sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Pondo os pontos nos ís (III)

 
Entre nós (em Moçambique) também se confunde 'adversário' com 'inimigo'. No dicionário, os dois termos ocorrem cada um na entrada doutro, reciprocamente; isto é, eles são tratados como sinónimos. Em certos contextos, eles até podem ser tratados como sinóminos, mas rigorosamente estes vocábulos têm significados distintos.
Por 'inimigo' entende-se um ser ou grupo de seres (incluindo seres humanos) que representa perigo à existência ou viabilidade doutro ser (grupo de seres). Note-se que o ser (grupo de seres) ameaçado por outro ser (grupo de seres) é que vê este último ser (grupo de seres) como inimigo. Para o ser que representa ameaça contra a existência doutro ser, este outro ser (que vê o primeiro como ameaça) não é, necessariamente, um inimigo. Um exemplo clarifica isto melhor: os animais carnívoros (e.g. os felinos: leões, leopardos, tigres, …) são inimigos das suas potenciais presas, mas estas não são inimigas daqueles, excepto num confronto. Isto é, a posição de inimigo entre seres ou grupos de seres não é, necessariamente, reciproca.
Num eventual encontro entre um ser (grupo de seres) que representa ameaça contra a existência doutro, o ser (grupo de seres) ameaçado foge da ameaça, sem confrontação. Quando ocorre uma confrontação entre o ser (grupo de seres) que representa uma ameaça contra a viabilidade doutro ser (ou grupo de seres) e este mesmo ser (grupo de seres), então este passa, também, a representar perigo contra a sua ameaça. Neste caso, a posição de inimigo passa a ser reciproca entre os dois seres (grupos de seres). Do confronto tem que resulta que uma das partes vence e a outra é vencida, sendo que a parte vencida deixa de existir (morre) ou, para sobreviver, tem que abandonar o espaço que normalmente habita e procurar.
Do acima exposto, fica claro que inimigos NÃO PODEM CONVIVER NO MESMO. Ou seja, inimigo é a expressão de diferença radical, de antagonismo exacerbado, de desacordo extremo—inegociável e intolerante—entre pelo menos dois indivíduos, que podem ser dois seres (grupos de seres), incluindo entes sociais, políticos, religiosos, entre outros.
O termo 'inimigo' é muito forte, sendo que o seu uso está associados com emoções que incluem IRA, ÓDIO, FRUSTRAÇÃO, INVEJA, CIÚME, MEDO, DESCONFIANÇA e, possivelmente, respeito relutante. Como conceito político, ao inimigo reserva-se ÓDIO, VIOLÊNCIA, BATALHA, GUERRA. Portanto, caracterizar alguém como inimigo é equivalente a demonizá-lo! O antónimo de 'inimigo' é 'amigo' ou 'aliado'.
Agora vejamos o que se entende por 'adversário' e como difere de 'inimigo'
O termo 'adversário' usa-se para designar, reciprocamente, cada um de dois indivíduos (ou dois grupos de indivíduos) que DISPUTAM ALGO QUE INTERESSA A AMBOS. Portanto, diferentemente do conceito de inimigo—em que uma das partes representa ameaça à existência da outra—o termo adversário designa cada um dos indivíduos (ou grupo de indivíduos) que disputam um objecto ou uma causa. Ou seja, adversários só existem onde há disputa por um MESMO OBJECTIVO. A disputa entre os adversários assume a forma de mecanismo mediante o qual se decide quem fica com posse do objecto em disposta. Diferentemente de inimigos, os ADVERSÁRIO PODEM CONVIVER no mesmo espaço, toleram-se. Podem até ser amigos, ter relações familiares ou de afinidade.
O termo 'adversário' é moderado, sendo que o seu uso está associado a emoções que incluem FRUSTRAÇÃO, INVEJA, CIÚME, que são experimentadas pela parte vencida para com a parte vencedora.
Quando a rivalidade (a relação entre adversários) é bem gerida, ela é percursora do desenvolvimento. Como eu gostaria que fosse assim no meu país, Moçambique!
Chegado aqui, transcrevo na íntegra—com pequenas modificações—um artigo da autoria de Roberto Sansón Mizrahi, publicado na rubrica "Transformações", da revista virtual mensal "OPINIONSUR", na edição no. 65, de Janeiro de 2009.
Eis o artigo:
"DE INIMIGOS A ADVERSÁRIOS
" 'Acontece que sou o dono da verdade; de toda a verdade, sempre. Procuro impor a minha verdade e, se isso não for possível, rejeito as outras verdades e me recuso a colaborar. Causa-me frustração e rancor que haja pessoas que não aceitem a minha verdade.'
"Esta atitude (de alguém ser o dono absoluto da verdade) provoca sérios danos. Os efeitos desta atitude agigantam-se quando várias pessoas igualmente convencidas de serem as donas da verdade —de toda a verdade, sempre—colidem. Então, o diálogo fica travado, os argumentos radicalizam-se, não importam as formas de cooperação ou de apoio mútuo. Surgem antagonismos carregados de agressões abertas ou encobertas, que desviam a energia social e a encaminham para o confronto, esterilizando o talento e a determinação.
"Nesse cruzamento de egos e interesses, apontar as condutas destrutivas dos outros é mais simples do que reconhecer as nossas próprias. Acontece que temos uma habilidade inacabável para negar que actuamos impelidos por nossos interesses e que somos capazes de justificar qualquer coisa, contanto que consigamos nos arrogar a razão.
"Num contexto de fortes antagonismos, é difícil convocar e ser convocados, utilizar plenamente o potencial de um grupo, de um país ou da aldeia global. Pois, em lugar de tentarmos alinhar interesses e necessidades diversos, procuramos impor os nossos. Quanta dor causamos com isso! Quanta energia dilapidamos! Quantas luzes se apagam ou não chegam a ser acesas!
"Esses comportamentos são, em parte, o legado de uma história de enfrentamentos ancestrais que cobre cada geração de antigos ódios, receios e preconceitos. Porém, nós também contribuímos a reforçar os desencontros com antagonismos de novo cunho que, muitas vezes, resultam da nossa incapacidade para distinguir os inimigos dos adversários.
"Qual a diferença entre inimigo e adversário? Inimigo é aquele que procura nossa a destruição ou a nossa submissão. Adversário é aquele que, ainda lutando por seus próprios interesses (materiais, emocionais, religiosos, ideológicos, …), não tenta nos destruir ou submeter, nem actua em detrimento da nossa realização pessoal. Se bem que existam casos em que essa distinção se torna difusa, há muitos outros em que fica claro quem é o adversário e quem é o inimigo.
"Não estamos diante de uma simples disquisição ( = exame de uma questão) académica. Se soubéssemos distinguir uns dos outros, poderíamos nos dar conta de que muitos supostos inimigos são, na verdade, apenas adversários. E, portanto, poderíamos tomar consciência dos erros e das injustiças que cometemos e das oportunidades de construirmos coisas em conjunto que temos dilapidado.
"A diferença entre a relação de adversários e a relação de inimigos pode apresentar-se em quase todas as esferas da vida social, política e económica. Em matéria política, algumas pessoas, tanto do governo quanto da oposição, partem da concepção de que elas só podem fazer as suas ideias e seus os projectos crescerem por meio da destruição do adversário, transformado em inimigo. Assim, as potencialidades sociais acabam por ser esterilizadas, já que muitas contribuições não são completadas, ou nem sequer chegam a existir, e as energias se desviam das acções construtivas para serem dirigidas ao choque, pois ninguém se entrega sem oferecer resistência.
"Uma coisa é a visão de um bolo único e estático que a gente quer para si e para seu grupo, e uma outra coisa é que procuremos, entre todos nós, alargar o espaço do conjunto e compartilhar os resultados obtidos. O primeiro ponto de vista só admite a possibilidade de dar cotoveladas e de crescer esmagando os outros, enquanto a segunda opção implica colaboração, justiça e crescimento orgânico.
"O facto de vermos inimigos onde há adversários está ligado aos valores e conceitos que nos guiam. Aquele que valorizar o esforço do próximo, a legitimidade e a capacidade de contribuição da diversidade, e os riscos decorrentes da homogeneização de perspectivas, terá menos motivos para classificar os adversários de inimigos. E se ele por engano o fizer, em algum momento vai reconhecer e reparar o erro.
"Porém, as pessoas que têm sido formadas segundo os preceitos de qualquer classe de fundamentalismo vêm inimigos em toda parte, e consideram que é necessário eliminá-los, neutralizá-los ou submetê-los. Elas não conhecem a generosidade espiritual, a verdade duvidosa, a abertura mental ou a vastidão de sentimentos. Essas pessoas foram moldadas na selva do confronto e da imposição, e são impermeáveis àquelas opiniões e pontos de vista que relativizam a sua própria visão. Elas praticam o autoritarismo e rareiam misericórdia e boa vontade.
"Sendo que os valores, os interesses e as atitudes constituem o fundamento de nossa conduta, é possível que nos baseemos na experiência e num bom treinamento para identificar como inimigos aqueles que realmente são inimigos, e reconhecer como adversários legítimos e respeitáveis muitos outros que consideramos inimigos e que tratamos como tais, mesmo que nunca tenham sido inimigos ou que tenham deixado de sê-lo.
"Olhar para dentro
"A nossa primeira reacção é sempre a de pensar naquilo que os outros teriam que fazer para deixarem de ser nossos inimigos e se transformarem em adversários legítimos e respeitáveis. Não adianta cairmos nessa armadilha. Primeiro temos de olhar para dentro: quais as coisas que precisamos mudar, para atingir o próximo com uma atitude que o convide, que impulsione ou facilite a sua própria reflexão e uma mudança de perspectiva com respeito a nós, ao nosso grupo, à nossa comunidade, ao nosso país?
"O ideal seria que 'os outros' seguissem o mesmo caminho, mas não é bom que condicionemos o nosso processo de revisão a isso, porque além de continuarmos no pântano do qual procuramos sair, estaríamos a sujeitarmo-nos à iniciativa e aos tempos dos outros. Trata-se de adoptar uma conduta recta e pragmática, tomando todas as precauções do caso. Se, após um esforço genuíno, não conseguirmos mudar a dinâmica da relação, ainda saberemos como proteger nossos espaços.
"Os desdobramentos do nosso ego, a dor e os tecidos sensíveis resultantes de antigas feridas, os medos, os receios, as ofensas recebidas e as inseguranças acumuladas ao longo da vida são tantos que não é possível acreditar que o nosso entendimento esteja livre desses factores condicionantes e que nossa subjectividade não seja enganosa. Bem que seja impossível que nos desfaçamos da subjectividade, o facto de compreendermos como ela foi estruturada ajudar-nos-ia a redobrar esforços para ouvir mais plenamente os outros e tentar captar o essencial das suas palavras, dos seus sentimentos e dos seus interesses.
"Anseios e rumos
"Há momentos históricos que exigem verdadeiros pontos de inflexão no rumo político de uma sociedade; drásticas mudanças de direcção que são necessárias em situações muito especiais, principalmente quando temos atravessado longos períodos sem conseguirmos ajustar o rumo no decorrer dos factos. No entanto, é negativo que avancemos dando pulos de forma constante, com cortes na trajectória e grandes disrupções. Convém estar alertas e ter determinação para efectuar oportunamente aqueles ajustes que nos permitam resolver sérios problemas, em lugar de adiar ou ignorar essas soluções, facto que só nos levará a reservar forças que mais tarde vão extravasar, gerando altos custos e uma permanente descontinuidade de esforços.
"O canibalismo político e o sobrepeso de egos e interesses individuais atentam contra os interesses do conjunto social e impedem que as nossas necessidades e aspirações sejam atendidas. Ainda que as paixões e as mesquinhices ganhem força, vale a pena irmos para além dessas torrentes para olhar os outros nos olhos, reconhecer os seus medos, assegurar-lhes o nosso respeito e encarar com eles a tarefa conjunta de construir a paz e o bem-estar. Será a justiça e a firmeza dos justos, a generosidade e a compaixão que nascem da boa vontade, a criatividade e o talento de cada um, a responsabilidade, a habilidade e a visão dos nossos líderes que vão nos permitir construir caminhos de desenvolvimento sustentável, cicatrizar feridas, aproximar os irmãos, abater juntos a desigualdade e a pobreza. Nesse devir—que não é uma utopia, e sim um desafio—também haverá oportunidade de reflectir sobre os enigmas da vida e do desnorteamento no qual caímos ciclicamente. Ninguém poderá dizer que a agenda da humanidade é estreita; ela nunca o foi e não o será desde que continuem a surgir anseios à procura de novos e melhores rumos. Tomara que o ano de 2015, que está à porta, nos encontre decididos a continuar essa busca."
FIM DA TRANCRIÇÃO!
Este artigo, caros amigos, parece escrito por alguém entre nós. O seu conteúdo é tão actual no modo como espelha a nossa realidade. Basta relermos alguns 'posts', aqui no Facebook , e alguns artigos de opinião nos jornais que se publicam no país (sobretudo os privados), ou voltar a ver alguns comentários ou "análises" dos nossos comentadores ou "analistas" nos canais de televisão que operam no país; basta fazermos isso para compreender que este artigo nos toca profundamente. Em vinte anos de paz parente, não aprendemos a coexistir com ordem e civismo. Com efeito, durante este tempo vimos arruaças na nossa Assembleia da República; vimos concidadãos que, em violação clara da nossa Constituição, voltaram a entrincheirar-se nas matas das províncias de Manica e Sofala, a partir de onde se rearmaram e conduziram ataques armados contra outros concidadãos. Tudo isto atesta que ainda temos grandes dificuldades de transformar inimigos em adversários; temos dificuldades de "pôr os pontos nos ís".
Quiçá o novo ciclo de governação prometido pelo candidato da Frelimo, Filipe Jacinto Nyusi, ora eleito para Presidente da República, esperando confirmação pelo Conselho Constitucional, e que diz ter espaço para todos os moçambicanos no seu coração, oriente-nos a olhar para dentro e a estar alertas e com determinação para efectuarmos, oportunamente, as mudanças necessárias para ultrapassar as diferenças que arrastamos do passado e enterrar definitivamente o machado de guerra. Só assim o Moçambique desenvolvido e próspero, o Moçambique para todos, o Moçambique apartidário, será possível. Estes anseios e rumos foram os tópicos mais representativos dos discursos de campanha eleitoral recentemente terminada; são os anseios e rumos com os quais todos nos identificamos. Para os materializar, porém, temos que ter coragem de olhar para dentro de nós mesmos e daí retirar tudo o que nos faz olhar uns para os outros, reciprocamente, como inimigos. Fiquemos adversários, pois isso é condição essencial para a promoção do desenvolvimento, mas nunca, nunca mais como inimigos. Temos que ir "pondo os pontos no ís"!
(…) [Ainda temos mais!... Até breve.]

1 comentário:

Anónimo disse...

tem boas ideias mas no fim foi parcial.alguem.foi para o mato combater um inmigo ou adversario?