sábado, 18 de maio de 2013

Como ser campeão em pouco tempo

Elisio Macamo


 Está todo o mundo a festejar vitórias. Quando não é Portugal, é o Porto ou o Benfica, o que vai dar no mesmo. Cada vitória desses é mais um prego no caixão da dignidade nacional e mais uma desculpa para virarmos as costas ao que é nosso. E para o cúmulo de tudo, aparecem aí países como Cabo Verde a darem “show” em copas africanas, conseguindo prestações que Moçambique, em várias participações, nunca logrou. E isso é mais outro prego, mas outra desculpa. Que fazer, teria perguntado Lénine.
Esta pergunta dirigida ao desporto é muito complicada. Não existe fórmula para o sucesso (mas eu tenho uma), por muito que as evidências nos sugiram o contrário. Naturalmente que faz parte da lógica do raciocínio humano supor que exista uma receita capaz de garantir o sucesso. Esse raciocínio é sobretudo evidente na crença de todo aquele que ganha (e de todo aquele que perde) na ideia de que quem ganha, ganha porque fez tudo bem (e quem perde, perde porque fez tudo mal). Esta é uma lógica inabalável do pensamento desportivo, apenas sacudida, mas nunca derrubada, pelas culpas que sempre se podem lançar ao árbitro. Transferimos esta lógica para a apreciação do sucesso desportivo duma forma geral. Partimos do princípio algo curioso segundo o qual o mundo desportivo seria justo (esta é na verdade a falácia do jogo de azar), premiando, portanto, quem tudo bem faz. O que descuramos neste raciocínio, contudo, é que poderíamos, por hipótese, investir rios de dinheiro no futebol, no basquetebol e no atletismo e mesmo assim não ganharmos nada, não porque não praticamos bem essas modalidades, mas sim porque outros as praticam ainda melhor (e têm os árbitros do seu lado...).
O que eu quero dizer é que um dos maiores impecilhos à uma reflexão profunda sobre a crise do desporto moçambicano – se é que crise é – é o tipo de expectativas que temos. E como é próprio, aparentemente, do moçambicano, pensar que bem vistas as coisas ele merece ser melhor em tudo (e de preferência sem nenhum esforço) cada desaire sofrido constitui sempre um motivo para a procura de bodes expiatórios. Para não variar, o bode expiatório predilecto é, naturalmente, o governo seguido dos funcionários das federações respectivas. O primeiro não investe o que devia investir enquanto que os segundos andam por aí atrás dos seus próprios negócios. Diz-se por aí. Aqui também funciona mais um aspecto da lógica do raciocínio humano que consiste na tendência de encontrar culpados longe de nós mesmos, uma modalidade quase desportiva que os moçambicanos perfecionaram de forma incrível. O que está mal, está mal porque outros não fizeram a sua parte. É verdade que nós também não fizemos a nossa parte, mas não a fizemos porque estávamos ainda à espera que os outros fizessem a sua parte. Em Changana existe uma expressão idiomática que descreve este dilema moçambicano: titafa ticuvukanin (vão morrer a se entreolharem; refere-se à uma observação do comportamento de algumas serpentes que de tanto se fixarem nos olhos não arredam... por pouco escrevia “pé”... não se movimentam e acabam morrendo ali mesmo; nunca vi, mas uso a expressão com gosto).
Então já temos dois problemas identificados, o que é sempre bom na procura duma melhor formulação dum problema. Primeiro, temos o problema de pensar que os bons resultados premeiam bom trabalho. Não é verdade. Sem querer pisar os calos dum povo irmão, recuso-me a aceitar a ideia de que os sucessos de Angola no futebol e, sobretudo, no basquetebol se devam a um bom trabalho de base. Angola chegou até a ir ao Mundial, meu Deus! Em basquetebol esses “Cotas” não conhecem o sabor da derrota há não sei quantos anos. Fruto de bom trabalho? Duvido. Por acaso, há algum tempo que ando com a ideia de fazer um trabalho de pesquisa sobre o basquetebol angolano que me parece o sucesso dum contexto social bem fechado que conseguiu estimular, e seleccionar, um número reduzido de talentos para o tipo de feitos que têm logrado. Há alguma afinidade com a Espanha, por acaso, embora não me sinta em condições de explicar isto melhor. Duma forma geral, o sucesso desportivo angolano é mais obra do acaso do que desígnio da mesma forma que o recente sucesso cabo-verdiano no futebol também me parece ser. Nenhuma destas observações tira o mérito aos desportistas desses dois países, muito menos às sociedades que os produziram. Só que feridos no nosso amor-próprio de termos o direito de sermos os melhores do mundo (ou pelo menos os melhores de África) exageramos os feitos dos outros para podermos com maior facilidade encontrar culpados na nossa miséria.
Segundo, temos o problema das expectativas. Nos últimos anos o nosso futebol deu-nos muitas alegrias. Fez-nos também chorar, a última das quais foi aquela pouca-vergonha de Marrocos que deixou um sabor amargo na boca, sobretudo em relação à integridade moral dos jogadores e dos funcionários. Mas que tipo de desempenho precisamos de ter para considerarmos que estamos bem? Ganhar campeonatos? Ir a todas finais? Enquanto não soubermos como responder a estas questões vai ser difícil avaliar o verdadeiro desempenho do nosso desporto. É uma questão de reduzir expectativas a um nível mais racional e, sobretudo, humilde. Quantos anos andou a Zâmbia à procura do título apesar de desempenhos sempre equilibrados (e óptimos) durante anos a fio? O Gana está aí com prestações constantes e quase sempre a claudicar pertinho do título. Está tudo mal lá com o seu futebol? Então, as nossas expectativas são um grande problema, é por aqui que devemos começar a formular o problema do nosso desporto.
A minha sugestão, tendo em conta estes dois pontos, é de que a crise do nosso desporto é acima de tudo uma crise de cidadania. Tudo, como podem ver, desemboca na política (kikikiki). Para se ultrapassar a crise do desporto – se crise há – seria necessário reforçar a cidadania. O que é, então, preciso fazer? Duas coisas só me parecem prioritárias. A primeira prioridade na revitalização do nosso desporto é afastar o governo de tudo quanto tenha a ver com o desporto. Alguém vai logo pensar noutros países que investem no desporto. É um mito. São poucos os países que investem directamente no desporto. Desses poucos fazem parte, naturalmente, os países com governos autoritários, tipo China e, porque não, Angola. Mas países mesmo a sério não gastam dinheiro como nós o fazemos em coisas tão mesquinhas. O treinador alemão de futebol não é pago pelo governo, mas sim pela Federação de Futebol e esta, por sua vez, pelas contribuições dos clubes associados. O que acontece entre nós é uma aberração. A primeira prioridade implica, portanto, fechar o Ministério do Desporto e da Juventude, um organismo de resto supérfluo (nada contra quem lá trabalha). O dinheiro que disso for poupado (incluíndo o dinheiro que for poupado se alguém se lembrar de desligar a iluminação nocturna do Estádio do Zimpeto) pode ser investido na criação dum Fundo Nacional de Desporto a ser gerido por representantes de associações desportivas e cuja finalidade será o investimento em infra-estruturas desportivas e afins. A importância desta medida reside no facto de que tirando o governo do desporto desaparecerá também o mau hábito de culpar o governo por coisas que não pode fazer. Isto não prejudica o papel do Estado na promoção do desporto escolar, mas isso seria tarefa do Ministério da Educação. A segunda prioridade consiste em declarar o desporto (por mim até por emenda constitucional...) assunto particular dos cidadãos que têm a liberdade de formar associações desportivas e constituir orgãos soberanos para se ocuparem da modalidade do seu interesse. Ao nível local – do Município, por exemplo – os cidadãos podem exigir um certo compromisso das autoridades (por exemplo, infra-estruturas) seguindo o que o procedimento democrático estipula. Mais uma vez, o mérito disto é de devolver a iniciativa às pessoas tornando-as mais responsáveis e promovendo, ao mesmo tempo, a participação cívica. Se Moçambique não der nada no desporto ficamos a saber quem é o culpado: nós mesmos. Não haverá nenhuma razão para andar aí a apontar o dedo em riste contra seja lá quem for.
Estas duas medidas não garantem sucesso. Garantem, contudo, uma coisa que nenhum título pode dar, nomeadamente o sentimento de que somos parte dum projecto cujo sucesso depende de cada um de nós. Esse sentimento ajuda a temperar expectativas e, consequentemente, a ser mais realístico na formulação de objectivos. Os clubes que herdámos dos portugueses não eram apenas associações desportivas. Foram, acima de tudo, manifestações de cultura cívica através da qual os indivíduos recuperaram um certo sentido de cidadania e autonomia. É interessante notar, por exemplo, que praticamente em todo o período pós-colonial não surgiu nenhuma associação desportiva de cariz associativo. Tudo o que apareceu aí foi resultado do investimento de alguns indivíduos ou de empresas. O estado do nosso desporto é um triste comentário à qualidade da cidadania em Moçambique. E é isto que precisa de ser corrigido para que, quem sabe, os jovens voltem a ter orgulho em si próprios e se identifiquem com o seu País.
Não me chamem de feiticeiro, mas os primeiros comentários aqui vão ser de quem vai querer me explicar porque com este governo o desporto nacional nunca vai melhorar... ergo!


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  • Domingos Rodrigues Tou de acordo com ideia que nos oferece. Olhamos mais para as coisas de fora e nos esquecemos das nossas.

  • Marílio Wane com certeza. muitas coisas dependem de criar mecanismos pra envolver e responsabilizar mais as pessoas. desde a limpeza publica, por exemplo, ate a pesquisa cientifica. realmente, o governo (rs) ocupa muitos espacos na sociedade, alguns deles ate por inercia da nossa historia politica.

  • Celso Muianga Concordo. Um exemplo no futebol, mas que não sirva para justificar as nossas derrotas: Espanha ganhou Euro, pela primeira vez em 1964, à URSS. E depois a caminhada no deserto, não obstante estar sempre ao nível dos melhores campeonatos e selecções mundiais. Só em 2008, 2010, 2012 regressou ao pódio onde há alguns anos, o Brasil, a Argentina, não têm comparecido. Outro caso é a Holanda que não ganha um Euro desde 1988. Por sinal o único título continental. Ainda não ganhou uma edição da Copa do Mundo. Tenho poucos exemplos africanos dado que só acompanhamos o desempenho de algumas nações no CAN. Não temos recebido informação regular/aprofundanda dos campeonatos internos em ÁFRICA.

  • Bayano Valy cortar o cordão umbical.. melhor, desmamar o bebé.

  • Nevito Uamusse Se voltarmos a ser "donos" dos clubes, pagando quotas e exigindo que os fundos sejam bem geridos e a bem dos mesmos, moderando as nossas expectativas nas provas em que participamos, trabalhar seriamente na formação dos atletas (e Homens), sem falsificações de idades e identidades, entre outras razões, poderemos obter os tão bons resultados que almejamos.

  • Elisio Macamo pois, Marílio, ainda te deste conta a tempo. mas tens razão. a responsabilidade (ou desmamar para citar o Bayano) é que é. mas este texto valeu pelo menos por ter tirado o Celso Muianga da toca... só falta o Cremildo Bahule deixar só de curtir e vir falar aqui como homem! mas, sim, a holanda é um caso muito interessante. se houvesse justiça no mundo aquele país já teria ganho o mundial! Nevito Uamusse, é isso mesmo, embora eu não queira falar em voz alta porque a falsificaçâo de idades j'a foi opção para poder jogar basquetebol nos júniores... abraços.

  • Jaime Langa Elisio Macamo O insucesso do desporto "nas mãos" do Ministério de desportos, faz-me lembrar uma organização Dinamarquesa que negou apoio ao Ministério da Mulher, alegando que a mulher para ser apoiada não precisa de um Ministério mas sim precisa de ideias próprias para ser ajudada a desenvolver... Bravo.

  • Elisio Macamo risos, Jaime!esses dinamarqueses desconversam por vezes.

  • Bayano Valy eu também acho que às vezes ´nós deitamos fora o bebé com a água do banho. quero crer que tivemos em algum momento da epopeia revolucionária um grande movimento de massificação desportiva que iniciava nas escolas, nos bairros, e escolas de jogadores dos clubes, que constituíram verdadeiros viveiros. é verdade que a força motriz (para usar uma expressão em voga na altura) era o governo, mas que condições existiam para que a pequenada aderisse à esse movimento? havia campos - infelizmente, há quem tenha decidido que já não precisamos de fazer ginástica nos bairros. havia um controle sobre os atletas e os pais estavam envolvidos.

    para não inventarmos a roda, porque não buscarmos o que funcionou na altura e adequarmos ao nosso contexto? pensei que a faculdade dos desportos pesquisasse sobre o desporto.

  • Gilson Lázaro prof. Elísio Macamo: sinceramente acho que nos nossos países damos muito poder os respectivos governos ao ponto de oferecermos diariamente a gestão dos nossos gostos e paixões, e, rapidamente, esquecemos disso quando pretendemos responsabilizar-los pelos insucessos disso ou daquilo. Mas tem razão quanto fala da elevada dose de expectativas criadas em torno do desporto. Quanto ao basquetebol angolano, houve pelo menos o investimento pessoal de dois técnicos de clubes locais, por sinal os mais conhecidos, porém, também acho que seja por aí que se justifica as vitórias. Actualmente não existe formação em nenhum lado, tentou-se pôr meio de propaganda em 1999 massificar a modalidade nas escolas sem, contudo, lograr algum resultado, pois não se sabe ao certo se as expectativas eram dos jovens atletas ou dos gestores desportivos. Finalmente, também ando a tentar entender às razões das vitórias, pois hoje o campeonato nacional anda reduzido a quatro ou cinco equipas, cujo os jogadores se conhecem muito bem.

  • Gilson Lázaro Na verdade, quis dizer que tenho dúvidas que seja pelo empenho pessoal dos dois técnicos de basquetebol angolano que está na base das vitórias da selecção nacional.

  • Ivone Soares Li metade, continuo logo. Beijos

  • Honorio Isaias Massuanganhe Massuanganhe Ivone parabens! eu ainda estou no inicio, continuo...

  • Herminio Muiambo Tenho as minhas reticências em relação à "desmamentação". Mesmo a dita alta competição é suportada pelo Estado (CFM, HCB, mCel, EDM, etc). Seria interessante que o povo "tomasse o poder" das organizações da sociedade civil (Clubes, Associações, etc). Há pouco trabalho em relação à massificação desportiva. Os Clubes não se preocupam em ter mais sócios. Andam fechados a 7 chaves e não possuem iniciativas que chamem os adeptos. Em suma falta cultura desportiva no nosso querido Moçambique.

  • Ivone Soares Consegui concluir. O Elisio gosta de escrever textos longos. De tanto andar a lê-los preciso de óculos de vista. A partir do telemóvel as letras são ainda mais pequenas..

  • Pedro Tiago Esta coisa de leituras não é para todos... Brincadeira, gosto dos textos do Dr Elisio Macamo que sem papas na língua nos leva a imensa introspeção. Gostava que outros academicos, como Severino Ngoenha, Macuane, Lourenço do Rosário, por exemplo, partilhassem o seu saber connosco. Por enquanto, vou me inspirar neste.

  • Samuel Chacate gostei de saber que qd se trata do bem podemos cometer erros e trazer o bem para todos! o prof ja falsificou idade p jogar basquetebol nos juniores positivo, cometeu tal erro para o bem!

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