sábado, 6 de dezembro de 2014

Sobre a fuga dos estudantes das colónias


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Faz cinquenta anos no próximo ano que se encerrou a CEI e cinquenta e quatro sobre a grande fuga dos estudantes das colónias.
Há que compreender o contexto histórico em que se revoltou a minha geração de estudantes em Portugal. A sessão de 1960 da Assembleia-Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução 1514 (XV), reconhecendo o direito dos povos colonizados à autodeterminação e à independência nacional, que os nossos alunos deviam conhecer, pois marcou, em termos do Direito Internacional, um novo impulso na luta contra o colonialismo. A independência do Congo (K), a conspiração dos interesses sórdidos das mineiras, o assassinato de Lumumba tocara-nos profundamente. A nacionalização do canal do Suez em 1956, a independência do Gana em 56 e da Guiné em 58 tornaram-se pontos de referência do nosso ideário. Um filme também das tragédias que revivemos hoje a propósito do Iraque e das ditas primaveras!
As gerações anteriores nos anos vinte e trinta do século passado, que designamos como protonacionalistas, desejavam num primeiro momento a igualdade, num segundo a independência, quando estivéssemos preparados, o que significava possuirmos um número significativo de doutores e engenheiros. Quantas vezes nos deram estes conselhos os mais velhos. Nos nossos países a situação evoluía e rapidamente. À boca pequena aprendíamos a narração dos massacres em São Tomé, Angola, Guiné-Bissau e Mueda. Deram-nos os nomes dos autores do massacre, o Governador Teixeira da Silva e o Administrador Garcia Soares.
As minhas actividades na Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, na Casa dos Estudantes do Império e depois como Secretário-Geral da RIA, em substituição do saudoso José Bernardino, tornavam-me alvo das atenções indesejadas da PIDE. Diversas vezes me convocavam para me apresentar logo pela manhã, para passar um dia inteiro na Rua António Maria Cardoso, sem que ninguém me ouvisse ou atendesse, para ao fim do dia me mandarem embora, dizendo que me chamariam proximamente. Guerra psicológica!
Por conselho do Dr. Arménio Ferreira, que já mencionei, cultivei uma imagem de estudante aplicado e de farrista, devo dizer, com enorme auto disciplina e sacrificando o sono. Pelas seis da manhã estava a estudar. Não faltava a nenhuma aula teórica e prática, apresentava os trabalhos com um cuidado meticuloso. Sacrificava uma parte substantiva de todas as férias para frequentar a biblioteca. Reservava o I e o II trimestre para estudo na biblioteca e apenas no III me dedicava à sebenta, e às minhas notas.
A pressão contra os estudantes das colónias reforçava-se. Uns viam-se mobilizados para a chamada defesa de Goa, o combate em Angola, outros estavam sujeitos a uma vigilância insustentável. A PIDE prendia.
A visita de Mondlane a Moçambique em 1960 a todos empolgara e permitia-nos vislumbrar um dirigente credível para, uma acção eficiente.
O ano de 1961, ano da minha fuga, assinala uma viragem maior na história do colonial-fascismo português e no avanço da causa da libertação.
Sob a direcção do Capitão Henrique Galvão, opositor ferrenho de Salazar, o ano de 1961 iniciou-se com o sequestro do paquete Santa Maria, baptizado durante a operação de Santa Liberdade. A 4 de Fevereiro militantes do MPLA atacam, em Luanda, prisões e outros objectivos de natureza militar.
Em Abril, os Altos Comandos militares portugueses tentam forçar a saída de Salazar do Governo, de modo a prepararem uma solução negociada e pacífica do fim do colonialismo. Fracassaram! Salazar demitiu o Ministro da Defesa e os Altos Comandos e nomeou-se Ministro da Defesa. Fez, para se justificar, um discurso público, muito curto, que se resumia à frase: Para Angola e em força! Em Dezembro o capitão Varela Gomes organiza a revolta de Beja. Depois do 25 de Abril viveu vários anos no nosso país. Nas três academias existentes, Lisboa, Coimbra e Porto fermentavam a hostilidade ao regime e tal se testemunhou nas grandes greves universitárias nos princípios dos anos 60, bem antes do movimento de Maio de 68 na Europa.
Alguns sectores das igrejas protestantes americanas radicadas em Angola desejavam tirar de Portugal os estudantes angolanos com conexões com a UPA, para dotarem à organização um mínimo de elementos com formação média ou superior. Só queriam fazer sair os protestantes próximos da UPA. A questão, examinou-se no Conselho Ecuménico das Igrejas. Mondlane, ao corrente, agiu através da Igreja Presbiteriana Suíça e a Igreja de França. O Pastor Marc Boegner, sobrevivente dos campos da morte nazis e dirigente das igrejas de França, interveio e assegurou que se as igrejas americanas não o desejassem, os franceses assegurariam a saída de todos os estudantes que quisessem. Jacques Baumel, membro do gabinete e familiar do Ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Maurice Couve de Mourville, de antiga cepa protestante, recebeu a tarefa de estabelecer a ligação entre o Conselho Ecuménico e o grupo organizador em Portugal. No tempo da presidência de Chissano em 1995, Baumel veio em visita a Moçambique a convite do Chefe do Estado e recebi-o com carinho e alegria em minha casa com amigos comuns desse tempo, o Pascoal e Adelina Mocumbi, e que haviam beneficiado do seu trabalho arriscado. Lembrámo-nos dos riscos que correra. Para o detalhe anedótico, Baumel fazia os encontros, a nosso conselho, num barquinho a remos no Lago do Campo Grande, em Lisboa e, onde havia sempre duas moças. Queríamos transmitir pelas posturas muito românticas uma imagem de namoricos e beijos, longe das preocupações conspirativas. Nas deslocações a Lisboa acordou-se contra vontade inicial dos franceses e por insistência minha e de outros colegas, que dois pastores americanos acompanhariam cada grupo. A insistência sobre os americanos partia de nós. Isso dar-nos-ia alguma protecção e limitaria a PIDE no cometer assassinatos e sevícias. Elementos comunistas portugueses e espanhóis apoiariam para as travessias. Na fronteira francesa as igrejas protestantes receberiam os estudantes.
Antes da grande fuga vários camaradas angolanos, lembro-me do Gentil Viana e Edmundo Rocha, Luís de Almeida, Hélder Martins médico moçambicano e, embora branco um dos fundadores da FRELIMO já havia fugido. Hélder desertara no Reino Unido onde a marinha o enviara como médico, oficial miliciano, para acompanhar a tripulação dum navio português de guerra. Na saída embora legal, Gentil Viana encarregara o seu compatriota Paulo Teixeira Jorge para dar continuidade aos planos da organização das fugas. Paulo Jorge cooptara-me conhecendo-me bem e sabendo que me protegia a fama de bom aluno, farrista e da JUC!
A 2 de Junho de 61 nas minhas recordações e outros acrescentem por favor, fugiram angolanos: Africano Neto, Aladino Vieira Lopes e a esposa Gina, Alberto Bento Ribeiro, Ana Maria Sá, Ângela Guimarães Viana (esposa de Gentil Viana), Amélia Araújo, Ana Wilson António Assis, António Manuel Rangel, António Macedo Júnior António Pedro Filipe (UPA), António Santos Pinto), António Salvador Ribeiro, António Xavier, Augusto Lopes Teixeira (Tuto), Baiana Carreira, Carlos Dias da Graça, Carlos Pestana, Eurico Wilson, Fernando Paiva, Fernando e Serafina e Mário Alberto Assis, Fernando Octávio, Fernando Van-Dúnem, Filipe Amado e esposa, Fernando Chaves, Filinto Vaz Martins, Henrique Carreira (Iko), Henrique Santos (Onambwé), Higino Pedro Gomes, Irmãos Wilson, Idalina Bamba, Jerónimo de Almeida, Jerónimo Wanga Job de Carvalho, Jorge Hurst, José Araújo Lima de Azevedo, José Carlos Antoinete, José Ferreira, Luís Monteiro, Manuel Boal e esposa, Manuel Videira e esposa, Maria Nascimento Graça Morais, Mário Clington, Mateus Neto, Manuel Pedro Gomes, Mateus Silva, Pedro Sobrinho (UPA), Rubio, Rui de Carvalho, Rui de Sá, Samuel Abrigada, Silvestre Lopes, Tadeu Bastos Fortes, Teresa Pedro Gomes, Victor Afonso, Zélia Salvado. De Cabo Verde Elisa Pestana e Osvaldo Lopes da Silva, de S. Tomé Tomás Medeiros, De Moçambique apenas quatro: Ana Neto, Joaquim Chissano, João Nhambiu e Pascoal Mocumbi. Apenas Chissano e Mocumbi participaram na criação da FRELIMO e permanecem até hoje no combate da Pátria. Honra aos pioneiros!
Um abraço à memória,

Sérgio Vieira
P.S. José Sócrates nosso amigo durante o seu mandato como Primeiro-Ministro encontrou-se detido sob suspeita de fuga ao fisco. Será o único em Portugal, na Europa? Exemplo perigoso, vejam o que aconteceria em África!
SV

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