Elisio Macamo
Já na recta final:
Desde o ano passado que estou a tentar aprender Wolof, uma língua falada no Senegal e na Gâmbia. A língua interessa-me por uma razão simples: o Senegal fascina-me, a cultura política do país é única, a estrutura da sociedade é uma maravilha e as mulheres são duma elegância ímpar... Só que o Wolof não é língua fácil. Tem, por exemplo, uma ca...racterística bastante peculiar que consiste na articulação do emissor com o local e momento de enunciação, o que dá à língua um recurso valioso na clarificação de contextos de enunciação. Isto é interessante para o que gostaria de discutir nesta reflexão, nomeadamente a forma como construimos factos a partir da contextualização. A ideia é de que pela simples contextualização de informações podemos dizer muito sem que, necessariamente, tenhamos que assumir responsabilidade pelo sentido veiculado. Infelizmente, para os meus propósitos aqui, não posso entrar em questões técnicas mais específicas. Mas para aqueles que estão a ler o texto e têm formação em sociologia, refiro-me ao que Goffman chamou de “footing” e que eu estou a traduzir aqui por “contextualização”.
Um exemplo concreto é sempre melhor do que abstrações. Escolhi para este efeito um artigo publicado no dia 9 de Abril deste ano pelo jornal Canal de Moçambique com o título “FIR intensifica treinos militares no quartel da marinha de KaTembe”. É um texto magistral pela forma como usa este expediente para construir um facto, nomeadamente a natureza militar da Força de Intervenção Rápida e os propósitos políticos por ela servidos, sem, contudo, precisar de ser explícito. Vou começar por analisar os trechos de abertura que são interessantes. No primeiro parágrafo escreve-se: “Centenas de agentes da Força de Intervenção Rápida (FIR), unidade especial da Polícia da República de Moçambique (PRM), estão a receber treinos de artilharia e especialidade de ‘comandos’ no quartel de artilharia de Djidjidji, no distrito municipal da KaTembe, cidade de Maputo.” Por enquanto tudo bem. Em seguida escreve-se: “Fontes do Comando da Força Especial da PRM disseram que os treinos de artilharia para o grupo começaram há duas semanas, mas que outros grupos teriam passado por aquele quartel militar das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM)”. Tudo na boa. E depois: “O quartel de Djidjidji é uma unidade militar das FADM especializada em treinamento de armas pesadas desde morteiros 60 mm até aos tanques T-54, canhões BM21 que têm capacidade de destruição em massa, entre outras”. Pacífico. Mas agora: “Os treinos, segundo apurou o Canalmoz, são intensivos, numa altura em que as unidades da FIR e até já de unidades de grupos de comandos e outras forças especiais das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) e da Casa Militar estão a ser expedidas para a região centro do País para alegadamente combater o partido Renamo”.
O diabo, por assim dizer, está na frase “... numa altura em que as unidades da FIR (...) estão a ser expedidas para a região centro do País para ALEGADAMENTE COMBATER O PARTIDO RENAMO” (coloquei estas palavras em maísculas porque não sei como italicizar para o Facebook). A palavra “alegadamente” não funciona como citação, mas sim como uma forma de questionar a idoneidade das motivações das autoridades policiais. O golpe é dado, contudo, pela sugestão segundo a qual tudo isto poderia ter como pano de fundo o “combate ao partido Renamo”. Reparem que o artigo não diz que a FIR está a receber treino militar para combater o partido Renamo; reparem também que não se trata dum combate, se combate é, a homens armados que se identificam com um partido político, mas sim dum combate a um partido, o que magistralmente – e para os incautos – tira toda a legitimidade a toda a acção policial que for descrita no contexto dum relato no fundo neutro. E não só. Na segunda citação, “fontes do Comando da Força Especial” – cuja identidade não é revelada – confirmam a existência desses treinos, o que no contexto da estrutura narrativa sugere a veracidade da insinuação feita pelo jornalista. Reparem também que não se diz qual é a explicação dada pelas “fontes” para este tipo de formação, mas fica a ideia de que essas “fontes” confirmam a insinuação do jornalista.
O artigo continua com uma descrição que relata os antecedentes do problema em Muxúngué e também com um relato neutro da acção policial: “Neste assalto à sede politica da Renamo em Muxúnguè a FIR usou armas de guerra e granadas de gás lacrimogénio, dispersou todos que lá estavam desarmados, apreendeu 16 cidadãos, e apreendeu ainda sacos de roupas civis, panelas e outros utensílios de cozinha, e 56 bicicletas”. É possível que eu esteja a ser mesquinho, mas o contraste entre “armas de guerra” e “todos que lá estavam desarmados” nessa “sede política” dum partido mais a apreensão de objectos de uso civil e pacífico é excelente. O artigo não diz que a FIR usou força desmedida contra civis indefesos e inocentes e se apropriou dos seus bens. Mas tendo em conta o contexto que envolve o relato, é mesmo isso que está a dizer. Ou melhor, o que escreveu pode ser interpretado dessa maneira. Só que acontecendo isso, ninguém pode responsabilizar o jornal de estar a espalhar boatos. Esta citação, na verdade, pode ser contrastada com o parágrafo que fecha o artigo: “Na madrugada seguinte, homens da Renamo assaltaram o quartel improvisado da FIR para alegadamente tentarem libertar os seus homens detidos na cadeia ali situada na esquadra local. Desse assalto, que teve inicio às 03h40 e só viria a terminar cerca de quarenta minutos depois, como pode testemunhar a nossa Reportagem que assistiu aos confrontos de uma distancia de cerca de duzentos metros, resultaram 4 mortos e 13 feridos entre homens da FIR, e ainda uma senhora civil”. Há vários aspectos interessantes neste trecho, alguns dos quais são mais do pelouro da capacidade comunicativa do articulista. Por exemplo, estou com alguma dificuldade em perceber o significado de “quartel improvisado da FIR” e a expressão “cadeia ali situada na esquadra local”. Igualmente, não percebo a função da construção “teve início às 03h40 e só viria a terminar cerca de quarenta minutos depois...” Não percebo a exactidão da indicação da hora do início, ou melhor, acho-a impressionante, mas confusa quando o articulista escreve, em seguida, que “SÓ VIRIA a terminar CERCA de quarenta minutos depois”. A questão não é o que ele andava a fazer a essa hora em Muxúngué (para ser testemunha ocular...), mas sim como pôde reter essa hora exacta, mas não o tempo que o assalto levou. Porque não desligou o cronómetro assim que o ataque terminou e registou a hora? E atenção, não estou a dizer que o repórter esteja a mentir. Acho simplesmente interessante o tipo de decisões que ele tomou para nos transmitir a informação. Acho também fascinante que ele tenha presenciado a coisa a uma distância de 200 metros (é possível, claro, há gente mais destemida do que eu) e, sem nenhuma referência a fontes ter sido capaz de contabilizar “... 4 mortos e 13 feridos entre homens da FIR, e ainda uma senhora civil”. Mas o mais interessante ainda neste trecho é a forma como, à semelhança do que vimos no texto anterior da RM/AIM, ele constrói os factos como uma sucessão de acontecimentos com agenciamento próprio, portanto, sem responsabilidade clara de pessoas identificadas. Os homens da Renamo fizeram o ataque no intuito de libertar os seus camaradas, mas a sequência do relato confere aos acontecimentos uma dinâmica própria.
Repito, não estou a dizer que estamos perante um relato mentiroso. Isso não está em questão aqui. Duvido até que o jornalista que escreveu esta peça tenha consciência da verdadeira natureza dos recursos linguísticos por ele adoptados para fazer este relato. E essa é uma das questões que acho interessantes. A qualidade do que escrevemos sobre a nossa polícia não se pode julgar pela maldade ou benevolência de quem escreve. A qualidade do que escrevemos reflecte uma atitude que temos em relação às coisas da nossa terra e essa atitude estrutura a forma como construímos a facticidade de acontecimentos.
Já estou cansado, por isso, no próximo texto vou fechar a reflexão voltando à questão da relação entre a falta de respeito da polícia pelo cidadão e a falta de meios que caracteriza o seu trabalho. Vou tentar defender, como prometi, a polícia.
Desde o ano passado que estou a tentar aprender Wolof, uma língua falada no Senegal e na Gâmbia. A língua interessa-me por uma razão simples: o Senegal fascina-me, a cultura política do país é única, a estrutura da sociedade é uma maravilha e as mulheres são duma elegância ímpar... Só que o Wolof não é língua fácil. Tem, por exemplo, uma ca...racterística bastante peculiar que consiste na articulação do emissor com o local e momento de enunciação, o que dá à língua um recurso valioso na clarificação de contextos de enunciação. Isto é interessante para o que gostaria de discutir nesta reflexão, nomeadamente a forma como construimos factos a partir da contextualização. A ideia é de que pela simples contextualização de informações podemos dizer muito sem que, necessariamente, tenhamos que assumir responsabilidade pelo sentido veiculado. Infelizmente, para os meus propósitos aqui, não posso entrar em questões técnicas mais específicas. Mas para aqueles que estão a ler o texto e têm formação em sociologia, refiro-me ao que Goffman chamou de “footing” e que eu estou a traduzir aqui por “contextualização”.
Um exemplo concreto é sempre melhor do que abstrações. Escolhi para este efeito um artigo publicado no dia 9 de Abril deste ano pelo jornal Canal de Moçambique com o título “FIR intensifica treinos militares no quartel da marinha de KaTembe”. É um texto magistral pela forma como usa este expediente para construir um facto, nomeadamente a natureza militar da Força de Intervenção Rápida e os propósitos políticos por ela servidos, sem, contudo, precisar de ser explícito. Vou começar por analisar os trechos de abertura que são interessantes. No primeiro parágrafo escreve-se: “Centenas de agentes da Força de Intervenção Rápida (FIR), unidade especial da Polícia da República de Moçambique (PRM), estão a receber treinos de artilharia e especialidade de ‘comandos’ no quartel de artilharia de Djidjidji, no distrito municipal da KaTembe, cidade de Maputo.” Por enquanto tudo bem. Em seguida escreve-se: “Fontes do Comando da Força Especial da PRM disseram que os treinos de artilharia para o grupo começaram há duas semanas, mas que outros grupos teriam passado por aquele quartel militar das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM)”. Tudo na boa. E depois: “O quartel de Djidjidji é uma unidade militar das FADM especializada em treinamento de armas pesadas desde morteiros 60 mm até aos tanques T-54, canhões BM21 que têm capacidade de destruição em massa, entre outras”. Pacífico. Mas agora: “Os treinos, segundo apurou o Canalmoz, são intensivos, numa altura em que as unidades da FIR e até já de unidades de grupos de comandos e outras forças especiais das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) e da Casa Militar estão a ser expedidas para a região centro do País para alegadamente combater o partido Renamo”.
O diabo, por assim dizer, está na frase “... numa altura em que as unidades da FIR (...) estão a ser expedidas para a região centro do País para ALEGADAMENTE COMBATER O PARTIDO RENAMO” (coloquei estas palavras em maísculas porque não sei como italicizar para o Facebook). A palavra “alegadamente” não funciona como citação, mas sim como uma forma de questionar a idoneidade das motivações das autoridades policiais. O golpe é dado, contudo, pela sugestão segundo a qual tudo isto poderia ter como pano de fundo o “combate ao partido Renamo”. Reparem que o artigo não diz que a FIR está a receber treino militar para combater o partido Renamo; reparem também que não se trata dum combate, se combate é, a homens armados que se identificam com um partido político, mas sim dum combate a um partido, o que magistralmente – e para os incautos – tira toda a legitimidade a toda a acção policial que for descrita no contexto dum relato no fundo neutro. E não só. Na segunda citação, “fontes do Comando da Força Especial” – cuja identidade não é revelada – confirmam a existência desses treinos, o que no contexto da estrutura narrativa sugere a veracidade da insinuação feita pelo jornalista. Reparem também que não se diz qual é a explicação dada pelas “fontes” para este tipo de formação, mas fica a ideia de que essas “fontes” confirmam a insinuação do jornalista.
O artigo continua com uma descrição que relata os antecedentes do problema em Muxúngué e também com um relato neutro da acção policial: “Neste assalto à sede politica da Renamo em Muxúnguè a FIR usou armas de guerra e granadas de gás lacrimogénio, dispersou todos que lá estavam desarmados, apreendeu 16 cidadãos, e apreendeu ainda sacos de roupas civis, panelas e outros utensílios de cozinha, e 56 bicicletas”. É possível que eu esteja a ser mesquinho, mas o contraste entre “armas de guerra” e “todos que lá estavam desarmados” nessa “sede política” dum partido mais a apreensão de objectos de uso civil e pacífico é excelente. O artigo não diz que a FIR usou força desmedida contra civis indefesos e inocentes e se apropriou dos seus bens. Mas tendo em conta o contexto que envolve o relato, é mesmo isso que está a dizer. Ou melhor, o que escreveu pode ser interpretado dessa maneira. Só que acontecendo isso, ninguém pode responsabilizar o jornal de estar a espalhar boatos. Esta citação, na verdade, pode ser contrastada com o parágrafo que fecha o artigo: “Na madrugada seguinte, homens da Renamo assaltaram o quartel improvisado da FIR para alegadamente tentarem libertar os seus homens detidos na cadeia ali situada na esquadra local. Desse assalto, que teve inicio às 03h40 e só viria a terminar cerca de quarenta minutos depois, como pode testemunhar a nossa Reportagem que assistiu aos confrontos de uma distancia de cerca de duzentos metros, resultaram 4 mortos e 13 feridos entre homens da FIR, e ainda uma senhora civil”. Há vários aspectos interessantes neste trecho, alguns dos quais são mais do pelouro da capacidade comunicativa do articulista. Por exemplo, estou com alguma dificuldade em perceber o significado de “quartel improvisado da FIR” e a expressão “cadeia ali situada na esquadra local”. Igualmente, não percebo a função da construção “teve início às 03h40 e só viria a terminar cerca de quarenta minutos depois...” Não percebo a exactidão da indicação da hora do início, ou melhor, acho-a impressionante, mas confusa quando o articulista escreve, em seguida, que “SÓ VIRIA a terminar CERCA de quarenta minutos depois”. A questão não é o que ele andava a fazer a essa hora em Muxúngué (para ser testemunha ocular...), mas sim como pôde reter essa hora exacta, mas não o tempo que o assalto levou. Porque não desligou o cronómetro assim que o ataque terminou e registou a hora? E atenção, não estou a dizer que o repórter esteja a mentir. Acho simplesmente interessante o tipo de decisões que ele tomou para nos transmitir a informação. Acho também fascinante que ele tenha presenciado a coisa a uma distância de 200 metros (é possível, claro, há gente mais destemida do que eu) e, sem nenhuma referência a fontes ter sido capaz de contabilizar “... 4 mortos e 13 feridos entre homens da FIR, e ainda uma senhora civil”. Mas o mais interessante ainda neste trecho é a forma como, à semelhança do que vimos no texto anterior da RM/AIM, ele constrói os factos como uma sucessão de acontecimentos com agenciamento próprio, portanto, sem responsabilidade clara de pessoas identificadas. Os homens da Renamo fizeram o ataque no intuito de libertar os seus camaradas, mas a sequência do relato confere aos acontecimentos uma dinâmica própria.
Repito, não estou a dizer que estamos perante um relato mentiroso. Isso não está em questão aqui. Duvido até que o jornalista que escreveu esta peça tenha consciência da verdadeira natureza dos recursos linguísticos por ele adoptados para fazer este relato. E essa é uma das questões que acho interessantes. A qualidade do que escrevemos sobre a nossa polícia não se pode julgar pela maldade ou benevolência de quem escreve. A qualidade do que escrevemos reflecte uma atitude que temos em relação às coisas da nossa terra e essa atitude estrutura a forma como construímos a facticidade de acontecimentos.
Já estou cansado, por isso, no próximo texto vou fechar a reflexão voltando à questão da relação entre a falta de respeito da polícia pelo cidadão e a falta de meios que caracteriza o seu trabalho. Vou tentar defender, como prometi, a polícia.
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