sábado, 15 de dezembro de 2012

Uma promessa eleitoral feita especialmente para si

Opinião

 

A democracia é o regime do confronto de opiniões e das escolhas entre diferenças. Não pode ser o regime onde se escondem confrontos e se disfarçam diferenças.
Comece com uma base de liberdades várias. Liberdade de opinião e de expressão, liberdade de imprensa, liberdade de associação e reunião. Misture bem e deite numa forma. Junte uma camada de partidos políticos condimentados com campanhas eleitorais e propaganda política cortada em fatias finas. Cubra com eleições feitas à base de voto universal, directo e secreto. Leve três meses ao forno, primeiro em lume brando e depois vá subindo a temperatura. Vá vigiando para não queimar. Vá regando com uma cobertura atenta da imprensa e preceitos constitucionais. Se não houver percalços, no fim da cozedura terá uma bela democracia, bem cozida por baixo e tostadinha por cima, que será a alegria de qualquer família.
É assim que gostamos de imaginar a nossa democracia. Como o resultado de uma velha receita de família, que começou a ser escrita há dois ou três séculos e que foi recebendo melhorias ao longo dos anos. Sabemos que há ingredientes que às vezes azedam, sabemos que há acidentes de percurso, mas no geral acreditamos que este regime permite auscultar a vontade do povo e representá-lo, graças à magia que acontece naquela cabine de voto isolada, onde uma cruz transfere (por uns anos) uma parte da nossa soberania para os nossos representantes eleitos.
Claro que sabemos que todos os actores políticos vão tentar convencer-nos da sua verdade, da bondade das suas soluções, da sua competência e da sua simpatia, mas isso faz parte do jogo do debate público, da discussão que gera a luz. E, seja como for, somos livres de escolher o que queremos e o que recusamos. Ou não seremos?
A manipulação dos consumidores e dos eleitores pelo marketing sempre fez correr rios de tinta mas é algo que pensamos que conhecemos bem. Conhecemos o poder do marketing sobre as nossas atitudes e comportamentos e por isso até existem leis que proíbem certos excessos na publicidade ou na propaganda política.
Só que... as coisas parecem estar a sofrer uma evolução pouco previsível graças à Internet, ao nosso uso das redes sociais, às bases de dados que não conhecemos mas onde vão sendo acumulados dados sobre tudo o que fazemos, dizemos, escrevemos, compramos, contestamos e admiramos e à tecnologia de data mining que permite agarrar numa massa informe de dados pulverizados e extrair informação que ninguém imaginava que estivesse lá. Informação sobre a firmeza das minhas convicções políticas, por exemplo, que permite concluir que não vale a pena investir dinheiro para mudar o meu sentido de voto. Ou informação sobre tudo aquilo que é passível de me fazer mudar de opinião, sobre a melhor maneira de o fazer, sobre o momento certo para o fazer, sobre os argumentos a usar, as fontes a citar.
Durante as últimas eleições presidenciais americanas a imprensa foi publicando algumas histórias sobre a forma como a campanha de Barack Obama estava a investir neste tipo de tecnologias (e a bater largamente Mitt Romney neste campo), mas era tudo bastante vago. Neste momento, com a eleição decidida, começa a haver um pouco mais de informação confirmada.
O que se sabe ao certo é que Obama investiu uma enorme quantidade de dinheiro na compra de dados sobre o comportamento de milhões de eleitores (não apenas o comportamento eleitoral, mas em muitas outras áreas) e reuniu equipas altamente sofisticadas de especialistas de informática e de ciências sociais para analisar esses dados. Não se sabe exactamente o que foi feito e com que ferramentas, mas uma das coisas que se sabe é que uma parte importante do conhecimento extraído destas bases de dados (com dados públicos) serviu para formatar a mensagem de Obama de forma a convencer os diferentes tipos de eleitores a que se dirigiu. É verdade que o marketing eleitoral sempre adaptou o discurso ao grupo-alvo que está à sua frente e que o discurso de um candidato não é o mesmo quando se dirige a mães solteiras ou a operários desempregados. Mas a táctica agora usada parece ter levado esta modulação do discurso a um nível nunca antes alcançado, graças a um conhecimento particularmente pormenorizado das características de cada um dos grupos em que o eleitorado foi dividido.
Não se trata apenas de fazer passar num dado canal de televisão a uma dada hora um anúncio dirigido ao perfil socio-demográfico que nesse momento vê esse canal. Trata-se de criar mensagens de email destinadas a pequenos grupos com traços muito particulares. Não é a mesma coisa? Não. Porque o anúncio de televisão, por pouco visto que seja, acontece num espaço público onde está submetido a um escrutínio público e as mensagens de email ou os telefonemas não. Um candidato pode assim apresentar-se de uma forma perante um dado grupo e de outra, completamente diferente, perante outro grupo, sem que isso seja perceptível do exterior. E nem precisa de mentir descaradamente. Basta que omita nas suas propostas, de cada vez, tudo o que sabe que pode alienar aquele votante e que inclua tudo o que o pode cativar. Isto significa que só em termos formais podemos dizer que as pessoas que votaram num dado candidato votaram de facto nas mesmas políticas. Não se conhece a extensão da modulação da mensagem do presidente eleito ou do seu adversário (todos o fazem), mas há razões para pensar que Obama o fez com maior eficácia, graças à sua Big Data Tactics. O facto, no entanto, não deve descansar os apoiantes de Obama, pois o custo elevado destas tecnologias e dos recursos humanos associados fazem recear que estas técnicas, em eleições futuras, possam passar a estar sempre do lado do candidato com mais dinheiro. A equipa de Mitt Romney estava desactualizada porque mantinha laços mais distantes com o mundo da alta tecnologia do que a de Obama. Mas já não estará da próxima vez.
A questão central que se coloca aqui é saber até que ponto é democrática a escolha colectiva de um candidato que tem lugar não num espaço público, numa arena onde se cruzam, à vista de todos, os argumentos de cada um e onde todos podem ver tudo, mas num espaço mais que privado, individual, onde cada promessa não é conhecida e não pode ser confrontada com as críticas do outro lado e os comentários da sociedade em geral e cujo cumprimento nem pode sequer ser posteriormente exigido.
A liturgia colectiva das eleições e o seu carácter universal não querem dizer apenas que todos votam, mas sim que todos participam, colectivamente, universalmente, de uma mesma campanha e de um mesmo debate. Uma eleição não é colectiva apenas no momento da soma dos votos. É-o desde o início, porque cada decisão individual de voto nasce do movimento colectivo da eleição, da campanha e do debate, do contraditório e do feedback. As eleições democráticas precisam do escrutínio que apenas uma total transparência concede, de um fórum onde todos possam ver tudo, e essa universalidade não pode ser substituída sem perigo por uma multiplicidade de conversas privadas, de seduções personalizadas sem escrutínio público.
A democracia é o regime do confronto de opiniões, das sínteses e das concessões e das escolhas entre diferenças. Não pode ser o regime onde se escondem confrontos e se disfarçam diferenças. A política personalizada para agradar a cada eleitor, um de cada vez, não é política. É apenas uma produção em série de mentiras políticas com alta incorporação tecnológica. A tecnologia para o fazer de forma cada vez mais eficaz já existe. Mas não deve ser utilizada.
Ainda que não se possa proibir a modulação do discurso político conforme a audiência – e há sempre audiências distintas, nunca há uma audiência formada pelo “grande público” – tem de ser possível a todos conhecer todas as mensagens difundidas, de forma que não seja possível maquilhar propostas políticas perante a opinião pública. E a tecnologia tem de procurar boas soluções para garantir esta visibilidade e este escrutínio.

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