domingo, 7 de dezembro de 2014

O ACORDO DE LUSAKA INCONSTITUCIONAL E ANTIDEMOCRÁTICO



Em 11 de Junho do corrente ano, quando do acto de posse dos então novos governadores-gerais de Angola e de Moçambique, o general António de Spínola, ao tempo Presidente da República, pronunciou um notável discurso, em que afirmou a certa altura:«No mundo moderno, só existe verdadeira independência política se esta resulta de uma autêntica autodeterminação, e só pode haver autodeterminação em clima de livre e perfeito funcionamento das instituições democráticas.
Temos, assim, de concluir que, não se encontrando tais instituições em funcionamento nos territórios ultramarinos, e estando por isso as suas gentes ainda privadas de formas eficazes de expressão e de participação, o que hoje se entende por independência imediata seria a mais gritante negação dos ideais democráticos universalmente aceites e nos quais se inspirou o Movimento das Forças Armadas. O direito dos povos à autodeterminação, com todas as suas consequências, não se compadece de forma alguma com a imposição, a esses povos, de opções em que não participaram.»
e antes de terminar:
«Poderão pois estar tranquilos os africanos que se mantiveram neutros, porque não lhes será negado, por essa razão, o direito de optar. Poderão estar tranquilos os africanos que se nos confiaram e ao nosso lado combateram, tendo feito já a sua opção. E poderão estar tranquilos os europeus que acham a África a sua terra e ali se sentem cidadãos como quaisquer outros; não os abandonaremos na cobarde procura do fácil e na demagógica busca da popularidade. Poderão também estar tranquilos quantos vêm lutando pelo direito à autodeterminação, pois que a sua vontade será respeitada pela vontade das maiorias. A todos garantiremos que nessa hora grande serão chamados, sem excepção, a dar o seu voto.»
 Posteriormente, em 27 de Setembro, noutro discurso – este pronunciado na primeira reunião com as «Forças Vivas de Angola»      começou o então Senhor Presidente da República por definir o processo da descolonização, nos seguintes termos:
 «Começarei por afirmar, uma vez mais, a intransigente adesão à pureza da concepção democrática das sociedades políticas, entendendo por democracia a imanência popular da soberania, a pluralidade partidária, o sufrágio directo e a intervenção dos cidadãos na feitura e alteração de leis, a institucionalização da vida política, o centralismo democrático, e a responsabilidade dos mandatários do poder perante os seus mandantes, exigida por intermédio de instituições políticas definidas em texto constitucional. Desta concepção de democracia se acham portanto excluídas quaisquer formas de monolitismo político ou de mobilização de massas; e muito menos nela se encontram cabimento os processos que consintam decisões sobre o destino de um povo tomadas à margem da vontade desse mesmo povo.
 Não há forma alguma de compatibilizar os direitos fundamentais da pessoa humana com arquitecturas sociais cuja essência dogmática exclua a liberdade de opção política. E por que a descolonização decorre exactamente do reconhecimento daqueles direitos, resulta de flagrante incoerência todo o processo de descolonização que ignore o sufrágio popular e, através dele, a livre manifestação da vontade dos descolonizantes. Há que denunciar, como profundamente antidemocráticas e portanto inaceitáveis, as concepções de descolonização que assumam o pressuposto de uma opinião popular não expressa democraticamente não esqueçamos que tal pressuposto foi durante muito tempo o suporte do regime colonial.»
 Qualquer das afirmações contidas nos notáveis discursos referidos, visando o esclarecimento dos condicionalismos e dos condicionamentos que presidem ao processo de descolonização, sendo sem sombra de dúvida as mais consentâneas com a evolução da civilização e dos direitos humanos, não poderiam por tal facto deixar de se inserir integralmente na linguagem precisa e seca dos textos constitucionais.
 Na realidade, por força do disposto no artigo1º da Lei nº 3/74, de 14 de Maio, o Programa do Movimento das Forças Armadas foi tornado parte integrante das leis constitucionais da Nação, sobrepondo-se à Constituição Política de 1933, nas disposições que o contrariem. E esse Programa é bem explícito quanto aos princípios que devem reger a política ultramarina.
 No preâmbulo, o Programa é categórico quanto à inflexibilidade dos princípios definidos no seu período final:
 «O Movimento das Forças Armadas Portuguesas, na profunda convicção de que interpreta as aspirações e interesses da esmagadora maioria do Povo Português e de que a sua acção se justifica plenamente em nome da salvação da Pátria, fazendo uso da força que lhe é conferida pela Nação através dos seus soldados, proclama e compromete-se a garantir a adopção das seguintes medidas, plataforma que entende necessária para a resolução da grande crise nacional que Portugal atravessa.» 
 Na parte «B – Medidas a curto prazo», nº 8, especificam-se as medidas que se referem à política ultramarina:
 «8 – A política ultramarina do Governo Provisório, tendo em atenção que a sua definição competirá à Nação, orientar-se-á pelos seguintes princípios:
              a)  Reconhecimento de que a solução das guerras no ultramar é política, e não militar;
              b)  Criação de condições para um debate franco e aberto, a nível nacional, do problema ultramarino;
              c) Lançamento dos fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz.»
Como bem se alcança, este nº 8 é perfeitamente explícito em que a definição da política ultramarina competirá à Nação – e não ao Governo Provisório – aliás em rigorosa conformidade com o fundamento doutrinário do Programa em termos deste expressamente estatuir que:
«…as grandes reformas de fundo só poderão ser adoptadas no âmbito da futura Assembleia Nacional Constituinte…»
Ninguém de início admitiu que o desmantelamento do território nacional não fosse uma das tais grandes reformas de fundo que «só poderão ser adoptadas no âmbito da futura Assembleia Nacional Constituinte».
Assim, tudo o que competia ao Governo Provisório, em matéria de política ultramarina, nos termos do Programa do Movimento das Forças Armadas, era tão-somente o de levar a cabo uma política em rigorosa obediência aos três princípios enunciados, que constituem o normativo do número oito, assente numa base profundamente democrática.
Nestes termos e após a aceitação de base do princípio constante da 
alínea  a) tudo o que o Governo Provisório teria a fazer seria o de dar integral execução ao princípio constante da alínea b) que está logicamente subordinado ao princípio básico da alínea a) – de que a solução das guerras no ultramar é política e não militar.
O exacto cumprimento do princípio constante da alínea b):
«b) Criação de condições para um debate franco e aberto, a nível nacional, do problema ultramarino»
era uma condição «sine qua non» da execução do Programa do Movimento das Forças Armadas. 
A sua não observância constitui nítida violação das leis constitucionais da Nação, ferindo, de inconstitucionalidade, e por isso de nulidade absoluta, todos os actos praticados com base no desrespeito do estatuído na referida alínea.
Mas, apesar de bem clara a alínea, sem quaisquer possibilidades de interpretações duvidosas, mesmo assim o princípio dela constante mais claro e preciso se tornou com a definição, através do Decreto-Lei nº 203/74, de 15 de Maio, do que compete ao Governo Provisório em matéria de política ultramarina.
Estabelece-se nesse decreto-lei:
«Em obediência aos princípios do Programa do Movimento das Forças Armadas, o Governo Provisório actuará dentro das grandes linhas de orientação que a seguir se definem, e cujos fundamentos deverá solidamente alicerçar:
7. Política ultramarina:
          a) Reconhecimento de que a solução das guerras no ultramar é essencialmente política, e não militar;
          b)   Instituição de um esquema destinado à consciencialização de todas as populações 
residentes nos respectivos territórios, para que, mediante um debate livre e franco,             possam decidir o seu futuro no respeito pelo princípio da autodeterminação,    sempre em ordem  à salvaguarda de uma harmónica e permanente convivência entre os vários grupos étnicos, religiosos e culturais;
          c) Manutenção das operações defensivas no ultramar, destinadas a salvaguardar a vida e os haveres dos residentes de qualquer cor ou credo, enquanto se mostrar necessário;
          d)  Apoio a um acelerado desenvolvimento cultural, social e económico das populações 
e territórios ultramarinos, com vista à participação activa, social e política de todas as raças e etnias na responsabilidade da gestão pública e de outros aspectos da vida colectiva;
          e)  Exploração de  todas as vias políticas que possam conduzir à paz efectiva e 
      duradoura no ultramar.»
 Em face do que antecede, não poderá deixar de se confirmar uma perfeita consonância entre as declarações do então Chefe de Estado e do que na legislação constitucional se estabelece quanto à política ultramarina.
 No entanto, no período que decorre posteriormente a 11 de Junho, o povo português constatou, perplexo e perturbado, a ocorrência de actos da mais alta gravidade presente e futura para a vida da Nação e que de nenhum modo se afiguram estar de acordo não só com as leis constitucionais como, ainda, com as declarações feitas pelo então primeiro magistrado da Nação.
 Tais actos respeitam aos acordos de Argel e de Lusaka e aos que presentemente se encontram em gestação. Estes acordos, por constituírem em si grandes reformas de fundo «… só poderão ser adoptadas no âmbito da futura Assembleia Nacional Constituinte…» dado que, no referido nº 8 do Programa, como já se referiu, foi expressamente proclamado que a definição da política ultramarina cabe à Nação – e não ao Governo Provisório.
 Por outro lado e para além deste pressuposto fundamental, não se vê, também, que qualquer dos citados acordos haja obedecido às directrizes constitucionalmente fixadas ao Governo Provisório na alínea b) do nº 8:
       «b)  Criação de condições, para um debate franco e aberto, a nível nacional, do
         problema ultramarino».
       A verdade é que, quanto à Guiné e Moçambique, as populações brancas, negras ou mestiças se viram entregues, sem prévio debate a nível nacional a um movimento subversivo armado. Nenhum voto foi dado. Nenhum voto foi pedido. As regras mais elementares da democracia foram esquecidas. As populações foram entregues a determinado movimento dito nacionalista sem terem a menor possibilidade de expressar a sua opinião.
 Todos sofrem essa sorte: as massas negras que foram sempre neutras, as massas que combateram a nosso lado e os europeus – e muitos deles não de hoje nem de ontem mas de há gerações – que fizeram daquelas terras a sua terra.
 Mas para além dos aspectos inconstitucionais e antidemocráticos, de que enformam os acordos celebrados, pode, ao menos, pretender-se que estes se revestem de defesa dos interesses culturais e materiais de Portugal? Nem isso sequer!
 Nos acordos celebrados não se vislumbra uma só salvaguarda para os enormes interesses morais, culturais e materiais de Portugal. Pelo contrário, dir-se-ia que se consideram esses interesses tão como de somenos que se entendeu não considerar, sequer, a sua defesa.

 Não nos debruçaremos sobre o acordo com o P.A.I.G.C.; chama-se, todavia, a atenção para o facto de que o «generoso» reconhecimento de ser Portugal o responsável pela guerra sofrida     «agressor» confesso num conflito que não provocou, não iniciou nem quis prolongar – abre as portas do nosso parco tesouro a todos os pedidos de indemnização por danos morais e materiais que o P.A.I.G.C. resolva apresentar.
 Vejamos, porém, o acordo de Lusaka, cujo texto foi publicado no «Diário do Governo» nº 210, de 9 de Setembro último.
       I – Ao longo de todo o seu articulado, não se vislumbra uma sombra sequer de condicionamentos de qualquer estruturação democrática capaz de permitir aos povos de Moçambique verem assegurados os meios de poderem exercer livremente os seus direitos de expressão e de associação. Nem mesmo quanto aos europeus de origem metropolitana esse direito foi assegurado.
 Tudo foi deixado ao critério da Frelimo que aliás e desde já é praticamente assimilada ao próprio Estado de Moçambique, como se de um próprio Estado já se tratasse. É o que se verifica logo no nº 1 e nº 2 do acordo:
           «1. O Estado Português, tendo reconhecido o direito do povo de Moçambique à independência, aceita por acordo com a Frelimo a transferência progressiva dos  poderes que detém sobre o território nos termos a seguir enunciados.
           «2. A independência completa de Moçambique será solenemente proclamada em 25  de  Junho de 1975, dia do aniversário da fundação da Frelimo.»
 As contradições são violentas. Por um lado o Estado Português reconhece o direito dos povos de Moçambique à independência, para logo a seguir, no mesmo número, passando por cima dos direitos das populações se pronunciarem – isto é, com o mais completo desrespeito pelas normas constitucionais (alínea b) do nº 8 do Programa do Movimento das Forças Armadas, parte integrante das leis constitucionais ao abrigo da Lei 3/74 – acordar numa entrega pura e simples dos poderes a um movimento subversivo armado, que nunca demonstrou possuir qualquer mandato representativo por parte da maioria dos povos de Moçambique e que é do conhecimento comum apenas representar uma pequena parte da população moçambicana.
       Fomos ao ponto de aceitar como data da independência completa de Moçambique, 25 de Junho, porque este é o dia do aniversário da fundação da Frelimo!
       Não só se não impuseram condições para a estruturação das instituições democráticas – desrespeitando-se o disposto na alínea b) do nº 7 do Decreto-Lei nº 203/74, de 15 de Maio último – como, ao invés, expressamente se reconheceu à Frelimo o direito de impor aos povos de Moçambique a estrutura política que assim o entenda: 
      «18. O Estado Moçambicano independente exercerá integralmente a soberania plena e  completa no plano interior e exterior, estabelecendo as instituições políticas e  escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do seu povo.»
       II – A defesa dos interesses morais e culturais portugueses não é feita em termos inequívocos. Nem sequer a língua portuguesa é desde já acordada como a língua oficial. Tudo se resume a expressões vagas, não passando de intenções susceptíveis de se esfumarem de um momento para o outro:
      «13. A frente de Libertação de Moçambique e o Estado Português afirmam solenemente o seu propósito de estabelecer laços de amizade e cooperação construtiva entre os os respectivos povos, nomeadamente nos domínios cultural, técnico, económico e e financeiro, numa base de independência, igualdade, comunhão de interesses e    respeito da personalidade de cada povo.
        Para o efeito serão constituídas, durante o período de transição, comissões  especializadas mistas e ulteriormente celebrados os pertinentes acordos.»
      III – Os direitos morais e materiais dos actuais residentes de origem metropolitana, à semelhança do que aconteceu com os direitos políticos, também não se encontram salvaguardados. Nada lhes é assegurado. Tudo continua a ser vago e destituído de significado preciso. Só o futuro regulará os seus direitos à medida dos caprichos dos «novos senhores», e ainda por cima, condicionados a bases de reciprocidade, como se a obra realizada por Portugal em Moçambique não tivesse significado nem valor.
      Veja-se o que o acordo preceitua a tal respeito:
      «15. O Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique comprometem-se a  agir concertadamente para eliminar todas as sequelas de colonialismo e criar uma   verdadeira     harmonia  racial. A   este propósito,  a  Frente   de   Libertação  de   Moçambique  reafirma  a  sua  política  de  não discriminação, segundo a qual a   qualidade de moçambicano não se define pela cor da pele, mas pela identificação
voluntária com as aspirações da Nação Moçambicana. Por outro lado, acordos  especiais  regularão  numa  base  de  reciprocidade, o  estatuto  dos  cidadãos portugueses   residentes  em  Moçambique  e    dos  cidadãos   moçambicanos residentes em Portugal.»
      IV – Mesmo para a presente fase de transição, o acordo concede à Frelimo poderes tais que de longe ultrapassam quaisquer limites admissíveis, tornando a entrega integral de Moçambique à Frelimo como «de facto» já processada. Assim:
          a) Logo na alínea do nº 6 reconhece-se categoricamente que a nomeação do primeiro-ministro do Governo de Transição, será da competência da Frelimo. Nem sequer a intervenção do Alto Comissário é requerida para a concessão nominal de um simples «agrément»;
          b) A nomeação do Governo também se inseriu no anterior, já que dos nove ministros (fora o primeiro-ministro), a nomeação de nada menos de seis é também da competência da Frelimo. E isto não contando com os Secretários de Estado nem com os Subsecretários;
          c) Havendo um Alto Comissário, representante da soberania portuguesa e a quem entre outras funções compete exercer, nos termos do artigo 2º da Lei 8/74, de 9 de Setembro, as funções de comandante-chefe das Forças Armadas Portuguesas, numa altura em que Moçambique é ainda parte integrante da Nação Portuguesa, não estão sob o seu comando as forças da Frelimo ali estacionadas.
Com efeito, de acordo com o nº 10, essas forças dependem directamente do primeiro-ministro (isto é, da Frelimo) como se transcreve: 
«10. Em caso de grave perturbação da ordem pública, que requeira a intervenção das  Forças  Armadas , o  comando  e  coordenação  serão  assegurados  pelo  Alto  Comissário, assistido pelo Primeiro-Ministro, de quem dependem directamente  as Forças Armadas da Frente de Libertação de Moçambique.»
      V – Os eventuais direitos preferenciais que deveriam caber a Portugal no desenvolvimento económico de Moçambique, também foram relegados. Assim e apesar de Moçambique ser parte integrante da Nação, com um Alto Comissário que representa o Presidente da República e o Governo Provisório, já se dá ao Governo de Transição daquele Estado plenos poderes para directamente acordar no estrangeiro os negócios que entenda fazer, passando por cima do Alto Comissário e do próprio Governo Central:
      «17. O Governo de Transição procurará obter junto de organizações internacionais ou no quadro de relações bilaterais a ajuda necessária ao desenvolvimento de Moçambique, nomeadamente a solução dos seus problemas urgentes.»
      O disposto na alínea c) do nº 4, condicionando à ratificação pelo Alto Comissário dos actos que envolvam responsabilidade directa para o Estado Português não é suficiente; limita-se a procurar defender o Estado Português de responsabilidades não comprometidas a partir da data de entrada em vigor do acordo, não evitando que os interesses económico-financeiros portugueses sejam curto-circuitados por interesses estrangeiros que até hoje nada tenham feito pelos povos de Moçambique, quer económica quer culturalmente.
      VI – Quanto aos interesses financeiros de Portugal há, porém, algo mais a acrescentar. Nos termos do nº 16, o Estado Português obriga-se a transferir para o Banco Central a formar em Moçambique, o activo e passivo do departamento de Moçambique do Banco Nacional Ultramarino, isto é, portanto a parte que lhe cabe das suas reservas. Mas no nº 14 dá-se à Frelimo, através da subjectividade da cláusula, o direito de honrar ou não, como o entender, os compromissos financeiros assumidos por Portugal em nome de Moçambique: 
      «14. A   frente   de   Libertação   de  Moçambique  declara-se  disposta  a  aceitar  a  responsabilidade   dos   compromissos   financeiros   assumidos   pelo  Estado  Português  em  nome   de Moçambique, desde  que tenham sido assumidos no  efectivo interesse deste território.»
      Nos termos desta cláusula a Frelimo pode endossar todas as dívidas contraídas pelo Estado Português em nome de Moçambique, para os contribuintes metropolitanos. Repare-se nas expressões «…declara-se disposta…» e «…desde que tenham sido assumidos no efectivo interesse deste território». Bastará, pois, para o efeito declarar que não está disposta a aceitar as responsabilidades ou, no caso de «em princípio» se encontrar disposta a rejeitar essas responsabilidades, declarar pura e simplesmente que as operações a que as mesmas se referem não foram realizadas no efectivo interesse de Moçambique. Poderá não liquidar um tostão dos 15 a 20 milhões de contos que custará Cabora Bassa, declarando que o interesse do empreendimento era essencialmente da África do Sul pelo fornecimento da energia que lhe asseguraria, embora encaixe os rendimentos. E o mesmo raciocínio poderá facilmente aplicar a centenas de operações que envolveram o aval do sector público e privado da Metrópole na ordem das dezenas de milhões de contos.
       VII – Em face desta análise, por muito sumária que ela possa ser, parece não poderem subsistir dúvidas válidas quanto ao mérito do acordo de Lusaka.
      Este acordo não só violou o que constitucionalmente se encontra disposto como não assegurou a instituição de estruturas democráticas para que os povos de Moçambique tenham a garantia da liberdade dos seus direitos de expressão e de associação, e não defendeu, também, os interesses morais, culturais e materiais de Portugal.
      Dir-se-á que muitos dos aspectos poderão ser regulados «a posteriori», como aliás se encontra previsto no próprio acordo. Sem dúvida aspectos de pormenor e sem significado de maior, pois só extrema ingenuidade permitirá admitir que aspectos de interesse fundamental para a parte que mais cedeu, possam posteriormente ser negociados ou renegociados com vantagem para ela.
      Depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo assistiu a vários processos de descolonização, levados a cabo por diferentes países da Europa Ocidental – a Holanda, Bélgica, França, Espanha e Grã-Bretanha. E da comparação entre os processos utilizados, mesmo para aquelas situações mais difíceis, como as da Holanda na Indonésia, França na Argélia e Bélgica no Congo Belga, se terá que admitir que não haverá até hoje processo mais infeliz e menos próprio de uma nação europeia e das instituições democráticas, do que o processo utilizado pelo Governo Provisório para com Moçambique. Mas não é o Governo que ficará na história como comparsa nessa cedência; é a Nação Portuguesa. Será  o Povo Português que, todavia, nem sequer foi ouvido!
      Não foram respeitados os textos constitucionais, não foram respeitados os interesses das populações africanas, não foram respeitados os mais elementares direitos humanos das populações de origem metropolitana, não foram respeitadas as responsabilidades históricas de Portugal, não foram respeitados os interesses morais, culturais e materiais de Portugal.
Dificilmente se encontrará na história da descolonização situação idêntica: uma total e completa abdicação da nação colonizadora sem qualquer contrapartida.
      Compreende-se mal por que razão o País não foi chamado a dar por referendum a aprovação ao acordo de Lusaka, ou por que motivo se não achou preferível prolongar por mais uns meses uma presença de cinco séculos, a fim de, nos termos do Programa do Movimento das Forças Armadas, o acordo de Lusaka poder ser negociado no «âmbito da futura Assembleia Nacional Constituinte».
      Não se compreende, também, o que teria motivado o abandono a que foram votados, perante a Frelimo, os povos de Moçambique que tradicionalmente alinharam connosco na defesa de uma terra que todos nós sentíamos ser portuguesa. Não se lhes perguntou, sequer, à semelhança do que fez de Gaulle, se queriam conservar o «status» colonial, se queriam a independência interna no seio de uma comunidade portuguesa, ou se queriam a independência total.
      E não se compreende, finalmente, porque razão um governo democrático ignorou um dos princípios básicos da democracia – ouvir os povos sobre o seu próprio destino – com desrespeito pelo preceituado nas leis constitucionais.
      A Nação foi colocada, autoritariamente, perante um facto consumado. Pode ser que no nosso País «o povo seja quem mais manda». Será em tudo mas não em matéria ultramarina. Porquê? É uma interrogação que fica posta e a que a história, mais cedo ou mais tarde, terá de responder.
Artigo de A Valdez dos Santos no Jornal Português de 
Economia & Finanças 
Nº 323, 16 a 31 Dezembro de 1974

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