domingo, 21 de abril de 2013

EM JEITO DE EPÍSTOLA

 

CRÓNICA de: Leonel Marcelino
 
(Carta de um irmão moçambicano que estuda em Lisboa)
 
Irmão
 
Hoje, entendi muito claramente a loucura destes desinfelizes ocidentais. Aconteceu durante um debate, lá na Faculdade, acerca da felicidade dos povos. Ao referirem-se a África, consideraram-na a região mais infeliz do mundo. Afirmaram que morremos de guerras, de fomes, de doenças, de ignorância… Na sua opinião, matamos de abandono milhares de crianças que vegetam nas ruas, vivendo morrendo. Também as cidades abarrotam de marginais e o desrespeito alastra como queimada descontrolada, enquanto os nossos «líderes»se assassinam ritualmente.
Vai daí, entendem, na sua arrogância civilizada, que a vida entre nós é impossível e que eles têm remédio para tudo, incluindo para as nossas chagas. Então, organizam-se em organizações muito organizadas e infalíveis que, muito infalivelmente, nos oferecem a felicidade, a sua felicidade, mesmo contra a nossa vontade. Reúnem fundos, assembleiam-se, discutem, elaboram complicados projectos em gabinetes todos armadilhados do que há de mais moderno, inspirando-se em goles de caros whiskys, para encontrarem a universal felicidade dos povos. E, ali mesmo, em imaculado papel timbrado, tudo fica resolvido e decidido: a paz, a doença, a fome, a educação, a alegria de viver, incluindo a libertação das mulheres e o riso das crianças.
Pelo caminhar deles, caro primo, qualquer dia nem podes deixar sair o ar dos intestinos, se isso não estiver previsto no projecto.
São tão caridosos e tão originais, estes camaradas do sol-posto!...
Enchem-nos as terras de pesticidas, mas deixam continuar a malária; semeiam tractores pelos campos e matam-nos, a nós, de desemprego e, a eles, aos tractores, de ferrugem e de sufocação; derrubam as árvores e vindimam o mato para nos encherem de cimento; atafulham-nos de calamidades, promovendo a indigência e a indignidade. Enfim, apostam em tirar as crianças da rua, mas não cessam de criar vadios, preguiçosos e analfabetos.
Há quantos anos dura isto? Há quantos anos continuam a insultar-nos nos seus relatórios e nas suas boas vontades, sem compreenderem por que é que tão sumptuosos e eficazes projectos dão rotundos estoiros em África? Todas as estatísticas dizem que, mau grado tão inteligentes e dispendiosos projectos, a miséria alastra e o atraso se acentua, de ano para ano. E, para estes estranhos povos, a culpa é sempre do povo africano.
Somos preguiçosos, desleixados, irresponsáveis, ignorantes. Somos pretos!
«Ai quem dera que desistissem de nós!
Quem dera!», suspirei.
Espantaram-se com esta minha exclamação. Olharam-me como uma donzela olharia um elefante apaixonado pelos seus olhos.
Ao espanto, sucedeu-se a ira e tive dificuldade em fazer-me entender. Mas, armei-me daquela paciência do cágado e perguntei-lhes:- Quantas organizações já organizaram connosco, para nós? Quantos projectos já desenharam connosco, para nós? Quanto dinheiro gastaram a construir as «nossas»escolas e os «nossos» hospitais? Que fundos aplicaram na formação dos «nossos»professores, dos «nossos» políticos, dos «nossos» médicos, dos «nossos»advogados e engenheiros, dos «nossos» camponeses, dos «nossos» operários? Que ajuda nos ofereceram para aprendermos a amar a «nossa» cultura, a «nossa» arte, as «nossas» tecnologias, a «nossa» medicina, a «nossa» agricultura, as «nossas»raízes? Como esquecer a opressão de séculos? Como esquecer a destruição da nossa identidade praticada por gerações e gerações de colonizadores em nome do vosso Bem, do vosso Deus, dos vossos códigos?
Somos um povo perdido que precisa de encontrar-se. E aí, sim, precisamos do vosso dinheiro e da vossa ajuda: para aprendermos a ser nós próprios e não uma macaqueação de ocidentais. Queremos ser nós. Só conseguirão ajudar-nos quando respeitarem a nossa identidade. Se não o conseguem, então talvez seja melhor esquecerem-nos. Talvez que, sozinhos, aprendamos a superar os nossos problemas, satisfaçamos as nossas carências, encontremos o nosso caminho.
Talvez assim façamos a descoberta de nós próprios.
Encolheram os ombros e foram-se. Assim terminou, irmão, um debate que até poderia ter sido interessante.
WAMPHULA FAX – 22.04.2013

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