segunda-feira, 6 de maio de 2013

A nossa polícia e o efeito “zoom”






Elisio Macamo


Depois da tempestade do sábado, prossigo com os meus textos de reflexão sobre a polícia.

A nossa polícia e o efeito “zoom”

Esta vai ser difícil. Espero que tenha ficado claro que o que tenho vindo a defender nesta reflexão é que a nossa língua não reflecte necessariamente a realidade. Quando falamos ou escrevemos não estamos apenas a usar a língua para descrever as coisas como elas são. Usamo-la, na verdade, também para representar as coisas de certa maneira. Ou por outra, a realidade não é necessariamente a pré-condição do uso da língua. A língua é que constitui a realidade e os fenómenos (esta é uma tese controversa em fórum próprio, por isso leiam-na com a devida precaução). Este reparo é importante para o efeito de “zoom” sobre o qual gostaria de reflectir neste texto. Quando fazemos um relato, sobretudo na imprensa, categorizamos coisas, isto é, arrumámo-las de acordo com categorias prévias que fazem parte das narrativas básicas que estruturam a nossa capacidade de conferir sentido e inteligibilidade às coisas. Este papo complicado todo é para dizer que o tamanho que determinadas coisas (eventos, fenómenos, etc.) têm nos nossos relatos é função do que nós gostaríamos de destacar no processo de construção da factos.
Interessam-me, em particular, dois mecanismos que usamos para este efeito. Um consiste na forma como nos legitamos como autores duma experiência. Parece ser importante transmitirmos a ideia de que somos pessoas normais que estão a fazer as coisas normais da vida quando são surpreendidas por uma coisa completamente fora do normal. Por exemplo, no texto anterior analisei um artigo que falava do incidente em que uma “bala perdida” alvejou mortalmente um circundante. Nesse artigo, “Vítimas da violência estatal”, faz-se um relato dos últimos momentos de vida da vítima. Ele saiu de casa como fazia todos os dias para ir comprar bebida que depois iria levar consumo em casa. Tudo normal. Mas como tivesse encontrado uma amiga que não via há muito tempo, quedou-se na conversa por alguns instantes com ela quando foi surpreendido fatalmente pelas balas do agente policial. Num momento, tudo normal, noutro momento, tudo anormal. Esta estrutura narrativa é muito comum quando temos, portanto, a necessidade de relatar algo extraordinário sem pôr em causa a nossa idoneidade como relatores dum determinado acontecimento. A outra coisa que ela faz, e esse é o outro mecanismo, é que por via da distinção normal/anormal a narrativa pode fazer a atenção incidir sobre outros aspectos do que se procura relatar em detrimento de alguns que, para uma melhor compreensão do sucedido, podem ser de importância vital. Fazemos, por assim dizer, o “zoom” descritivo.
Vou ilustrar isto com um texto escrito por um jornalista e que circulou (até chegar à minha caixa de correio) pela internet. É da autoria dum profissional do jornal “Verdade” que foi detido pela polícia, levado à uma esquadra da PIC onde e, segundo o que ele escreve, foi obrigado a passar 5 horas durante as quais a polícia não lhe disse exactamente que infracção tinha cometido e terminou por lavrar um auto ao qual ele não teve acesso, mas na base do qual lhe foi aplicada uma multa. Dentre as várias coisas que são interessantes neste depoimento há duas conclusões que ele tira: “Em todo momento fui tratado como detido e despido dos meus direitos, incluíndo a passeata noturna pública no carro da polícia e ninguém sequer se dignou a me dar um pedido de desculpas ou ao mínimo esclarecimento público ou privado...” e ainda “É minha opinião que há uma intenção de intimidar a media independente neste momento em Moçambique. Não sei porquê, mas suspeito que seja para nos fazer distrair dos assuntos de verdade que estão em curso (por exemplo composição das comissões provinciais de eleições por membros da Frelimo disfarçados de sociedade civil, etc)”. O caso foi muito falado no Facebook. No email em discussão o jornalista faz questão de dizer, em nota de rodapé, que a notícia da sua detenção correu o mundo e “...quase que garantiu que o País tenha descido mais um ponto no que se refere à liberdade de imprensa”. Estas conclusões são interessantes porque dão ao ocorrido uma dimensão política de grande alcance, o que torna necessário perceber melhor o que realmente aconteceu, pelo menos para mim.
E é aqui onde há problemas, ou melhor, é aqui onde o que escrevi mais acima sobre a distinção entre normal/anormal e “zoom” descritivo se torna particularmente relevante. Vou citar a passagem que me parece crucial em todo o texto: “Efectivamente na sexta feira, após ter sido parado no "road block" da polícia na zona do Marítimo, onde após me ter identificado conforme solicitado (BI, carta, livrete, etc), questionei certos comportamentos e atitudes dos polícias (trânsito e segurança pública) - e fui forçadamente convidado a passar umas 3 horas nos escritórios da PIC, e depois cerca de 1,5 horas adicional na esquadra do Triunfo.”. Ela é crucial porque todo o imbróglio começa aqui, na verdade. O resto do texto descreve com algum pormenor (mas com muitos apelos emocionais) o martírio do jornalista às mãos da polícia, martírio esse que consistiu essencialmente numa longa detenção sem esclarecimento das razões, segundo o que o próprio jornalista escreve. A passagem que citei é interessante porque corresponde ao padrão discutido mais acima: tudo é normal (o jornalista que circula pacato – e devidamente documentado – pela cidade), mas de repente a normalidade é quebrada (pelo “road block” – não um controlo policial!) e pela condução do jornalista à esquadra.
 
Uma passagem que me parece importante, mas que é completamente secundarizada no relato e no subsequente tratamento do acontecido, é a seguinte: “...questionei certos comportamentos e atitudes dos polícias “trânsito e segurança pública)...”, na verdade, uma passagem que está entre travessões (portanto, algo dito de passagem), embora faça parte duma sequência de eventos que é importante para a coerência e inteligibilidade do relato. Por exemplo, na continuação o autor escreve “... e fui forçadamente convidado a passar umas 3 horas...”, o que sugere, mas não afirma, uma ligação entre o questionamento de certos comportamentos e atitudes, por um lado, e o convite para uma detenção de 3 horas, por outro. Depois do relato pormenorizado sobre o martírio o autor ainda volta à questão do questionamento, também indirectamente, quando escreve: “Ninguém, nem na PIC, nem na esquadra, nem a posteriori as várias pessoas que falaram comigo sobre este assunto me conseguem explicar o porquê de um autostop no Marítimo, e subsequente questionamento da atitude policial, dar direito à minha transferencia para a PIC”. Portanto, tudo indica que o questionamento da atitude policial constitui elemento fundamental da história, mas o texto secundariza-o a favor da ampliação da forma como a polícia tratou o jornalista subsequentemente.
Mais uma vez. Não questiono (não quero ser convidado a acompanhar ninguém...) a veracidade do relato. Acho, contudo, muito estranho, que um momento muito importante do ocorrido seja sistematicamente relegado para segundo plano. É evidente que um motorista que tem a sua documentação em dia dificilmente pode proporcionar à polícia motivos suficientes para uma detenção como a que é descrita no texto. Há fortes razões para supor que o “questionamento do comportamento e da atitude da polícia” seja fundamental para a decisão tomada pelos agentes policiais. Daí que se torne interessante saber como é que este questionamento foi feito, que tipo de linguagem foi usada, que tipo de comportamento e atitude o jornalista assumiu em relação aos agentes da autoridade. Devo, contudo, dizer, para benefício do leitor descuidado, que mesmo que o jornalista tivesse sido mal-criado para com a polícia não teria havido nenhuma justificação para o que ele passou.
 
Só que explicando-se a detenção do jornalista por aí, caía por terra toda a teoria de conspiração que sustenta as conclusões que o texto tira sobre os desígnios obscuros duma polícia instrumentalizada pelo poder. Ou por outra, o “zoom” que o texto faz ao martírio sofrido pelo jornalista às mãos da polícia constrói outros factos, nomeadamente a instrumentalização política da polícia contra a imprensa, alimentando-se, contudo, da sugestão segundo a qual a arbitrariedade da polícia poderia afectar qualquer cidadão pacato. Eu tive muitas dificuldades em engolir a história, apesar de saber que a nossa polícia é muito arbitrária e que dela tudo se pode esperar. E com isto não estou a dizer que o relato do jornalista seja desonesto. Não é. Mas constitui uma base muito pobre para o tipo de discussões que temos tido na nossa esfera pública e, acima de tudo, para a ideia que temos da nossa polícia (que não presta, já sabemos), mas que merece maior objectividade para melhor conhecimento de causa.


Samuel Magaia, Une Mozambique and 12 others like this.




Camilo Khan Caro Professor, pessoalmente achei que o jornalista tinha tido, na altura, demasiados desentendimentos com a policia. Segundo ele, num outro relato pouco tempo antes, chegou a ser alvejado a tiro!! Pareceu-me que ele queria AVIDAMENTE um caso com a policia para se projectar. Será por isso que ele nao descreve os termos da discussão que teve no tal roda road block. Porque tornar-se-ia evidente que ele se portou como um vulgar provocador. O estranho e haver gente sa que acredita em tal relato, sem o questionar,pelo menos mentalmente.




Rui Lamarques Um reparo: o autor do desabafo aqui analisado não é jornalista. É apenas o fundador e dono do Jornal @Verdade. Portanto, não se trata de alguém que vive da escrita ou que tenha domínio da arte de argumentar e sustentar com factos o que escreve ou diz. Portanto, o texto em apreço não pode ser analisado como se fosse um texto produzido por mim ou outro jornalista ainda que se possa dizer que não existe objectividade em estado puro e que nos textos jornalísticos a fronteira entre opinião, informação e interpretação seja muito ténue.

Julgo que seria importante que o professor fizesse um texto sobre a construção da crença. Ou seja, como e em que circunstâncias Erik Charas passou a crer que a sua detenção tem mão da Frelimo e resulta de um ardil para amedrontar a imprensa por causa da proximidade das eleições.

É impossível estabelecer uma relação causal e provar uma possível conspiração no episódio em análise. Aliás, prová-lo seria muito mais difícil do que um camelo entrar pelo buraco de uma agulha.




Celsio BilaBoss a história é sempre susceptível de subjetivismos, influenciado por vários factores. De facto é prudente a dificuldade que tem de engolir a história, até porque os relatos, como bem disse, são omissos quanto ao real motivo da detenção. É possivel que tenha resistido a uma ordem... Não digo que foi o caso. Aliás, mesmo que tenha sido, há que se considerarem os excessos na actuação policial. Como vêm, não pretendo contudo, defender a actuação da polícia, pois várias vezes ela agiu com arbitrariedade, em abuso do poder. Todavia, solidarizo-me com o Jornalista, mas digo que, se de facto foi vítima da incúria, então, que siga os trâmites à disposição, nos termos da Constituição da República de Moçambique.




Elisio Macamo caro Camilo Khan, obrigado pelo seu comentário. não posso dizer, a partir do texto analisado, se o autor queria protagonismo ou não, nem se ele se portou como um vulgar provocador. no texto não há matéria que sustente isso. mas também no texto não há matéria que sustenta as conclusões que o autor tira. e esse é que é o problema. com que base concluímos nós os leitores que ele foi vítima de perseguição política à imprensa? muito ténue, acho. claro, caro Celsio BilaBoss, o autor, como qualquer outro cidadão, sempre tem o recurso jurídico. só que esse já é outro assunto. não há dúvidas que a nossa polícia tem cometido excessos, em cada texto escrito nesta reflexão faço questão de deixar isso claro. preocupa-me, contudo, que muitos de nós usemos essa experiência duma força policial que se porta mal como critério de avaliação de seja qual for o relato que nos é feito da sua actuação. isso tem o condão, julgo, de exagerar os excessos da polícia. caro Rui Lamarques, obrigado pelo reparo em relação ao autor. na verdade, como ele próprio usa o seu caso com a polícia para tirar conclusões em relação à imprensa (até escreve que provavelmente por causa deste incidente moçambique perdeu pontos na escala de liberdade de imprensa) supuz que se tratasse de jornalista. de qualquer maneira, o essencial da história não fica muito afectado por essa correcção, pois para mim o que conta aqui é a forma como o relato contribui para construir uma imagem problemática da polícia que acaba afectando não só a nossa percepção dessa instituição como também a forma como com ela lidamos. a questão da construção dessa crença numa perseguição é interessante. acho que valeria a pena ver isso com cuidado. só que cai fora da reflexão que estou a fazer aqui, embora reconheça que numa reflexão abrangente devesse constar. afinal, é parcialmente essa crença que estrutura o tipo de discurso que produzimos sobre a polícia. abraços.




Vasco Antonio É interessante essa aula sobre a leitura crítica da realidade. Para me é importante lembrar que essa construção da realidade “Moçambicana”, as suas penúmbras não são e somente visíveis nos artigos jornalísticos, mas também a nível académico com investigadores com uma “boa” experiência de trabalho investigativo, atingem `a uma esfera de consciência reflexiva legitimada pelo espaço público onde actuam e passam a construir “conhecimento” minado e discursos intelectuais emocionais. Mas não vou parar por aqui, vou tentar trazer evidências dessas lacunas brevimente, baseando-me em um artigo recente da IESE que faz parte da Obra: Desafios para Mocambique 2012. Um artigo (ensaio) que suscita uma reflexao interessante, mas perigoso para leitores acríticos.

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