quarta-feira, 1 de maio de 2013

O outro lado da riqueza moçambicana: entrevista ao arquiteto Jorge Forjaz

 

Crítico face à forma como o poder político moçambicano tem retido para si a riqueza gerada, o conceituado arquiteto José Forjaz defende que o investimento estrangeiro reverta mais a favor do povo.
Anabela Campos e António Silva (foto)
O outro lado riqueza moçambicana: entrevista ao arquiteto Jorge Forjaz
É uma referência da arquitetura moçambicana e uma personalidade marcante da elite cultural do país. Nasceu em Portugal, formou-se na Escola de Belas Artes do Porto e chegou a Moçambique em 1952. Integrou o primeiro governo do país independente, liderado por Samora Machel, com quem trabalhou de perto e de quem foi secretário de Estado do Planeamento Físico. Foi diretor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Eduardo Mondlane. É coordenador do atual Plano de Estrutura da Cidade de Maputo. Em entrevista ao Expresso, não poupou as críticas.
Maputo é uma cidade especial em África, bem estruturada, com uma arquitetura interessante.Já foi mais. Maputo era uma cidade mais verde, muito agradável para os privilegiados que a habitavam. Mas a população que servia esses privilegiados vivia e vive mal. Vivia nos arredores, não tinha luz, água, estradas, transportes ou escolas. Ou tinha de forma insuficiente. Com esta reserva, digamos que a então Lourenço Marques formou-se e estruturou-se como uma cidade bem planeada, bem marcada no terreno e com visão. Os urbanistas pré-independência que a definiram fizeram um trabalho muito interessante.
E os planos pós-independência como foram?Em termos legais há apenas um que conta, foi feito há quatro anos, e é o Plano de Estrutura da Cidade de Maputo. É um plano estratégico, estruturante para o futuro da cidade. Pretende equilibrar o centro da cidade, dar atenção à periferia e às linhas de crescimento, Traça uma estratégia para reabilitação dos bairros informais, com atenção aos direitos adquiridos.
Disse que os moçambicanos que serviam Maputo antes da independência vivam mal e continuam a viver.As coisas melhoraram pouco ou até pioraram. A densidade é maior e as condições de habitabilidade são piores. Há uma organização espontânea insuficiente. O desordenamento físico e social leva a situações graves de criminalidade, porque não há condições de defesa, nem iluminação. A vida é muito dura.
Há falta de meios?Há e há falta de meios que façam cumprir a lei. A corrupção é generalizada e faz com que a lei seja um instrumento de enriquecimento das pessoas que a deviam fazer cumprir. É o caso do polícia que a manda parar para lhe pedir os documentos, e percebe logo que ele só quer 1000 meticais. porque não consegue viver com um salário de 50 ou 100 dólares por mês.
Não está a haver progresso no país ou há um retrocesso?Está a haver um retrocesso. Há mais pobreza hoje em Moçambique do que havia há 10 anos.
As diferenças sociais acentuaram-se apesar de o país estar a crescer 7% ao ano...Isso é uma estatística, não interessa. A economia está a crescer 7% porque há pessoas cujo rendimento cresce 50% e outras que diminui.
Não está a haver redistribuição da riqueza.Não. Há concentração da riqueza.
Está a acontecer dessa maneira porquê?Não há uma resposta curta. Há um sistema que envolve as forças internas e que não funciona. Porque é que Portugal está como está?
Por várias razões.Sim. Uma das quais é porque há uma debilidade ideológica absoluta nos governantes. E se não há política, não há ideologia. O pior é que quase só há políticos, não há política.
Em Portugal são muitas vezes pessoas com interesses pessoais que chegam ao poder.É exatamente o que acontece aqui. O poder é, neste momento, exclusivamente uma maneira de ficar rico, muito rico, anormalmente rico.
Não há mecanismos para distribuir a riqueza?Não, porque há o controlo absoluto de um partido único (a Frelimo).
Olhamos para Moçambique como um país com melhor governação do que Angola, Mas eventualmente as grandes descobertas (carvão/gás) estão criar uma tensão nas elites...Para se apropriarem ainda mais. A tensão existe há muito tempo. As pessoas não estão tentadas, estão envolvidas nesse tipo de operações.
Vai acontecer o que acontece em Angola?Já é exatamente a mesma coisa, embora a uma escala menor, porque também é menor a riqueza a concentrar. Porque seríamos diferentes? Não sei porque é que os angolanos são os maus e nós os bonzinhos? É perigoso dizer que Angola está mais corroída por corrupção, porque nós também estamos.
A sociedade civil está consciente disso?Sim. Talvez o único fator que dá esperança a este país é que, apesar de tudo, os órgãos de comunicação - que comunicam pouco, porque infelizmente há pouca gente que saiba ler e compreender um artigo de jornal - vão denunciando. As pessoas vão percebendo que estão a ser espoliadas nos seus direitos mais básicos.
Em Moçambique há liberdade de expressão.É verdade, é uma estratégia inteligente. Deixam-nos falar, mas não se faz nada. Vemos todos os dias nos jornais insultos diretos ao Presidente da República e aos ministros e não há um que reaja. Estamos a falar de insultos pessoais, do género: "Este senhor é um bandido" por isto e isto. Não há um jornalista a ser posto em tribunal para se provar que estava a mentir. No passado foram mortos jornalistas e vão ser mais.
Quando há tensão no ar isso pode acontecer?Há sempre tensão no ar. Os jornalistas e juízes que tentam ser honestos são os que são mortos.
As elites moçambicanas estão a ser mal influenciadas por o que se passa à sua volta?Má influência de quem, do Zimbabwe? O mal e a podridão do poder são generalizados. A corrupção é diária. Diga-me um país de África em que isso não acontece? Botswana talvez. Namíbia também tem menos incidência. Mas África do Sul é um buraco de corrupção. Zimbabwe já não é corrupção, é fascismo declarado. Situações como a da Guiné-Bissau (um narcoestado) acontecem porque há uma população que ainda não tomou conta dos seus direitos.
Vai tomar um dia?Vai demorar tempo. O que acho maravilhoso em países como Moçambique e cidades como Maputo é que apesar de tudo ainda podemos andar na rua. Tenho esperança que as coisas vão mudando. Há mais miúdos na escola e miúdos que leem livros. As televisões dão informação, má, mas sempre é alguma informação.
O povo moçambicano sabe o que quer.Sim, mas ainda insuficientemente. E os sistemas de afirmação de poder e de controlo são muito fortes.
Esse controlo faz-se como?Faz-se através da polícia. Faz-se de todas as maneiras. Faz-se brutalmente. Faz-se eliminando qualquer pessoa com um cargo diretivo que não esteja de acordo com o partido e os interesses das pessoas do partido. Quem não está connosco está contra nós. Há um absoluto descontrolo dos sistemas de segurança.
Está a surgir um poder policial mais musculado em Moçambique?Julgo que não, é só desleixo. Mas a polícia é um problema gravíssimo neste país.
Porque ganha mal?Por tudo. Faz abusos de poder constantemente. A atuação da polícia é talvez a mancha mais negra na credibilidade do país. Brutalidades, tortura, prisões sem mandato judicial. Cooperação e coabitação com bandidos.
As autoridades abusam mais do poder agora?Muito mais.
Porquê? Há menos ideologia no poder?Sim. E porque na corrupção o exemplo vem de cima.
Aconteceu a partir do momento em que o país começou a enriquecer?Com uma personalidade ideologicamente motivada e honesta do ponto de vista material, como era o presidente Samora Machel, isto não acontecia. Ou, melhor, acontecia tão escondidamente que quem se revelasse era punido, porque havia uma grande integridade ao nível governamental. Não há memória, nem passava pela cabeça de ninguém que um ministro pudesse estar envolvido em negócios menos claros.
Faltam em África líderes como Samora Machel e Nelson Mandela.Faltam, mas há espaço para aparecerem. Trabalhei muitos anos na universidade e vi passar gerações de pessoas bem pensantes e motivadas. Apesar de tudo, o país vai funcionando. Infelizmente, repetem-se as asneiras feitas por outros países. Vai levar anos, vai ser preciso paciência e persistência. Mas o mundo é feito todos os dias. É estúpido ser otimista, mas também é ser pessimista. Ficaram no país a trabalhar após a independência pouquíssimos otimistas, esses estão quase todos no Banco Mundial ou nas Nações Unidas, a ganhar muito bem.
Há vários países interessados em investir em Moçambique. Vê isto com preocupação?Com muita preocupação, justificada pelo desastre que já foi a maneira como se concederam direitos a esses investidores. Direito a tirar do país tudo o que não deviam tirar. Essas grandes empresas não estão cá para fazer Moçambique mais rico, mas para se fazerem a si próprias mais ricas. Há maneiras mais eficientes de deixar ficar cá mais do que levam. Os proventos chorudos que ficam em Moçambique ficam para muito poucos. Cria-se uma pequena burguesia rica satisfeita. Tudo isto é produto de má negociação. Poderá ser incompetência ou interesse. Julgo que são as duas. O facto de haver investidores nacionais que são dirigentes do país e acionistas de empresas faz com que defendam os interesses destas para ficarem mais ricos, e não o dos desgraçados que estão em cima das minas de carvão

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