terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O MPLA convive mal com a democracia - Carlos Pacheco



Lisboa - Simplesmente uma vergonha! Eis o meu desabafo sincero ao ler as recentes arengas do Jornal e Angola a respeito da suspeita que envolve três hierarcas do regime angolano ante a justiça portuguesa. Não me vou pronunciar sobre o assunto por não ser tema da minha
especialidade e menos ainda por não dispor de informações idóneas sobre o processo. De qualquer modo, o que desde logo me chama a atenção nos textos é o seu tom de sectarismo e opacidade, bem típico de uma escola de jornalismo que brotou com a independência nacional em 1975.
Fonte: Publico
Em Angola, os ideais de paz e justiça apenas confi guram adornos de oratória quando se observa o comportamento político das castas detentoras do poder. Nenhum indício em tal comportamento me afi ança que as elites mandantes estão realmente empenhadas em ser obreiras de uma sociedade mais equitativa e harmónica, só possível pela conjugação da paz, da justiça e do progresso social, como preceituava Hesíodo, poeta grego do século VIII a.C. A política em Angola nos dias de hoje, tal como no passado, resume-se a um estendal de malabarismos e dissipação das fabulosas riquezas nacionais. Quando não é isto, são as brutalidades impunes dos órgãos repressivos do Estado. Provam-no os recentes acontecimentos de repúdio social contra a má governação e contra a corrupção alarmante que corrói os alicerces do Estado, as quais se saldaram num novo ciclo de prisões arbitrárias e também em espancamentos e actos de terror. O diálogo dos poderosos com a sociedade simplesmente não existe. É uma promessa fi ccional.

Pois que se saiba, em nenhum momento o Jornal de Angola tocou ou afl orou estas questões nas suas colunas; em nenhum momento se dispôs a falar do estado de abjecção e esquecimento a que estão votadas as populações de Angola, sem direitos, a não ser o direito de viverem uma vida de miséria atroz enquanto os senhores das distintas hierarquias do poder exibem uma riqueza intolerável. Em nenhum momento o jornal se infl ou de coragem ética para denunciar os graves atropelos aos direitos humanos que acontecem um pouco por todo o país a uma escala assustadora; tal como jamais denunciou o “Frankenstein cruel, de formas gigantadas”, em que se transformou o Estado angolano, para citar uma frase de Louis Fischer na obra O Deus que Falhou.

É claro que se o fi zesse o jornal e o seu director seriam imediatamente fulminados com os raios mortíferos do partido. No entanto, para surpresa de toda a gente, o jornal aparece agora a querer reinventar-se no papel de símbolo de uma imprensa livre e independente. Isto é, sem amarras que o subjuguem à ideologia e aos interesses dos “senhores do Olimpo”. Um gesto temerário, de suprema hipocrisia, eis numa palavra o que se oferece comentar.

Todos sabemos as águas em que se move o Jornal de Angola. É um veículo de propaganda ao serviço do Partido-Estado, por mais que o seu director o tente negar. Não deixa de ser lamentável a sua obstinação em disseminar discursos de medo e não de esperança ao identifi car-se com a doutrina messiânica e com a violência sistémica do MPLA. A identifi cação é, por vezes, tão delirante que chega ao cúmulo do ridículo. Já ouvi alguns militantes do partido manifestarem-se envergonhados com certos escritos daquela folha. Aliás, recorde-se o desempenho incendiário do Jornal de Angola no consulado infame de Agostinho Neto, em particular o seu envolvimento nas campanhas terroristas de Estado antes e após a eclosão da pior barbárie de que há memória nos anais da história do Movimento e da história do país em Maio de 1977.

Sem esquecer, por outra parte, a sua fúria belicista durante a guerra civil. Uma vocação anti-republicana de subserviência partidária que não mudou em todos estes anos.
Por consequência, ao invés de se afi rmar no papel de mediador de tensões políticas e sociais, o Jornal de Angola com o seu rosto antipático apenas se tem esmerado na arte de agravar confl itos, exacerbar polaridades e banalizar o mal semeado pelas instituições. No passado funcionaram pelotões clandestinos de fuzilamento ao serviço da moral do partido que valorizava (e ainda valoriza) as pessoas pela bitola de “nós, os bons” em oposição
aos “outros, os maus”. À sombra deste clima doentio de maniqueísmo desencadeou-se uma onda ciclópica de assassinatos cruéis contra milhares de cidadãos. Hoje felizmente já não existem pelotões de fuzilamento que tiram a vida. Mas existe o Jornal de Angola que mata doutra forma com os seus editoriais e artigos de opinião do director. Mata pelo insulto, pelo labéu e pela desvalorização, criando da pessoa que pensa ou escreve diferente dos mandamentos do MPLA uma feição satânica. Um processo de vampirização do adversário político, tão ou mais brutal que

uma arma de fogo. É o reino do absurdo em que a vida, como diria Imre Kertész, escritor húngaro, se cristaliza em alienação. Do meu ponto de vista, o Jornal de Angola é o espelho perfeito através do qual se percebe quanto o MPLA convive mal com a democracia.Os erros do passado repetem-se assim qual uma herança maldita. Um dia, Thomas Jeff erson, terceiro Presidente dos Estados Unidos, advertiu para o perigo da moral maniqueísta: “A grande questão não é entre ‘nós’ e ‘eles’, mas entre Deus e o diabo, e se aqueles que desejam combater o diabo adoptarem os métodos do diabo, o diabo vencerá”. Desgraçadamente, o diabo [aqui utilizado como metáfora] continua a levara melhor em Angola. O medo escorre da pele dos angolanos cada vez que se evocam determinados assuntos considerados tabus.

Só o facto de timidamente por vezes se nomear alguns desses tabus leva as pessoas a pensar amedrontadas que estão a incorrer em crime de lesa-pátria. Por isso desconversam, emudecem. Raramente se consegue dialogar com alguém, como é o meu caso, sem que logo se interponha uma trincheira que impede ou difi culta a troca de ideias e informações, mormente se o interlocutor for um correligionário do MPLA.

Sem liberdade não existe república, dizia Winston Churchill, e sem liberdade não existe, rigorosamente falando, Estado de Direito, mas tão-somente uma sua mistifi cação. Não adianta ao Jornal de Angola fazer exercícios de glorifi cação em torno das sacrossantas virtudes do país e conclamar que Angola é uma pátria de heróis forjada na luta armada de libertação nacional, como se isso de alguma maneira pudesse concitar um maior respeito por parte das outras nações. No fundo é um gesto patético de demagogia e populismo, próprio de quem desconhece a história e porfi a em distorcê-la com tiradas ditirâmbicas acerca de uma sonhada Idade Heróica. Não se exagere. Não é pela autodivinização que se colhe o apreço dos estrangeiros e sim pela seriedade, justiça e disciplina. A luta anticolonial foi o que foi.

Nem mais nem menos heróica. Iniciada sob o signo moral do ressentimento e trazendo no seu bojo um projecto criador de afi rmação de novos valores, com o tempo a rebelião em armas desembocou em desmandos contra as massas camponesas, contra os civis em geral e, pior, converteu-se numa guerra devastadora entre os três movimentos. A cadeia de brutalidades é inenarrável. Assim, em vez deste registo não muito edifi cante, o que
importa realçar é a apoteose da emancipação nacional a 11 de Novembro de 1975.

Termino dizendo que no MPLA existem pessoas boas e inteligentes por certo saturadas com o rumo oblíquo trilhado por Angola. Também elas percebem que a pior ameaça ao MPLA é o próprio MPLA, que aloja dentro de si um inimigo.
Termino dizendo que no MPLA existem pessoas boas e inteligentes por certo saturadas com o rumo oblíquo trilhado por Angola. Também elas percebem que a pior ameaça ao MPLA é o próprio MPLA, que aloja dentro de si um inimigo.

*Historiador angolano

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