantu”) não mata simplesmente. Mata até alguém morrer. Tem a intenção, tem o acto e tem o resultado. Só assim a ideia está completa e fica gramaticalmente correcta. E não é preciso nenhuma carteira para entender essa ideia.

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