sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Fraude intelectual


Todo o mundo fala de fraude. Fraude eleitoral. Cada nova intervenção que oiço sobre esta matéria me deixa perplexo em relação à qualidade do nosso debate intelectual. Começo a ficar com a impressão de que pior do que uma fraude eleitoral – que não existe, mas a qual se agarram partidos políticos sem programa claro de actuação política na sociedade e “críticos” desprovidos de subsídios comprometidos com os méritos das questões – é a fraude intelectual que se abate com cada vez mais força sobre o país. Houve irregularidades durante as eleições. Se elas fazem parte dum plano bem sucedido de manter a Frelimo no poder é uma outra questão para a qual, tanto quanto todas as evidências mostram, não existe nenhum sustento. A única coisa que reforça a convicção daqueles que acreditam na “fraude” é apenas o desejo de encontrarem uma explicação para a sua derrota (ou falta de capacidade no recurso aos instrumentos jurídicos existentes). É também a falta de integridade intelectual daqueles que defenderam, no passado recente, posições mal avisadas e que ao invés de as descartarem procuram a todo o custo proteger.
O pior, contudo, é que no contexto da repetição nauseabunda de “fraude” vai se abrindo espaço para que as mesmas pessoas que se dizem defensoras da democracia e do estado do direito fiquem sem argumentos para contrariar atitudes que põem em causa os princípios por elas defendidos. Há muito que as declarações da Renamo em relação ao desfecho destas eleições deviam ter alertado a opinião pública pensante para estar em alerta e pronta para defender o estado direito, sobretudo aquela parte dessa opinião que no passado recente, por ressentimentos de vária ordem e ingenuidade política, deu o benefício da dúvida a essa formação cada vez mais apolítica. O país está a lidar com um partido que se coloca acima da lei – apesar de se legitimar por se opôr a um partido no poder que acusa de se colocar acima da lei – e muitos de nós ficamos impávidos e serenos.
Considero esta incoerência na abordagem dos assuntos políticos nacionais como fraude, fraude intelectual, onde o debate de ideias e de opções para o país não se faz mais na base da discussão dos méritos das questões, mas sim na base do que melhor protege posicionamentos ideológicos dos quais não nos queremos libertar. O jornal “A Verdade” publicou hoje a reportagem duma entrevista com um constitucionalista, Gilles Cistac, que se apoia na constituição para dizer que o desejo da Renamo de governar as províncias onde conseguiu maioria nas últimas eleições poderia ser acomodado juridicamente sem violar a constituição. Algumas pessoas interpretam isto como querendo significar que a exigência anti-democrática – e que não está prevista na lei – feita por este partido é legítima e que, por isso, pode já se avançar nesse sentido. O desejo de proteger convicções não permite às pessoas de reflectirem com cuidado – e seriedade – o alcance destas afirmações, pior ainda quando devemos ter em conta que o jornal não publicou a entrevista completa, mas apenas excertos que o jornalista contextualizou a seu bel prazer.
Dois problemas bicudos que a seriedade intelectual exigiria que fossem considerados. Primeiro, se um partido político não aceita os resultados do pleito com que base lógica aceita apenas onde teve o maior número de votos (e, atenção, não “ganhou” porque “ganhar” no contexto da estrutura política do país implica o cômputo nacional)? Já agora, o MDM também podia exigir “autonomia” para os lugares onde “ganhou” – para usar a nova terminologia moçambicana – uma vez que isso também não viola a constituição que permite, segundo o constitucionalista citado, que o legislador crie unidades autárquicas para cima ou para baixo. Segundo, o facto de uma medida não entrar em conflito com a constituição não legitima uma reivindicação feita à revelia dos termos explícitos em que algo aconteceu. Quando muito mostra que a nossa constituição é um bom documento que dá espaço para a negociação política. Isto é, é possível fazer trabalho político (e não ameaças anti-constitucionais) que permita que através do processo político normal se introduza essa mudança na legislação. É como dizer que já que os estatutos da federação moçambicana de futebol não descartam explicitamente a possibilidade de haver campeões nacionais regionais os clubes de futebol que arrecadarem mais pontos em determinadas regiões podem se declarar campeões dessas regiões. Seria também um contributo para o futebol local...


Há com cada ideias na Pérola do Índico... E com cada “debates”.
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  • Achei interessante com essa sugestão da lei administrativa do Prof. Gilles Cistac... com muito respeito. Cabe a FRELIMO aceitar ou não...

  • Lindo A. Mondlane professor a "Tiku la Ndzundza." o pais esta en tanga, porque ha falta de honestidade intelectual, os mesmos que deveriam ser os guias morais da sociedade estao cegos e se estao cegos, nem quero imaginar como esta o povo que lhes segue..o que nao sei é se estao cegos porque lhes interessa (preocupante), ou estao mesmo cegos, mais grave ainda......nessa entrevista que mencionas e acabo de ler (bom a versao edulcorada a bel prazer do jornal Verdade.. o professor Cistac afirma (ou lhe fazem afiram) que a "RENAMO pode gestionar as provincias que ganhou nas ultimas eleiçoes nomeadamente niassa, nampula, zambezia, tete, manica e sofala."., mas em que se baseia para afirmar isso? em que se baseia para dizer que a renamo ganhou ai..porque segundo STAE a renamo so ganhou em sofala e zambezia e empatou em Nampula, empate tecnico, porque ai tambem perdeu, ou seja se baseia nas suposiçoes e desejos da Renamo e sonhos e ilusoes de DHL.. basta a renamo afrmar que as eleiçoes foram falsas..para que estas tenham sido falsas..ora essa veja onde onde esses pseudo intelectuais dirigem o pais?.. definitivamente o pais esta em tanga... nao ha programa professor e começo a tremer so por imaginar que gente assim pode ter alguma vez possibilidade de governo..QUE DEUS NOS APANHE CONFESSADOS..
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  • Filipe Ribas Creio que Mazarino e Richelieu seriam melhores representantes de interpretações constitucionais inovadoras!
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  • Pedro Guiliche Subscrevo: fraude intelectual. Parabéns pela reflexão pontual, Prof. Elísio Macamo.
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  • Pedro Guiliche Caro Lindo Mondlane. Também podia-se questionar quem disse a Renamo que ganhou nestes sítios, pois é descabido aceitar os resultados parcialmente, com realce para os lugares aonde obteve vantagem. Se não acredita no processo, que negasse os resultados na globalidade.
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  • Maria Helena Franco Machavane A incoerencia do líder da renamo cria muitas interrogações na minha cabeça. Infelizmente nos últimos dias ele parece um homem obcecado. ... e o seu discurso tao sem logica que me surpreende o apoio que ele tem de alguns elementos do seu partido. Quando depois de tais discursos vanglorizam-no. Mas ao mesmo tempo ha que convir que a frelimo durante o pleito eleitoral foi (e para mim continua) de um arrogância tal que me desacreditar que esta para o povo..... o mdm então esta de um egoísmo que so a ele interessa. Nao se mostra firme.... esconde-se vezes sem contas por debaixo das decisões de um ou outro partido , conforme a conveniência. .... lamentavel esta situação.... da sociedade civil, prefiro me abster pois a nela a tal "fraude intelectual" que aqui se descreve está enraizada....
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  • Álvaro AP Cortesão Casimiro a aplicar o principio do famoso constitucionalista de origem francofona, seria de ponderar que por exemplo a frente nacional francesa governasse, nos territórios onde teve mais votos, em simultâneo com o vencedor das eleições republicanas francesas. E eu tenho as minhas duvidas que isso seja aceite na Europa. Salvo seja nos estados federais que têm um modelo eleitoral que prevê essa possibilidade. Não é o caso do estados unitários. Parabéns Professor.
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  • Maria Helena Franco Machavane Agora pergunto eu, quem põe o guiso ao gato? Ta mesmo mal isto.
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      • O Prof Catedratico se esqueceu de dizer que as eleições foram organizadas num cenario de país uno, seria importante que antes das eleições......todos os jogadores entrassem no jogo com essas regras. O MDM havia de se bater por uma ou duas provincias.......agora inventar regras depois do jogo terminar. Por favor.......! Que interpretação da constituição é essa?!? Agora diz que o lider da renamo esta a falar de provincias........ok, tudo bem, são autarquias de nivel provincial.......tudo bem, agora quem vai governar essas provincias?! O senhor Afonso Dlakhama?! Ou ele vai escolher as pessoas que vão governar?! Ou ele vai governar em todas essas autarquias.

        • Depois de uma breve reflexão, permitam-me fazer a seguinte pergunta: essa solução avançada pelo Prof Catedratico é só para acomodar a Renamo ou a mesma formula se aplicaria no caso inverso, ou seja se a Renamo tivesse obtido maioria de perdido em 5 provincias?! E mais, qual seria a logica aplicavel aos distritos?! Sim aos distritos......na medida em que mesmo onde ganhou......não ganhou nos distritos todos. É so pergunta.

          • Pensamento interessante, tem a sua lógica. Mas não percamos de vista a estabilidade constitucional, não é muito aconselhável sermos um estado cultor de uma lei magna que se vislumbre flexível, isto é, em nada abona para a estabilidade político - social termos uma constituição flexível a mercê de mudanças para acomodar eventuais reivindicações. Amanha se o MDM ganhar em alguma província poderá ver - se na legitimidade de exigir o que lhe aprezera como como justo. Não quero com isto dizer que não se possa exercer qualquer direito que se mostrar legítimo invocar. Não é muito aconselhável sermos cultores deste tipo de práticas, penso que há formas de garantirmos a salvaguarda de determinados interesses através d leis (infra - constitucionais).
            PS: Não estou a dizer que nunca ou não possamos mexer a constituição. ..

            • Uric Raul · 

               · Blogger na empresa Olho do Cidadão
              Quer dizer que Mocambique estaria a implementar uma especie de federalismo modernizado? que venham os cientistas politicos estudar esse fenomeno e interpreta-lo de forma correcta

              • provincias autonomas, autarquias locais, de nivel provincial, etc etc, tudo isso so para acomodar a reivindicacao da Renamo?? Que salada!!!! O pais esta bem, nao se muda nada, a maioria ja decidiu e o arbitro ja apitou...

                • JM Joao · Agente na empresa MINT
                  Eu quero respeitar o pensamento do professor Gilles Cistac, mas não pode deixar a parte ou de fora o espírito destas eleições, (PR, AR, AP). quando fala de transformar as Províncias em autarquias locais, isto deve ficar patente por meio duma lei antes do sufrágio ao invés de o perdedor pedir acomodações não claras como estas que o professor quer aqui defender. NÃO OUVE ELEIÇÕES PARA GOVERNAR AS PROVÍNCIAS

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