terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Os Senhores da Sombra (i)

Escrito por Daniel Estulin

Na imagem: Biombo Namban retratando as actividades comerciais e religiosas entre Portugueses e Japoneses.

«Fascinante e misterioso, o Oriente, ou melhor, o Extremo Oriente sempre exerceu sobre o espírito ocidental uma atracção inegável.

(...) É verdade que a corrente de trocas entre o Oriente e o Ocidente existiu desde a mais remota antiguidade. Lorde Evans, ao escavar em Cnossos, encontrou um objecto de proveniência chinesa; os Romanos conheceram a rota da seda. Do Oriente mandavam vir tecidos e também estatuetas, como a que foi encontrada nas ruínas de Pompeia. Rota terrestre, pela Ásia Central, a rota da seda foi usada durante toda a Idade Média. A situação altera-se com o fim do século XV, com os descobrimentos dos Portugueses, que estabelecem a rota marítima do Extremo Oriente e trazem, além das sedas tradicionais, as especiarias e os produtos exóticos, os objectos bizarros feitos de substâncias desconhecidas: jade, cornalina, coral, porcelana. Para os homens da Renascença, não representam rigorosamente nada: estátuas caricatas de deuses considerados ridículos e desprezados sob o nome de macacos, Budas pacíficos e sorridentes, que só com uma grande dose de boa vontade podem comparar-se às imagens de Cristo, tecidos voluptuosos com dragões bordados a ouro, que valem mais do que o seu peso em ouro nos mercados de Lisboa ou de Amesterdão.

As relações continuavam a ser particularmente difíceis. No século XVI, os primeiros navios portugueses tinham tocado os portos chineses e japoneses. Em Cantão, em Amoy, em Macau, os Europeus tinham obtido autorização, não sem grande dificuldade, para abrir entrepostos comerciais. Ao mesmo tempo, apareciam na corte de Pequim os primeiros missionários, os jesuítas. Na pegada do padre Ricci, iam levar à China, antes mesmo de uma nova fé, um conjunto de técnicas desconhecidas.

(...) A partir do fim do século XVII, a China fecha-se pouco a pouco; os missionários são progressivamente expulsos - se-lo-ão definitivamente em 1814 - os navios europeus são vigiados, as relações comerciais limitadas.

(...) É quase paradoxal dizer-se que a arte chinesa vai reencontrar o caminho do Ocidente, após um longo eclipse, graças às expedições de tipo semicolonial que obrigarão a China a abrir-se à Europa.
Na imagem: A Grande Muralha da China

É através de uma embaixada do tipo clássico que a Inglaterra pensa entrar em relações oficiais com o Império do Meio. Em 1793, Lord Mac Cartney é simultaneamente o enviado do governo britânico e o da Companhia das Índias. Em nome deste última, reconhece-se tributário da China em matéria comercial; em nome do governo de Londres, oferece ao Imperador uma sumptuosa carruagem de madeira dourada e esculpida, guarnecida de sedas europeias e veludos de Génova, iluminada por lanternas de prata cinzelada... e uma bateria de obuses. Em 1816, uma segunda embaixada obtém resultados decepcionantes.

As coisas modificam-se completamente com a guerra do ópio, que estala quando, em 1839, o governador de Cantão, Lin Tseu-siu, manda destruir as cargas de ópio importadas nos navios da Companhia das Índias. No ano seguinte, uma esquadra inglesa bombardeia as costas chinesas. Em 1842, é assinado o primeiro dos «tratados desiguais» entre a China e as potências europeias. Hong-Kong é cedida à Grã-Bretanha, novos portos são abertos ao comércio internacional: os «portos de tratado». Sucessivamente, assiste-se ao nascimento do porto de Xangai, à aparição de França e dos Estados Unidos nas águas chinesas, e por fim à reaparição dos missionários».

Paul Ulrich («Os Grandes Enigmas das Civilizações Desaparecidas»).


«O ópio é cultivado em várias regiões diferentes do mundo: América do Sul; o Triângulo Dourado do Laos, Birmânia e Tailândia; no Afeganistão, Pasquitão e Ásia Central, numa região chamada o Crescente Dourado. A maioria das papoilas do ópio cresce numa estreita faixa de 7 250 km de montanhas que se estende pelo sul da Ásia, desde a Turquia ao Laos, passando pelo Paquistão. A papoila do ópio prefere um clima quente e seco a altitudes acima dos 1 220 metros, e é cultivada por tribos serranas de tailandeses e birmaneses. Quando está prestes a atingir a maturidade, a planta produz uma flor. Cerca de uma semana mais tarde, as pétalas caem, deixando uma vagem de onde é colhida a goma do ópio em bruto, cortando-a com uma lâmina ou faca afiada. A resina do ópio em bruto pinga pelo corte e é enrolada em bolas, postas a secar durante vários dias e, a seguir, enroladas numa casca de banana ou em plástico. «Os homens das tribos são pagos em barras de ouro de 1 quilo, conhecidas como 4/10, que são cunhadas pelo Credit Suisse. Essas pequenas barras são usadas apenas para pagar à população tribal, as barras de ouro de peso normal são comercializadas no mercado de Hong-Kong pelos grandes compradores de ópio em bruto ou de heroína parcialmente processada. Os mesmos métodos são usados para pagar a população tribal das montanhas da Índia, os Baluchis, que estão neste negócio desde o tempo dos Mongóis. A «Época da Droga», como é conhecida, assiste a uma inundação de ouro a ser comercializado no mercado de Hong-Kong» (John Coleman, Conspirators' Hierarchy: The Story of the Committee of 300, America, West Publishers, 1992).

O ópio em bruto é muitas vezes transportado pela Turquia e do Levante até à Córsega, para continuar o seu processamento na Europa, embora as zonas do Médio Oriente alberguem cada vez mais lucrativas refinarias de heroína. O litoral mediterrânico, de Marselha a Monte Carlo, tem-nas em abundância, e há quem especule que a família Grimaldi, que governa o Mónaco, está envolvida.

O Mónaco, onde o magnata do comércio do ouro, Edmond Safra, encontrou a sua estranha morte, é o mais importante centro mundial de processamento de ópio. Há quem acredite que tal não podia ser conseguido sem o apoio activo e protecção da família Grimaldi. Surgiu mesmo a teoria de que a Princesa Grace foi assassinada devido ao Príncipe Rainier exigir demasiado. Recusara-se a acatar diversos avisos, acreditando que era intocável. Ele, ou melhor, ela foi rapidamente despachada pela Nova Ordem Mundial. Até hoje, o Rover que a Princesa Grace conduzia na noite do acidente permanece sob custódia da polícia francesa.

(...) As fortes campanhas lançadas pelos governos centrais da Europa e da América do Norte a prometerem ao público «dar luta aos fornecedores de droga» são puro disparate. Se os governos quisessem verdadeiramente erradicar o tráfico de droga, elaborariam leis que obrigassem os fabricantes de anidrico acético, o produto químico fundamental para o fabrico de heroína, a manterem registos meticulosos que revelassem quem compra o produto, qual a sua finalidade e para onde vai. Mas essa acção unilateral por parte de qualquer governo desgarrado desagradaria enormemente às famílias oligárquicas da Europa e dos EUA porque (...) essa gente movimenta anualmente centenas de milhares de milhões de dólares de tráfico de drogas.

Escusado será dizer que o líder a ousar verdadeiramente «dar luta aos fornecedores de droga» a sério, se tornaria alvo de assassínio imediato. Porque é que os nomes dos «verdadeiros culpados», as famílias nobres da Grã-Bretanha e as pessoas mais importantes da América, permaneceram tanto tempo ocultos? Porque os bancos têm lucrado com o comércio ilegal através de uma miríade de intermediários e empresas fantasma, mantendo a sua participação criminosa bem escondida do escrutínio público».

Daniel Estulin («Os Senhores da Sombra»).


«A existência de fronteiras nacionais abertas, menos restrições comerciais, sistemas financeiros e de telecomunicações verdadeiramente globais oferecem grandes oportunidades às organizações criminais de expandirem as operações para além das fronteiras nacionais».

OFFICE OF INTERNATIONAL CRIMINAL JUSTICE, Bulletin, Inverno de 1996.


Droga, S.A.
Os barões da droga nos estados fora-da-lei beneficiam com o nefasto negócio dos narcóticos? As maiores e mais poderosas empresas do mundo e alguns dos nossos proeminentes cidadãos há muito que beneficiam do negócio muito antes de aparecer os Pablos Escobar e os Manuéis Noriega. O que têm em comum o terrorismo internacional, os mercados financeiros mundiais, a construção de impérios e o capitalismo? A total dependência dos lucros da droga para a sua própria existência.

A guerra à droga é um fingimento. Sempre o foi e, enquanto a droga der dinheiro, continuará a sê-lo, ao mesmo tempo que as nossas classes políticas fingem preocupar-se com os perigos do vício, usando lemas fáceis de decorar como «basta dizer não». Há razões históricas para tal.

No seu livro, baseado num grande trabalho de pesquisa, intitulado Opium, Empire and the Global Political Economy, o professor Carl Trocki argumenta que é possível ligar historicamente um comércio de droga organizado ao desenvolvimento do capitalismo. Na opinião do autor, uma das principais derivações do comércio de droga foi a criação de uma forma rudimentar de monopólio. «A existência de monopólio resultou na concentração de grandes quantidades de riqueza nas mãos de um grupo relativamente pequeno de pessoas. A riqueza levou à acumulação de poder. A acumulação de riqueza e poder produzida por uma sucessão histórica de comércios de droga tem estado entre as primeiras fundações do capitalismo global e dos próprios estados-nação modernos» (1).

Em resultado deste processo, Trocki afirma que ocorreram um certo número de transformações fundamentais na vida humana, contribuindo para a alteração espectacular do campo tanto social como económico. «Dois efeitos importantes são a criação de mercados de massas e a geração de um fluxo de capitais sem precedentes. Ao longo do tempo, as drogas tornaram-se um elemento essencial nas finanças de todas as estruturas criminosas, desde os impérios europeus do século XVI até ao presente. Todas dependeram e dependem dos enormes lucros provenientes do monopólio do negócio mais lucrativo do mundo» (2).

Com efeito, toda a ascensão do Ocidente, entre 1500 e 1900, dependeu de uma série de comércios de drogas. No processo, os europeus tornaram-se os mais proeminentes produtores e fornecedores. O ópio foi a primeira droga viciante imposta pela força a uma população. Era vendido para gerar lucro. Em primeiro lugar, esse lucro ia para as instituições que promoviam e protegiam o negócio. «Em destaque encontravam-se as Companhias Britânica e Holandesa das Índias Orientais, o seu sucessor, o governo colonial britânico da Índia, e a comunidade de mercadores holandeses e, mais tarde, os britânicos que assentaram os alicerces económicos da economia imperial. O comércio do ópio não foi uma simples aberração do Império Britânico. Foi a sua principal componente. O Império Britânico, o comércio do ópio e a ascensão do capitalismo ocorreram todos em conjunto» (3). Quando o comércio do ópio terminou, no princípio do século XX, o Império Britânico começou a desfazer-se.
O ópio foi crucial para a expansão do Império Britânico durante o final do século XVIII e início do século XIX, e sem ele possivelmente nem sequer teria havido império. «Os lucros das drogas pagavam as contas e proporcionavam uma fonte de rendimentos regular de elevada qualidade, o que tornou possível a permanência na Índia. Além de ser uma importante fonte de rendimento, também foi o maior produto de exportação nos primeiros setenta anos do século XIX» (4). O negócio da droga criou igualmente uma concentração de capitalistas e uma estrutura capitalista global, sem a qual nada do que se seguiu teria sido possível. Estes desenvolvimentos ocorreram primeiro em Londres e, posteriormente, em Boston e Nova Iorque.

As grandes casas comerciais, os bancos e as seguradoras que tiveram as suas raízes no comércio da Ásia começaram todos pelo ópio. O comércio do ópio gerou rios de dinheiro, assim como um mercado de massas e alimentou as instituições que se acumulavam na banca, nos seguros e nos transportes.

No fundo, o capitalismo sempre esteve interligado com as economias da droga por precisar de dinheiro disponível, sem entrar nos livros de contabilidade, para financiar a exploração e «defesa», tudo sob a bandeira do «comércio livre». A união da banca, da marinha mercante e dos seguros em torno do comércio do ópio foi uma das características mais notáveis da época. Para além de servir para o tráfico de ópio, contribuiu para a criação das bases de uma infra-estrutura comercial que acabou por apoiar uma vasta gama de comércio» (5).

Ao longo do tempo, as drogas tornaram-se uma mercadoria que criou a necessidade de outras mercadorias. Do século XV ao XX inclusive, a terra, mão-de-obra, as relações fiscais e até o próprio estado foram assegurados pelo comércio do ópio. Este foi transformado em mercadoria, quando durante milénios fora quase exclusivamente medicinal, que os britânicos sabiam ser um veneno e criar dependência. Talvez hoje, quando nos referimos a «narco-estados» como a Colômbia e o Afeganistão, nos devessemos recordar de que o primeiro verdadeiro «narco-estado» foi gerido e funcionava a partir de Londres.

Como é que tudo isto se enquadra no quadro mais vasto?»

Digamos que o dinheiro da droga é uma parte inerente da economia americana e mundial. Ao seguir os fluxos de capital a nível global, é chocante descobrir que a quantidade de lucro gerada anualmente pelo tráfico de drogas ronda os 700 mil milhões de dólares. Este valor inclui heroína, ópio, morfina, cocaína, crack e alucinogéneos. Conforme observámos, o dinheiro da droga é agora «parte essencial do sistema bancário e financeiro mundial por proporcionar a liquidez necessária para efectuar os "pagamentos mensais mínimos" exigidos pelas enormes bolhas de acções, derivados e investimentos nos EUA e Grã-Bretanha» (6).

Como podem 700 mil milhões de dólares de lucros ilegais cruzarem fronteiras internacionais, passar pelo sistema bancário internacional e não serem detectados pelas autoridades que nos obrigam a cumprir as leis? A resposta remete-nos para o lado de lá das salas de reuniões de conselhos de administração e das bolsas de metais preciosos, até ao santo dos santos de algumas das pessoas mais ricas do mundo: oito a dez gerações de homens que construíram os seus impérios em torno do comércio do ópio. Pode parecer mais ficção do que realidade. Porém, é mesmo real. Um facto histórico gravado na pedra para a posteridade, registado nos documentos disponíveis na Biblioteca Nacional de Singapura, Arquivos Nacionais da Índia, Universidade de Londres, Biblioteca Britânica, Arquivos Jardine Matheson da Biblioteca da Universidade de Cambridge, Arquivos da Companhia Britânica das Índias Orientais, assim como nos registos governamentais de Hong-Kong e Macau.

Começou no século XVII e envolveu toda uma sucessão de construtores de império. Entre eles, Robert Clive e Warren Hastings no século XVIII, Alexander Matheson, David Sasoon, os Perkins e os Codman, os Russell e os Appleton, os Boyleston e os Cunningham, entre muitos outros, no século XIX. O ópio representava dinheiro, fantásticos rios de dinheiro, dinheiro para além dos sonhos mais loucos seja de quem for. Não foi preciso relembrar os construtores do império que o dinheiro fazia girar o mundo. Eram construtores de império nos corredores do poder, e traficantes de droga nojentos nos anais da História.

O que pode constituir surpresa é como os traficantes de droga operavam desavergonhada e publicamente. «Para os britânicos, o comércio do ópio não era um sórdido negócio de viela, mas antes um honrado instrumento de política estatal, o principal suporte do Tesouro, e objecto de louvor dos principais apoiantes britânicos do "comércio livre", Adam Smith, Thomas Malthus, James e John Stuart Mill. O envenenamento do mundo não levava à prisão mas sim ao enobrecimento e nomeações governamentais para cargos importantes» (7). O mesmo continua a suceder hoje em dia.

Estamos a falar da máquina política mais bem organizada de cima a baixo em todo o mundo, que conta com o apoio logístico de um cartel internacional no valor de 700 mil milhões de dólares por ano, e com a protecção de todas as entidades políticas que a Grã-Bretanha e os EUA têm criado a partir de tão vastos ganhos invisíveis. Esta protecção não se aplica apenas ao cultivo e distribuição, como também à oferta de apoio político, ideológico e de informações. Tal como o terrorismo internacional, onde quer que esteja a recuar, não pode ser mesmo eliminado: indicando que alguns dos maiores nomes em círculos reais e na oligarquia/plutocracia internacional são os manipuladores das marionetas, mesmo que agindo através de correias de transmissão e intermediários a esconderem as identidades de quem puxa os cordelinhos.
Também não devemos esquecer as gigantescas condições de apoio dos mercados oficiais de crédito a nível mundial, do comércio mundial de ouro e diamantes, e a gestão «com a mão na massa» da distribuição a retalho, ou o crime organizado da operação. São tudo derivados das drogas, S.A. Um objectivo do tráfico de drogas é criar capital líquido invisível e torná-lo disponível a quem quiser obter uma vantagem injusta no mercado. Este dinheiro tem de passar por canais nominalmente legítimos, em volumes tão astronómicos que os canais nominalmente legítimos, bancos e outras instituições financeiras, não podem de modo nenhum desconhecer a sua origem. O facto de a maior parte deste fluxo monetário ser sazonal, concluído ao fim dos dois meses que se seguem à colheita das papoilas, em Março, só pode aumentar o nosso assombro. Bancos a alegarem ignorância - «Não sabíamos» - não é simplesmente opção.

Se 700 milhões de dólares por ano em dinheiro ilegal de droga são movimentados e branqueados através da economia americana e mundial, esse dinheiro, uma vez mais, beneficia os mercados financeiros e, em especial, Wall Street. É esta a razão para se manter o comércio ilegal de drogas. (in Os Senhores da Sombra, Publicações Europa-América, 2010, pp. 141-145).


Notas:

(1) Carl Trocki, Opium, Empire and the Global Political Economy, Routledge, 1999.

(2) Ibid.
(3) Ibid.

(4) Ibid.

(5) Ibid.

(6) Michael Ruppert, Crossing the Rubicon, New Society Publishers, 2004.

(7) Equipa de investigação do Partido Trabalhista para os EUA, Dope, Inc., Britain's Opium War against the US, New Benjamin Franklin House, 1978.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O Consórcio Mundial (ii)

Escrito por Henri Massis


«Em 22 de Junho de 1941 as tropas alemãs atravessam a fronteira com a União Soviética, e atacam com poderosos meios militares. É a guerra germano-russa. De há semanas que, no segredo das chancelarias, se acentuavam os indícios do conflito iminente. Salazar não sente qualquer surpresa. Diz a Pedro Theotónio: esse conflito «tive-o sempre por fatal». Não acreditava que duas revoluções, como a comunista e a nacional-socialista, pudessem desenvolver-se a paredes-meias; e a Alemanha, se queria resolver o problema da alegada falta de espaço, apenas poderia fazê-lo a Oriente. Mas para além do agravamento da guerra e dos seus perigos, há que ver o futuro. Ora «eu não vejo a guerra através da guerra; vejo a guerra através da paz. Quer dizer: o que me preocupa mais não é saber quem vence ou como vai vencer, mas que paz se fará, com que princípios se constituirá a futura paz. Neste campo, pode perguntar-se se o fim da guerra é a destruição da unidade alemã ou se esta unidade, acabada de realizar por Hitler, não é uma vantagem europeia». Neste contexto, julga «precipitado» o discurso com que Churchill sauda a entrada da Rússia na luta. Sem dúvida: aproveitar a força russa para combater a Alemanha é perfeitamente compreensível. Mas importaria não esquecer que a União Soviética colaborou na partilha da Polónia, e fora para defesa deste país que a Grã-Bretanha entrara em guerra; e que Moscovo invadira a Finlândia, e se apossara dos Estados Bálticos, e da Bessarábia; e tudo isto era contrário aos fins da guerra afirmados por Londres. Parecia deste modo que Churchill não deveria ter oferecido a sua «solidariedade», conclui Salazar. Posta a questão em tais termos, Salazar receia que a opinião ocidental se sinta dividida, e que em alguns países, como a Espanha, cause uma impressão desfavorável à causa britânica e do Ocidente em geral. Em qualquer caso, da guerra germano-russa, e a menos que a sua duração seja breve e termine pela derrota de Moscovo, resulta a inevitabilidade de o Japão, pela acção do Pacto Tripartido e em virtude da sua política imperial, entrar também no conflito, e o facto arrastará fatalmente os Estados Unidos. Na América do Sul, serão imediatas as repercussões, e com dificuldade se vê que a África se possa eximir a estas. Salazar encara a situação com o pessimismo mais cru: considera como um imperativo, todavia, poupar Portugal à catástrofe e tentar, contra a evidência mais luminosa, que da provação mundial saía o país intacto».

Franco Nogueira («Salazar», III).


«De repente, em 1941, tudo muda para Churchill. O destino oscila. Com a entrada da URSS na guerra, a 22 de Junho, e dos Estados Unidos, a 7 de Dezembro, a Inglaterra não só deixa de estar isolada frente a Hitler, mas está de novo situada no próprio coração de uma coligação planetária. Nesta guerra, transformada em guerra mundial, é a Grã-Bretanha que passa a constituir o centro nevrálgico da «Grande Aliança» - como Winston a baptizou, em memória da coligação organizada contra Luís XIV, na época do seu antepassado Marlborough. Durante quatro anos, Churchill vai desempenhar em simultâneo o papel de empresário, actor e artista deste empreendimento colossal destinado a derrubar as forças do Eixo. E é a esta tarefa que ele consagra a maior parte da sua energia e da sua acção, esforçando-se por impulsionar e por dominar uma nova geopolítica caracterizada pela «divisão ternária do mundo», para retomar uma expressão de Shakespeare.

No Outono de 1939, apesar da entrada do Exército Vermelho na Polónia, e da partilha do país entre Alemães e Soviéticos, Churchill tinha-se distinguido por uma moderação surpreendente frente à política do Kremlin. Em vez de se unir à vaga de condenações indignadas que arrastava os seus compatriotas, o Primeiro Lorde do Almirantado tinha adoptado uma linguagem matizada e prudente, deixando a porta aberta a eventuais inflexões, ou até mesmo a futuras mudanças de direcção. Foi assim que, no seu primeiro discurso radiodifundido pela BBC, a 1 de Outubro, ao mesmo tempo que sublinhava que a política de Estaline era ditada, antes de mais, pelos interesses nacionais da URSS, Winston tinha dado a entender que o enigma russo - «quebra-cabeças envolvido em mistério no interior de um enigma», tinha ele precisado, numa fórmula que se tornaria célebre [War Speeches, t. I, p. 162] - não podia dissimular o facto de que era impossível à União Soviética tolerar que a Alemanha de Hitler tentasse dominar os Balcãs e o Sudeste Europeu. Daí a ideia de que os interesses antagónicos entre os dois gigantes totalitários provocariam, mais tarde ou mais cedo, um conflito entre ambos. Em Outubro, de 1940, frente aos seus conselheiros militares assombrados, Winston atrevera-se mesmo a afirmar, como uma presciência magnífica, que deviam estar preparados para que a Alemanha viesse a atacar a URSS em 1941.

Mas é sobretudo, na Primavera de 1941 que, à luz das informações provenientes dos Ultra, Churchill deixa de ter dúvidas sobre a iminência de uma poderosa ofensiva alemã ao leste europeu. No início de Abril, ordena ao Embaixador britânico em Moscovo, Sir Stafford Cripps, que transmita com urgência uma mensagem de advertência ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Molotov. Cripps, porém, hesita; depois, após uma chamada à ordem do Primeiro-ministro, envia uma nota ao Ministro-adjunto, Vychinski. Cada vez mais convencido da proximidade do confronto, Churchill informa Roosevelt, tanto mais que, a 12 de Junho, os serviços britânicos decifraram uma mensagem enviada de Berlin para Tóquio, pelo Embaixador do Japão, anunciando a iminência da campanha contra a União Soviética. Na véspera do ataque, enquanto passeava nos Chequers, o Primeiro-ministro declara ao seu secretário Colville que, se Hitler se atrevesse a invadir o inferno, ele próprio faria um pacto com o diabo [John Colville, The Fringes of Power, p. 480]».

François Bédarida («Winston Churchill»).


«(...) a partir de 1933 são tomadas decisões fatais para a Alemanha e para a Europa. Os objectivos são os indicados no Mein Kampf: a criação de uma Eurásia de confins orientais indefinidos; um entendimento com a Inglaterra para o condomínio mundial, em competição com os Estados Unidos e talvez com uma Ásia oriental de hegemonia japonesa; a Alemanha é a base deste arranjo do globo, que deve anunciar a criação de uma nova civilização «ariana» e de um homem novo que recupere antigas e perdidas virtudes; os Hebreus que opõem a esta perspectiva o seu sonho de domínio mundial são marginalizados (posição até 1941) e punidos depois de terem mobilizado a aliança antiariana (posição de 1941 em diante).

Na imagem: símbolo da Sociedade Thule

Rosenberg e Frank, do grupo Thule, terão papéis decisivos nesta marcha para Leste, o primeiro como responsável em 1941 dos territórios russos ocupados e o segundo já desde 1939 como governador da Polónia. Hess e os dois Haushofer colaborarão nesta estratégia com um entrelaçamento de geopolítica e de astrologia. Himmler quer transformar as SS numa ordem na qual a iniciação se entrelaça com a crueldade. Também aqueles que no vértice nazi têm uma diferente formação cultural, são influenciados pela de origem ocultista. Göring, pragmático, tem alguma condescendência pelas teorias dos émulos de Horbiger. Gobbels, expressão do nazismo «social» de Röhm e dos irmãos Strasser, interessa-se por Nostradamus e pelos astrólogos. Até o gélido von Ribbentrop se entrega a fantasias a propósito do duque de Windsor.

Este grupo é porém caracterizado pelo realismo político. Está de acordo em destruir os concorrentes externos e também internos (20 de Junho de 1934) na base de cálculos precisos (por exemplo a ideia de Röhm de fazer da SA a base de um exército «popular» em antítese à Reichwehr faria perder à NSDAP o seu apoio, ainda decisivo na época). Imposta uma política económica que, graças a Hjalmar Schacht (que será depois marginalizado), assume por meados dos anos trinta algumas características keynesianas, com a dívida pública usada para derrotar a ocupação não só em função do rearmamento, mas também com investimentos civis (as auto-estradas, os bairros citadinos) e o melhoramento do nível de vida (até ao Volkswagen).

O realismo político entrelaça-se, porém, com o prosseguimento dos fins últimos, que não foram abandonados com a transformação das seitas ocultistas no grande partido. E desenha-se assim o primeiro desencontro entre os nazis e os grupos conservadores que os levaram ao poder para fins mais limitados (a grande indústria, os grandes agrários do Leste, o exército) e depois uma dissenção no próprio círculo restrito de vértice sobre os fins e sobre as formas da política mundial. O problema é aquele que Hitler expôs no Mein Kampf e que agitará a Alemanha nazi até aos seus últimos dias: como obter o consenso da Inglaterra na criação da Eurásia (que Mackinder identificou com o declínio do império britânico), garantindo-lhe um grande futuro numa base de igualdade com o Terceiro Reich?».

Giogio Galli («Hitler e o Nazismo Mágico: As Componentes Esotéricas do III Reich»).


«Na Europa os americanos bateram-se contra os alemães na qualidade de aliados dos soviéticos mas na Ásia combateram praticamente sós. Receberam alguma ajuda da Grã-Bretanha mas o maior peso, no Extremo Oriente, foi suportado unicamente por eles. A URSS, aqui, não só não se conduziu como aliada como permaneceu de relações amigáveis com o Japão, mantendo a sua embaixada em Tóquio e uma importante rede de espionagem - um autêntico exército de espiões. O Japão conservou igualmente a sua embaixada em Moscovo. De 7 de Dezembro de 1941, data do ataque a Pearl Harbor, a 9 de Agosto de 1945 a Rússia soviética manteve-se alheada do conflito e só deu conta dele nesta data, quando a derrota se consumou e a rendição japonesa já não era senão uma questão de dias. Então, a URSS declarou guerra, entrou na Manchúria, invadiu o norte da China, a Coreia do Norte e outros pontos de apoio nevrálgico administrados pelos japoneses.

Assim, sem ter disparado um tiro, e depois de apenas cinco dias de «combates» fictícios, a União Soviética, com o completo acordo do governo americano, recolheu todos os frutos da capitulação do Império do Sol Nascente. Comunizou a China e apoderou-se - para além da Manchúria - da Mongólia Exterior e de Sin-Kiang (três províncias que representam um terço da China).

(...) Que se medite bem neste pormenor: depois de somente cinco dias de pseudo-combate... Ora o próprio Estaline admitiu que, sem contar com os bens de equipamento, 2/3 do material de guerra utilizado pelo seu país - no conflito europeu - provinha dos Estados Unidos. Tudo isto prova que nenhum homem sensato imaginará, um só minuto, que os americanos se obstinaram, durante quatro anos, a lutar, com êxito, contra os japoneses para libertar o Pacífico do seu domínio, para remeterem os louros aos soviéticos; que os Estados Unidos terão atacado por toda a parte as consideráveis forças japonesas disseminadas nas ilhas do Pacífico, desafiando a sua frota poderosa e o seu exército distribuído em mais de uma centena de ilhas afastadas umas das outras, à custa de 200 000 mortos, sem contar com a perda da maior parte da sua aviação e da sua marinha, absorvendo milhões de dólares, para acabar por abandonar os frutos da sua vitória à tirania implacável do país dos sovietes. Entretanto, Estaline que, como dissemos, dependeu da ajuda americana, pôs de pé os seus planos, triunfou completamente e abandonou a cena, mantendo na algibeira, tranquilamente, uma fatia da Ásia. Como pôde acontecer esta coisa tão inacreditável?»

Deirdre Manifold («Fátima e a Grande Conspiração»).


«Se entre americanos e russos existe vocação comum, é ela, por certo, a de exploradores, caçadores e colonos que uns e outros obstinadamente manifestaram desde o princípio da sua história. Existem muitas outras semelhanças entre os Estados Unidos e a Rússia, semelhanças que os escritores alemães muitas vezes sublinharam. Para Spengler há em primeiro lugar «a mesma extensão que exclui a possibilidade de ataques eficazes dos inimigos; há depois o socialismo de Estado, ou antes o capitalismo de Estado, quase semelhante à fórmula existente na Rússia, representado pelo conjunto dos trusts que dirigem e regulam toda a produção e o seu escoamento, (...) correspondente às organizações económicas russas. O lema dos sovietes: A Ásia para os asiáticos, corresponde exactamente nos seus pontos essenciais à concepção da doutrina de Monroë: Toda a América para o potencial económico dos Estados Unidos».

Quanto a Keyserling, depois de notar que a «atmosfera psíquica da América se parece com a da Rússia e com a da Ásia sententrional», observa: «A psicologia de um Gengis Can, que devastou o mundo num furacão, de um Pedro o Grande ou de um Lenine, que ditaram a sua vontade pessoal a milhões de homens, ou a de um presidente de trust americano, que considera «sem Deus» toda e qualquer nação que não lhe compra o seu petróleo, são, neste particular, absolutamente idênticas»».

Henri Massis («A Nova Rússia»).


A URSS e os Estados Unidos

Na imagem: Conferência de Ialta

A aliança da Grã-Bretanha e dos Estados-Unidos com a URSS suscita numerosas polémicas na imprensa inglesa e americana. Escritores que viveram na Rússia Soviética, como R. Lyons e Max Eastman não deixaram de exprimir os receios que certa propaganda yankee a favor do bolchevismo lhes inspirava. A título documentário, reproduzimos aqui o artigo que o colaborador de J. Littlepage, o célebre jornalista americano Dewaree Bess, co-director do Saturday Evening Post, publicou no Daily Mail sobre este assunto:

«Muitos americanos têm como certo que a Rússia os ajudará a combater o Japão, depois de vencida a Alemanha. Outros americanos supõem que a Rússia aceitará de bom grado os planos americanos sobre o mundo do pós-guerra. Ideias perigosas, pois nas realidades conhecidas pouco há que as justifique. Quais são os factos?

O primeiro é que actualmente o governo soviético é o mais independente do mundo.

Os russos não tomaram fosse com quem fosse nenhum compromisso particular de natureza a entravar a sua liberdade de acção, quer quanto à guerra quer quanto à Europa do pós-guerra.

A sua adesão às disposições vagas e gerais da «Carta do Atlântico» foi apenas atitude de cortesia, não comprometimento.

Mesmo na altura em que a sua situação militar era mais sombria, os dirigentes russos recusaram ligar-se fosse de que maneira fosse, em contrapartida do auxílio que aceitaram dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.

Pelo contrário os russos pediram concessões à Grã-Bretanha pouco depois da invasão do seu país pela Alemanha. Pediram que lhes reconhecessem as suas pretensões sobre os três Estados Bálticos e sobre parte da Finlândia e parte da Roménia, e sempre insistiram pela regulamentação futura da questão das fronteiras polacas. Noutros termos: procuraram obter da Grã-Bretanha mais ou menos as mesmas concessões que exigiram a Hitler em 1939.

Visto que manifestaram tão claramente os seus desejos, primeiro nas negociações com Hitler e depois nas que têm tido com a Grã-Bretanha, ninguém terá o direito de se surpreender se os russos ocuparem de novo todos os territórios que ocuparam em 1928 e 1940 e os incorporarem na União Soviética.

Do ponto de vista russo, essas reivindicações territoriais são moderadas. Restabelecem simplesmente as fronteiras do Império dos Czares na Europa eliminando os Estados «tampões» criados pelo Tratado de Versalhes entre a Rússia e a Europa...

Os estados da Europa Ocidental estão hoje unidos mais estreitamente do que nunca e esperam da Rússia a sua libertação. Durante uma viagem nos Balcãs, na primavera de 1941, pude ver em que larga escala a Rússia despertava a simpatia dos eslavos vencidos na Checoslováquia, na Jugoslávia, e até na Polónia anti-russa e entre os búlgaros aliados da Alemanha.

É portanto inevitável que, se vencer a guerra, a Rússia exerça em todos esses países mais influência do que aquela que os anglo-americanos possam esperar exercer.

Está aí uma perspectiva da Europa do pós-guerra que os construtores de planos de paz anglo-americanos ignoram. A ideia de que a combinação anglo-amnericana, com a colaboração consultiva de todos os governos exilados em Londres, pode decidir de antemão o que acontecerá na Europa, não é de forma alguma justificada pelos factos.

Os russos não tiveram qualquer intervenção na paz que se seguiu à guerra de 1914-18. Consideremos a enorme diferença da situação presente.

A França e a Itália deixaram de ser grandes potências. E desta vez a vitória na Europa não significará o fim da luta para os americanos e para os ingleses, visto que nessa altura terão de empenhar-se seriamente na guerra contra o Japão.

É quase certo, por outro lado, a menos que o Japão tome a iniciativa de invadir as províncias russas do pacífico, que a Rússia estará em paz nessa altura, ao passo que os Estados-Unidos e a Grã-Bretanha estarão ainda em guerra.

A posição da Rússia é quase perfeita na guerra do Pacífico. Se puder continuar a manter em respeito os japoneses, não terá a menor necessidade de entrar nessa guerra. Se os japoneses a atacarem, pode contar com o auxílio que lhe podemos prestar, sabendo que temos para a auxiliar contra o Japão as mesmas egoístas razões que nos levam a auxiliá-la contra a Alemanha.

Se os russos decidem que lhes convém arredondar as suas fronteiras estratégicas no Extremo Oriente, tal como decidiram em relação às suas fronteiras europeias, podem entrar na guerra na Ásia quando melhor lhes parecer e ocupar os territórios que ambicionarem como quinhão nos despojos.

E que significará isso quanto à Ásia do pós-guerra? Pode prever-se que os russos têm plena liberdade para consolidar os seus postos ameaçados na Mongólia e no Turquestão chinês e, querendo, para alargar as suas posições à Manchúria e à Coreia.

Isso significa que a influência russa na China, exercida por meio dos comunistas chineses, tem mais probabilidades de aumentar que de diminuir. E isso parece demonstrar que, enquanto a China não puder ser organizada num moderno Estado industrial, a Rússia Soviética tornar-se-á a maior potência da Ásia do pós-guerra.

É portanto evidente que a Rússia ocupa poderosa e independente posição em relação às guerras que grassam actualmente na Europa e na Ásia, e também em relação ao mundo do pós-guerra.

Nós, americanos, só podemos traçar o nosso caminho dando-nos conta por completo do poder penosamente adquirido pela Rússia.

Os russos estão prontos a negociar connosco em tempo de paz, tal como connosco colaboraram em tempo de guerra, mas deram claramente a entender que todos os arranjos e combinações devem obedecer às condições da Rússia. E essas condições são sempre definidas com nitidez.

Em primeiro lugar, a Rússia recusa comprometer-se de antemão a quebrar o seu pacto de não-agressão com o Império Nipónico.

Em segundo lugar, a Rússia exige que lhe deixem as mãos livres para os arranjos do pós-guerra em todos os territórios limítrofes das fronteiras russas.

Em terceiro lugar, a Rússia espera que a sua associação com os americanos e os britânicos para os projectos de segurança mundial tenha lugar em pé de igualdade; a Rússia está, aliás, em situação de o exigir. Isto significa que não dará o seu apoio a qualquer forma de imperium anglo-americano, ainda que disfarçado. Contra a perspectiva de um imperium desse género, os russos constroem metodicamente o seu imperium, fortalecendo-se assim para o jogo de equilíbrio de potências, se tal jogo continuar a ser jogado no mundo depois da guerra.

Quando se examinam todos os testemunhos, vê-se que o futuro do mundo não será determinado principalmente pela opinião pública americana, como muita gente entre nós loucamente espera.

Não é apenas vão, mas positivamente pernicioso, imaginar as Nações Unidas como grande e feliz família que faz as mesmas guerras pelos mesmos objectivos.

Os russos anunciaram claramente que combatem não só pela Rússia mas também pelo regime soviético, que não é simplesmente - como certos americanos tentam fazer-nos crer - outra versão do regime americano de democracia e de livre iniciativa.

O regime soviético é um regime de partido único que não aceita qualquer oposição, encarregando-se a polícia de suprimir toda e qualquer oposição política. O regime soviético é o Estado proprietário, explorando todas as coisas: todos os cidadãos soviéticos trabalham para o Estado.

O regime demonstrou o seu valor nos tempos de guerra e nada, absolutamente nada, permite supor que os dirigentes soviéticos tenham a intenção de modificar, cedo ou tarde, os seus princípios fundamentais ou de se associarem a quaisquer projectos para estabelecer a livre iniciativa em escala mundial.

Além disso, e ainda que tal não nos agrade, somos obrigados a reconhecer que a Rússia vitoriosa possuirá situação geográfica, potencialidade militar e influência política para fazer em grande parte do mundo mais ou menos o que muito bem entender (1). E, naturalmente, aos russos sorri muito mais a ideia de expandir o seu sistema do que o nosso.

O melhor que nós, americanos, podemos portanto esperar, se quisermos ser razoáveis, é que possamos chegar a um compromisso com os russos - bem como com os nossos outros aliados» (in ob. cit., pp. 257-264).



(1) De dia para dia, a opinião americana adquire cada vez mais consciência das ameaças que para os Estados Unidos comportaria o poder crescente e firmado dos Sovietes. A inquietação que provocam nasceu deste raciocínio: «Não será contraditório ter querido quebrar uma hegemonia europeia, a hegemonia alemã, e ter ajudado a criar uma hegemonia mundial, o império russo?» Depois os americanos deram a esta interrogação resposta ainda mais directa:

«No dia em que os Sovietes estiverem livres da guerra europeia serão os árbitros da guerra do Pacífico. Se tomassem partido pelo Japão não teríamos mais remédio, por muito grande que fosse o nosso poderio, senão metermo-nos em casa. Se tomassem partido contra o Japão - mas nenhum indício permite pensá-lo, antes pelo contrário - seria para nos abrirem as portas da Ásia?»

Com efeito, o Japão para se garantir do lado da Sibéria oriental e poder concentrar o seu esforço nas frentes do Pacífico e da Birmânia, não cedeu há pouco à Rússia Soviética os petróleos da parte norte da Sacalina? A propósito deste novo acordo que estreitou mais ainda os laços entre a URSS e o Japão, o que não pôde deixar de agradar à Alemanha, o New York Daily Mirror escreveu no seu editorial:

«Caminhamos a passos largos para uma Ásia dominada pelo Japão e inimiga da América e da Europa. A excessiva concentração das atenções americanas no teatro europeu e a nossa negligência na guerra contra o Japão traduzir-se-ão provalmente em grandes revezes. Pode acontecer que a Inglaterra perca a Índia, a sua possessão mais rica. Outro acontecimento sério é constituído pela aparente intenção da Rússia de se pegar de razões com a China». Começaram os americanos a compreender a realidade do perigo russo-asiático?

domingo, 9 de dezembro de 2012

O Consórcio Mundial (i)

Escrito por Henri Massis


«"Tudo me leva a crer que os planos da Administração para a Rússia irão receber o maior apoio do Congresso, bem como a plena aprovação da opinião pública nos Estados Unidos". Numa palavra, William Franklin Sands, na qualidade de secretário executivo de uma empresa cujos directores detinham o maior prestígio em Wall Street, apoiou enfaticamente os bolcheviques e a sua Revolução já depois de esta ter começado. E enquanto director do Banco da Reserva Federal de Nova Iorque, Sands contribuiu justamente com 1 milhão de dólares para os bolcheviques…

(…) O ouro foi praticamente o único meio pelo qual a União Soviética podia pagar as suas aquisições no exterior, e cujo embarque os banqueiros internacionais puderam facilitar. A exportação do ouro russo, na forma inicial de moedas de oiro imperiais, começara desde logo em 1920 para a Noruega e a Suécia. Tais moedas foram, por sua vez, transportadas para a Holanda e a Alemanha com vista a novos destinos, incluindo os Estados Unidos».

Antony Sutton («Wall Street e a Revolução Bolchevique»).


«Com a passagem do tempo, o roubo das grandes empresas, o escândalo da crueldade e das mentiras absurdas que nos contam graças à dieta noticiosa que nos alimenta todos os dias, só podem aumentar à medida que os recursos financeiros diminuem. No mundo pós-Guerra Fria, o papel da Rússia tem sido fundamental. Quem obtiver os recursos deste país fica com a chave da supremacia global. Assim, destabilizar o estado russo tornou-se o objectivo dos Senhores das Sombras, após o colapso da União Soviética em Dezembro de 1991.

Os EUA empreenderam um enorme esforço para ajudarem a antiga União Soviética a fazer a transição para o capitalismo. Acabou por se revelar que o esforço tinha como intenção retirar grandes quantidades de riqueza do país. Segundo um memorando interno do FBI, escrito pelo agente especial do Tesouro, Philip Wainwright, mas assinado apenas como «Mr. X», o objectivo na Rússia era bastante simples: «Havia a possibilidade de uma jihad económica ocidental e privada estar organizada no sentido de acabar com os poderes dos dirigentes comunistas destruindo o instável rublo».

Por outras palavras, a União Soviética - que possui a maior riqueza mineral do mundo, enormes reservas de ouro e pedras preciosas, a maior reserva de petróleo do planeta, quantidades incontáveis de níquel, platina e paládio, e mais madeira do que a Amazónia, já para não falar de uma imensa acumulação de armas da era soviética - ia ser destituída dos seus bens. A estratégia consistia em mergulhar o país na anarquia, ao ponto de a Rússia não conseguir opor-se às operações militares dos EUA, destinadas a garantir o domínio das reservas de petróleo e gás natural na Ásia Central. O plano desenvolvido, tal como fez ressoar o antigo Conselheiro de Segurança Nacional durante a presidência de Jimmy Carter, fazia parte do golpe criminoso mais espectacular alguma vez engendrado contado por Zbigniew Brzezinski, no seu livro de 1997, The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives.

No período que levou ao seu colapso, saíram grandes quantidades de riqueza da URSS através de camiões carregados de rublos. Muitas dessas riquezas foram utilizadas em complexas operações de trocas, em que milhares de milhões de narco-dólares eram branqueados a favor da máfia da Calábria, Ndrangheta. Um grande número de bancos ocidentais importantes, como o US Treasury, Harvard Endowment, Bank of New York, Goldman Sachs, os gigantes bancários de Massachusetts, Fleet Financial e Bank of Boston, pilharam até 500 mil milhões de dólares. Outro participante foi a CIA, cujo objectivo principal consistia em destruir a moeda soviética. Ndrangheta, uma das organizações criminosas mais temidas do mundo, tem fortes ligações financeiras com os negócios de tráfico de drogas de cartéis criminosos colombianos e mexicanos. Desde o desmembramento da União Soviética, a máfia russa juntou-se às operações calabresas, proporcionando uma raiz oriental ao já lucrativo negócio da cocaína e da heroína.

(...) A máfia russa, conhecida como Vorovskoi Mir, ou «Mundo dos Ladrões», uma federação informal de mafiosos soviéticos, percebeu de imediato que a «retirada» do comunismo anunciava um glorioso mundo novo de ordem criminosa que a favorecia.

Um ano após a saída de Mikhail Gorbatchov, tinham surgido mais de 2 600 «clãs do crime» (mais de três milhões de criminosos no total) que se tinham espalhado rapidamente por todo o antigo império soviético, de acordo com um relatório de investigação escrito por um grupo de membros do prestigiado Instituto Hoover. Quarenta deles igualavam ou ultrapassavam a dimensão das máfias tanto siciliana como americana. Em conjunto, constituem o empreendimento criminoso mais poderoso do planeta.

Com efeito, a directiva secreta do PCUS enfatizava a necessidade de forjar uma ligação com a mafiya através dos vastos recursos do antigo KGB. Isso aconteceu no início da década de 1990. Os primórdios do reinado de Ieltsin.

Em 1997, a União Soviética estava morta há seis anos. Emergira um novo mundo em que só os EUA tinham a categoria de superpotência. Porém, a Rússia ainda permanecia uma ameaça - um potencial bloqueio à completa imposição da vontade económica e militar dos EUA. Em The Grand Chessboard de Zbigniew Bzerzinski, publicado em 1997, a «Rússia» e as «vitais reservas de energia» são referidas mais amiúde do que qualquer outro país ou assunto.

Uma vez mais, os imperativos da energia e o domínio geopolítico iriam desempenhar um papel primordial na vida de centenas de milhares de pessoas.

Foi no «quintal» da Rússia, as repúblicas da Ásia Central da antiga União Soviética, que Brzezinski reparou que seria necessário agir para monopolizar as reservas de energia do mundo. A História da humanidade tem revelado, desde sempre, que o domínio do centro da Eurásia é a chave para dominar o globo. O Azerbeijão, que contém as riquezas da Bacia do Mar Cáspio e da Ásia Central, é determinante. A independência dos estados da Ásia Central pode ser praticamentee insignificante desde que o Azerbaijão fique sob controlo total de Moscovo.

Embora os motivos se tenham alterado permanece basicamente ao longo de 20 séculos, a importância estratégica da região permanece basicamente igual. Bzerzinski explicou o tema dominante a condicionar a política americana: «Uma potência que domine a Eurásia controlaria duas das três regiões mais avançadas e economicamente mais produtivas do mundo. Se olharmos para o mapa também verificaremos que o controlo da Eurásia, acarretaria automaticamente a subordinação de África, tornando o Hemisfério Ocidental e a Oceania geopoliticamente periféricas do continente central do mundo. Cerca de 75 por cento da população mundial vive na Eurásia, o local onde se encontra a maior parte da riqueza física do mundo, tanto nos seus empreendimentos como no subsolo. A Eurásia é responsável por 60 por cento do PIB mundial e por cerca de três quartos dos recursos energéticos do mundo»».

Daniel Estulin («Os Senhores da Sombra»).


A URSS e os capitais estrangeiros

(...) a formidável industrialização da URSS, executada em sistema fechado, aumentou singularmente a sua potencialidade financeira. Vivendo a autarquia talvez ainda mais perfeita que a dos Estados Unidos, a Rússia satisfaz as necessidades dos seus habitantes e recorre cada vez menos aos capitais estrangeiros.

Já em 1929 W. Fisher escrevia: «A industrialização da URSS visa limitar o número dos concessionários e arrefecer o interesse dos investidores de capitais. O trust do Azerbaijão, a bacia do Donetz ou a cidade de Moscovo são empresas poderosamente ricas, remuneradoras e solváveis que, se operassem fora do país, poderiam facilmente emprestar a Londres, a Nova-Iorque, a Amesterdão, etc. Mas, em caso de desfalecimento, de falência ou de insolvência, nenhum banco americano, britânico ou holandês, poderia apropriar-se dessas empresas de Bacú, de Sacti ou de Moscovo, que são propriedade do Estado e que os comunistas nunca permitirão que sejam alienados aos capitalistas estrangeiros. A preocupação capital da política bolchevique foi sempre repelir toda e qualquer cooperação com os Estados burgueses que pudesse tomar «a forma de dominação económica». Já em 1922 Tchitcherine empregou o mesmo argumento perante o Komintern para rejeitar o estabelecimento em Moscovo de um poderoso banco europeu: O Consórcio - disse ele a tal respeito - poria a República em perigo.

A partir de 1929, a velocidade extremamente rápida do seu desenvolvimento levou a URSS a prosseguir na sua expansão económica por meio dos seus próprios recursos. Com efeito, o monopólio do comércio externo é fundamental para o sistema económico e social da Rússia comunista. Esse monopólio torna o governo no único exportador e importador de todo o país».

A este respeito o jornalista inglês Negley Farson escreveu no Daily Mail em 1 de Outubro de 1943:

«Houve um período - de 1921 a 1936, pouco mais ou menos - em que os russos precisaram de créditos. E obtiveram-nos apesar da política. Hoje, porém, já não precisam disso, e, se bem examinarmos todos os factores em jogo, estão provavelmente em situação de, se assim desejarem, nunca mais comprarem mercadorias a crédito. O motivo principal deste estado de coisas é, bem entendido, a sua absoluta independência em matéria de exportações e de importações. Deve também entrar-se em conta com o facto da Rússia ser a maior fonte de aprisionamento de ouro do mundo. Quando os russos precisarem de qualquer coisa, pagá-la-ão - e nós ficaremos muito contentes por lha vendermos. Isso suprime a principal arma da diplomacia britânica de antes-da-guerra: «Os checos lutam com dificuldades? Emprestemos-lhes 15 milhões de libras esterlinas. Os gregos lutam com dificuldades? Pois bem, emprestemos-lhes 5 milhões de libras». O sabre de madeira expedido com cada uniforme de embaixador - era esse o mal fundamental da diplomacia britânica. Mas o sabre de madeira partiu-se. Não é possível empregar o crédito contra a Rússia vermelha». E o autor concluía: «A Rússia é a a única das quatro grandes nações aliadas que talvez possa tornar-se isolacionista com toda a segurança».


A URSS, potência do ouro

A URSS possui as maiores reservas de ouro do mundo, tanto em areias auríferas como em minas. A parte mais rica em ouro é o leste do país: a Sibéria, os Urais, o Altai, o Extremo Oriente. Na taiga polar há inúmeros jazigos. Cada ano trás novos descobrimentos e a produção de ouro da URSS desenvolve-se rapidamente.

Foi no Verão de 1927 que, pouco disposto a aceitar os ensinamentos de Marx e de Lenine a respeito do metal precioso, Estaline decidiu criar a indústria soviética do ouro. «O descobrimento do ouro - dizia - abriu o oeste dos Estados Unidos à agricultura e à indústria... Vede o que se passou na Califórnia. O mesmo processo deve aplicar-se aos nossos mercados. Começaremos por apetrechar as minas de ouro, e depois, gradualmente, passaremos a explorar e a tratar outros minérios, carvão, ferro, cobre, etc. E simultaneamente desenvolveremos a agricultura».

Assim, segundo o testemunho do americano J. Littlepage, o trust do ouro - criado, entre outras razões, para fomentar o estabelecimento de colonos na Sibéria - saiu da imaginação de Estaline. O chefe da URSS queria ouro porque sabia quanto poderia ser útil ao governo e dar solidez à economia da Rússia; mas é facto que considerou este problema também como «construtor de império». E o prodigioso desenvolvimento da Sibéria durante os últimos quinze anos deve-se à corrida soviética para o ouro - «a mais ordenada da história».

Os sovietes ocupam hoje o segundo lugar entre os produtores mundiais de ouro. «Vi-os - disse Littlepage - elevarem-se a essa posição em poucos anos, ultrapassando os Estados Unidos e o Canadá e colocando-se logo abaixo da África do Sul. E não vejo qualquer motivo que possa impedi-los de ocuparem indefinidamente esse lugar. Sei, pelas minhas próprias observações, que os sovietes poderiam aumentar muito substancialmente a produção de ouro, num futuro próximo, se quisessem».

E o antigo engenheiro-chefe do trust do ouro russo na Sibéria acrescentou:

«Os sovietes, que são em potência os maiores vendedores de ouro do mundo, têm tanto interesse em manter o seu preço como a Inglaterra e os Estados Unidos - os dois principais compradores desse metal -, porque a produção de ouro tornou-se extremamente importante na economia soviética, permitindo a Moscovo comprar no Ocidente objectos que doutra forma teria de pagar com produtos de maior utilidade social, a menos que preferisse passar sem eles.

Os sovietes investiram somas colossais e fizeram esforços gigantescos na sua indústria do ouro de 1928, e foi essa uma das razões porque milhões de homens, de mulheres e de crianças soviéticas tiveram de passar fome, de andar mal vestidos e de sofrer toda a espécie de privações, porque as máquinas, o apetrechamento industrial e os serviços de técnicos estrangeiros foram pagos, durante certo tempo, com produtos agrícolas e lacticínios de que as populações russas tinham de privar-se.

Estaline e os seus colaboradores calcularam, aparentemente, que todos esses sacrifícios valiam a pena, não só pelas compras que o ouro permitiria efectuar no estrangeiro, mas também pela sua utilidade potencial, em caso de guerra.

Durante anos, os chefes da Rússia basearam os seus cálculos na convicção de que seriam arrastados em breve para uma guerra. É por isso muito verosímil que tenham feito grandes reservas de ouro para fortalecer a sua posição militar». («La Recherche des Mines d'Or de Sibérie», Paris, 1939, pp. 241-244).

Grandes produtores de ouro, os sovietes promoverão necessariamente uma política monetária fundada sobre o estalão-ouro. Assim, esse Estado socialista e proletário dispõe-se a desempenhar o papel da grande potência capitalista que é de facto.

Uma delegação de cinquenta e dois peritos financeiros soviéticos, presidida pelo vice-presidente do Banco do Estado, foi em 1943 a Washington para dar apoio efectivo aos planos de moeda-ouro dos Estados Unidos.

O professor Varga, conselheiro financeiro da Comissão Central para a planificação económica da União Soviética, esclareceu que Moscovo não queria nem participar numa regulamentação monetária internacional nem introduzir a moeda-ouro nos territórios da União. Os sovietes mantêm-se fiéis ao princípio do monopólio do comércio externo e rejeitam todo e qualquer projecto que limite a sua independência comercial e monetária. Mas o Kremlin veria com bons olhos «os outros Estados voltarem tanto quanto possível à moeda-ouro» - o que quer dizer que a União Soviética «anti-capitalista», está interessada em que o ouro mantenha o seu poder internacional de pagamento.

O «regresso ao ouro» apresenta ainda outro interesse para Moscovo: tendo o ministro dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos, Cordell Hull, prometido o apoio da América para a reconstrução da Rússia, Estaline assegurou que os sovietes «reembolsariam escrupulosamente» os créditos que a esse título lhes fossem abertos. Portanto, se os Estados Unidos vierem a exportar para a Rússia Soviética, esta, nos termos do standard-ouro, não pagará em mercadorias mas sim com o metal acumulado. E paralelamente, custeará as importações necessárias com a sua forte produção periódica de ouro «sem ter de se prender politicamente nem de fazer concessões especiais aos Estados capitalistas»» (in «A Nova Rússia», Livraria Tavares Martins, Porto, 1945, pp. 250-256).

Continua

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Salazar e a Guerra Civil de Espanha (iii)

Escrito por Miguel Bruno Duarte


«A crise está no homem - clamava, aliás com pleno acerto, no título de um livro de sondagens à psicologia dos modernos, um dos bons ensaístas franceses da nossa época: Tierry Maulnier. Significa isto ser no íntimo de cada homem que se trava hoje a maior luta - da qual as lutas exteriores são, no fundo, meros reflexos e consequências. A crise está no homem - na sua alma cheia de temores, de pesadelos e de monstros; na sua inteligência desligada do real, perdida em labirintos sem saída, ao mesmo tempo ansiosa e impotente, ora entregue às ambições desmedidas do idealismo absoluto, ora despenhada nos cínicos desesperos do materialismo totalitário: na sua vontade, que cede com frequência aos apelos de uma atmosfera de agitações, tentações e ameaças, fraqueja e oscila, se ergue em assomos de iniciativa e logo estaca ou se transvia e, em última análise, não tem a persistência necessária para escolher um caminho e seguir adiante.

E é este homem de agora, incerto, desarticulado, contraditório, que surge em toda a parte; que surge, também, evidentemente, nos lugares de responsabilidade e nos elencos governativos. A crise actual, nos domínios da política e da diplomacia, nas relações entre povos e entre continentes, deriva de se encontrar muitas vezes, à cabeça das nações, esse homem sem firmeza e sem bússola, esse homem que em nada acredita porque não acredita, primeiro, em si próprio; que, por não ter definido o seu esquema essencial de princípios e regras, tropeça nos sucessivos malogros não de um "empirismo organizador", como queria Maurras, mas de um empirismo desorganizador; enfim, que investido da função de dirigir os outros, começa por não estar apto a dirigir-se e avança à toa, ao sabor dos ventos de cada hora, sem saber para quê nem para onde. Repare-se bem no espectáculo que temos na nossa frente e ver-se-á que a profundidade, a acuidade da doença mundial é, em resumo, a carência dos chefes que desconhecem o rumo, dos governantes que, antes de o ser, nunca filosofaram, nunca adquiriram noções consistentes acerca do Homem, da Sociedade e da Vida. Dá vontade de repetir o lamento de Sócrates: "O grande mal é que a maioria destes homens ignorem a essência das coisas..."

Porque a ignoram, submerge-os a avalanche dos pequenos episódios e das mutações constantes. Em vez de dominar os acontecimentos, são dominados por eles. E é frequente não se lembrarem do que fizeram ontem e não calcularem o que vão fazer amanhã.

Não pertenceu Salazar a esta galeria triste de acéfalos, de inconsequentes e de impulsivos. Entre os improvisadores - foi um metódico. Entre os fúteis - um construtor. Entre os cépticos - um dogmático.

Cria na Verdade. Pensava com a Verdade. Falava verdade. "Não há liberdade contra a verdade" - proclamou. "Primeiro, o culto da verdade" - proclamou também. E ainda: "Contrariamente à mentira - escola política e sistema de governo - a verdade nas palavras, nos actos, nas reformas, nas leis e na sua execução". Daí, a impressão causada e a projecção obtida pelos seus discursos. Benavente explicou tudo naquela magnífica súmula: "Dizem-se mil mentiras, e o Mundo fica como estava; diz-se uma verdade, e o Mundo dá uma volta..."».

João Ameal («Salazar, Orador e Pensador»).


«(...) [Franco] realiza a fase final da conquista do país: a 1 de Junho, as suas tropas apoderam-se de Castellón e a 14 de Villareal, mas viram-se logo detidos por uma ofensiva sobre o Ebro. Os contra-ataques republicanos, que visavam a reunião das duas zonas republicanas, começaram em princípios de Julho. Entre 24 de Julho e 15 de Novembro, deu-se um dos episódios mais importantes e mais sangrentos da Guerra Civil: a República jogava a sua última cartada animada pela esperança do começo do conflito internacional que Hitler ameaçava provocar perigosamente. Mas os acordos de Munique, a 29 de Setembro de 1938, acabaram com a sua dinâmica e colocaram o seu isolamento em evidência. A URSS também a abandonou. Em Outubro de 1938 retiraram precipitamente as tropas com esperança de chegar a um acordo com a Alemanha que lhe permitisse ganhar tempo para se equipar militarmente. A seguir, os acontecimentos precipitaram-se: em 28 de Novembro as Brigadas Internacionais regressaram aos respectivos países, esgotadas e deprimidas depois de terem vivido esta guerra na primeira linha, e a França deixou de fornecer armas».

Andrée Bachoud (Franco»).


Mas a questão era que o Governo britânico pretendia agora uma fiscalização internacional nas fronteiras terrestres de França e Portugal, isto é, uma fiscalização dentro dos territórios francês e português. Nisto, Salazar não cede nem se deixa impressionar. Senhor de si, esclarece inequivocamente que Portugal se opõe de facto e de princípio a fiscalizações internas do País provindas de organismos internacionais. Portugal não podia, portanto, admitir que a palavra e a lealdade do seu Governo fossem postas em causa, para serem substituídas pela autoridade oriunda de delegados de organismos internacionais fiscalizadores. De resto, Portugal jamais abriria um precedente atentatório para a liberdade e a independência dos pequenos países, qual o de permitir que comissões fiscalizadoras pudessem responder em vez deles pelo cumprimento das respectivas leis internas (17).

Ainda assim, fruto da boa-fé de Salazar, fora feito um «convite ao Governo britânico para, por meio de observadores seus, adidos à sua Embaixada ou consulados, ter ocasião de ver o rigoroso cumprimento, por parte de Portugal, das obrigações assumidas quanto ao recrutamento e trânsito de voluntários e expedição de armamento para Espanha» (18).
E ao mesmo tempo, ficava assente que um tal convite jamais pudesse ser entendido como uma «simples modalidade nova do plano de fiscalização formulado pelo «comité»», mas apenas uma atitude de espontânea amizade por parte do Governo português para com o Governo de Sua Majestade. Em suma: os adidos britânicos seriam tão-só observadores das autoridades portuguesas na execução das leis a que estavam comprometidas em pé de igualdade com as autoridades das potências envolvidas no acordo de não-intervenção em Espanha. Ora, uma tal atitude representava, pois, um gesto de confiança a que nem o Governo de Sua Majestade nem o Comité de Londres podiam naturalmente recusar. Ficava assim isolada a União Soviética, bem como salvaguardada uma fiscalização internacional rigorosa capaz de evitar que fossem enviados mais recursos para Espanha. E isto num momento em que os nacionalistas ganhavam cada vez mais terreno no âmbito da guerra peninsular.

Passa o Governo inglês a poder dar conhecimento ao comité dos seus relatórios, desde que em seu nome e jamais em representação do Governo português. A par disso, navios de guerra alemães, italianos, franceses, ingleses e russos patrulham as costas espanholas numa base de simpatia ideológica inversa à das forças que dominam em cada zona do conflito ibérico. E se bem que Moscovo pretenda a entrada de navios de guerra russos em portos portugueses para abastecimento e descanso das tripulações, Salazar opõe-se terminantemente pelo facto de não existirem relações diplomáticas entre Lisboa e Moscovo.

Em Londres, o delegado russo renuncia entretanto à fiscalização das costas espanholas, dando por manifesto o cabal insucesso em que se findara a estratégia de Moscovo. E mais uma vez Franco Nogueira deixa patente a alta política de Salazar no concerto europeu, em geral, e na Guerra Civil espanhola, em particular:

«Pela sua firmeza, alta capacidade de negociação e manobra, nível dos argumentos, força doutrinária e moral que envolve as suas atitudes, perspicácia com que apreende os interesses em conflito, argúcia e destreza com que joga uns contra os outros ou se sabe aproveitar de uns e de outros, e pela perspectiva histórica em que se coloca na avaliação dos acontecimentos, Oliveira Salazar adquire de súbito dimensão internacional. Surge no plano das nações como inteligência que se impõe, vontade que se afirma, capacidade que se respeita; aparece a actuar e a exprimir-se em nome de um povo que revela uma consciência nacional e um querer colectivo; e perante as grandes potências age com o desembaraço de quem trata de igual para igual, com o destemor de quem nada receia, com a segurança e a calma que inferiorizam terceiros, com originalidade de vistas e decisão inesperada que desorientam os demais e perturbam e alteram as deliberações já tomadas e havidas por todos como intocáveis. Suscita por outro lado o sentimento de que afinal o evoluir dos acontecimentos lhe dá razão, e só depois há a percepção de que foi Salazar que preparou e condicionou os acontecimentos. Com a atitude que assumira em Agosto e Setembro de 1936 provocara uma viragem na forma por que as potências encaram a guerra de Espanha; e com a atitude que agora consegue impor encaminha os grandes países da Europa Ocidental no sentido que politicamente julga mais conveniente para Portugal. De repente, a comunidade das nações atenta seriamente em Oliveira Salazar. Ficam impressionados os governos latino-americanos, que seguem com curiosidade ávida os acontecimentos da Península Ibérica. Fica impressionado o governo dos Estados Unidos; o Secretário de Estado norte-americano, Cordell Hull, chama o enviado português, João de Bianchi, e pede que este lhe exponha em pormenor a actuação portuguesa na crise espanhola; e perante as explicações de Bianchi não oculta a sua surpresa e a sua admiração. Não se eximem às suas felicitações os governos alemão e italiano; em conversa com Monteiro, Eden exprime a gratidão do governo britânico e confessa que, tendo já lido as notas de Salazar uma vez, vai relê-las para melhor reflectir sobre o seu conteúdo; e o governo francês começa a perguntar-se se é bem conforme aos interesses permanentes da França a política que tem seguido. E de Berlim, Veiga Simões, insuspeito de simpatia política por Salazar, comunica: «todos os artigos desses jornais (alemães) aplaudem a atitude do governo português, cheia de dignidade e aprumo. Nas autoridades alemãs, nas pessoas de representação, nos meios sociais, políticos e militares, o louvor a Portugal, cheio de respeito pelo chefe do seu governo, é-me transmitido a cada instante. Mas o que me tem sido particularmente grato é ouvir da boca de colegas meus representantes de países que não têm uma relação directa com o conflito espanhol, aplausos e respeito por essa atitude que – dizem-me – coloca Portugal a um nível de grande potência»? (19) E o Times de Londres escreve que «quentes homenagens», especialmente nos meios britânicos, são prestadas a Portugal».

Depois, Franco Nogueira continua a descrever os episódios, incidentes e circunstâncias que caracterizaram até ao fim a posição do Governo português perante o conflito espanhol. Da nossa parte, resta-nos salientar um dos mais célebres episódios de tão cruento conflito: a destruição da cidade de Guernica pela aviação alemã. Nisto, fora proposto, por iniciativa do Governo basco, um inquérito sobre aquela e outras cidades bascas.

Ou seja: um tal inquérito, acrescido de propostas para suspensão de hostilidades e humanização da guerra, aparecia precisamente no momento em que os nacionalistas obtinham triunfos decisivos para a vitória, mais particularmente nas frentes norte e sul. E disso também Oliveira Salazar nos dá sobejo testemunho:

«Têm sido tantos os factos de destruição praticados durante a guerra em Espanha, tão numerosos, mais ainda do que nos campos de batalha, os atentados nas cidades, vilas e aldeias fora das zonas das operações contra vidas e bens dos particulares, sem que qualquer acção colectiva internacional viesse condená-los, que difícil seria explicar o interesse especial inspirado pelo caso de Guernica até ao ponto de se propor um inquérito internacional sobre ele. Demais estando situada Guernica em zona de operações de guerra neste momento muito activas, e não podendo realizar-se ali qualquer inquérito sem assentimento do general Franco que por aquele motivo não poderia dá-lo, o pedido do Governo basco só teria como objectivo obter uma negativa e aproveitá-la para especulações que não nos interessam e para que não podemos contribuir.

Acresce que ao Governo português se afigura pouco em harmonia com os princípios repetidamente afirmados de não-intervenção uma proposta para inquérito internacional em território espanhol por Potências que, não sendo partes na luta, também não têm títulos para nela serem juízes.

O Governo português não julga portanto oportuna a iniciativa do chamado Governo Basco, e entende que só lhe poderia ser dado seguimento, se o inquérito fosse admitido e realizável em relação a todos os sofrimentos a que têm estado injustamente sujeitas as populações pacíficas espanholas. Mas isso, carecendo de base na posição jurídica em que em relação à guerra se colocaram as nações não-intervencionistas, é na opinião do Governo português ainda mais falto de possibilidades de realização» (20).

Aliás, é sabido como Pablo Picasso retratou a cidade basca de Guernica após o bombardeio dos aviões da Luftwaffe, procurando assim manifestar, de uma forma assaz parcial, a desumanidade e a brutalidade da guerra. De resto, filiado no Partido Comunista francês até ao fim dos seus dias, jamais denunciou as grandes purgas, expurgos e depurações de um dos mais maiores criminosos e tiranos do século XX:Josef Vissarionovitch Stalin. Na verdade, mesmo depois da morte do autocrata russo (1953), na sequência da qual vieram a público alguns dos seus maiores crimes, Picasso manteve-se em total e comprometedor silêncio como manda a praxe revolucionária, até porque, segundo a mesma, todos os meios justificam os fins.


Notas:

(17) Cf. Oliveira Salazar, «Portugal e Guerra de Espanha», in ob. cit., pp. 267-268).

(18) Ob. cit., p. 269.

(19) Recorde-se que Alberto da Veiga Simões, homem de grande inteligência e vivacidade de espírito, fora durante um mês ministro dos Estrangeiros no governo de Manuel Maria Coelho, após o 19 de Outubro, e também no gabinete Maia Pinto, em fins de 1921, igualmente por pouco mais de 30 dias. Salazar conhecia Veiga Simões dos tempos de Coimbra, mas pouco contacto houvera entre ambos, dada a diferença de gerações académicas; e encontrara-o depois em Lisboa, na redacção da República, quando ali se fora avistar com António José de Almeida a propósito dos acontecimentos de S. João de Almedina.

(20) Oliveira Salazar, «O inquérito à destruição da Guernica» (nota do Governo português de 21 de Maio de 1937), in ob. cit., pp. 292-293.

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