quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O Legado da ONUMOZ

 


Mantêm-se controversas as análises feitas sobre o papel da ONUMOZ - a missão das Nações Unidas (NU) que dirigiu o processo de paz em Moçambique. Muito já foi escrito sobre este assunto e está fora do âmbito desta monografia fazer mais especulações. O mandato da ONUMOZ era o seguinte:

• Acompanhar e verificar o cessar fogo, a separação e concentração de forças, a sua desmobilização e a recolha, armazenamento e destruição de armas;

• Acompanhar e verificar a retirada completa de forças estrangeiras e fornecer a segurança nos corredores de transporte;

• Acompanhar e verificar o licenciamento de grupos armados irregulares e privados; autorizar os preparativos de segurança para infraestruturas vitais e fornecer a segurança para as Nações Unidas e outras actividades internacionais de apoio ao processo de paz;

• Fornecer assistência técnica e acompanhar o processo eleitoral na sua totalidade;

• Coordenar e acompanhar as operações de assistência humanitária, em particular as respeitantes aos refugiados, pessoas desalojadas internamente, pessoal militar desmobilizado e a população local afectada.1

Para os fins desta monografia o componente militar do mandato da ONUMOZ é muito relevante, o qual está directamente relacionado com o desarmamento, uma vez que falhas nesta componente podem representar uma pesada herança para o governo de Moçambique.

Durante o trabalho de campo para esta publicação, a maior parte dos Moçambicanos afirmaram que estavam satisfeitos com os resultados da missão das NU, e não hesitaram em mencionar, para reforçar a sua opinião, a bem sucedida organização das primeiras eleições democráticas em 1994. O seu reconhecimento do apoio da ONUMOZ na consolidação da paz em Moçambique foi, no entanto, muito mais modesto e muitos comentaram que a ONUMOZ apenas participou e foi incluída num compromisso profundo para o estabelecimento da paz que já existia entre o povo Moçambicano.

“A população era a parte mais fraca no conflito…. Cansada das mortes, das mutilações, e outras privações da guerra, o povo estava disposto a aceitar qualquer coisa … e o medo de voltar para a guerra levou a população civil a tomar medidas de reconciliação mesmo antes do cessar fogo ter entrado em vigor.”2

Um outro ponto de consenso foi a componente militar da ONUMOZ, que os Moçambicanos não hesitaram em considerar como um falhanço. Eles não são os únicos a fazer esta avaliação.3 O facto de a maior parte dos documentos das NU sobre a ONUMOZ incluirem apenas alguns parágrafos sobre o processo de desarmamento, ao contrário dos debates extensivos sobre outros aspectos da missão, parece indicar o seu próprio descontentamento no que respeita a esta área do seu trabalho.

Com toda a justiça, deve ser dito que, considerando as circunstâncias políticas na altura, a missão das NU enfrentou escolhas difíceis, as quais requereram decisões rápidas num ambiente ainda contaminado por suspeitas mútuas entre as partes em conflito. Para salvaguardar o objectivo final - trazer a paz a um país envolvido em conflito durante mais de 30 anos – foi necessário fazer compromissos. Para além disso, alguns dos problemas existentes parece terem sido criados mais pelo Governo de Moçambique (GdM ) dessa altura, do que por falta de vontade ou capacidade das NU para os resolver. Apesar de tudo, o facto é que quando as NU se retiraram no fim de 1994 o GdM recebeu como herança forças armadas descontentes, instituições paramilitares com pessoal em excesso, e a combinação volátil de soldados desmobilizados desempregados bem como esconderijos de armas dispersos pelo país, num ambiente económico que oferecia poucas oportunidades. Para além disto, as armas recolhidas durante o período da ONUMOZ foram entregues ao GdM, a fim de armar um exército já armado em excesso e que tinha pouca capacidade para gerir o armamento sob o sua supervisão.4

A falta de um embargo de armas a Moçambique durante o processo de desarmamento da ONUMOZ também significa que novo equipamento possa ter sido importado por ambas as partes durante esse período.5

Isto, por outro lado, significou também que econderijos de armas desguarnecidos podiam ter sido rearmados, ou mudados para outras áreas, com equipamento novo. Apesar de não haver evidência concreta que qualquer das partes estivesse a importar armas durante este período de actividade da ONUMOZ – o movimento parecia ser mais para fora do que para dentro de Moçambique – a recolha de armas novas em algumas comunidades pode ajudar a confirmar a reivindicação de que havia importação de armas durante o período de operação da missão da ONUMOZ. 6

Estimativas sobre o número de armas pequenas e armas ligeiras (SALW) distribuídas à população Moçambicana durante a guerra são diversas e variam entre 1,5 e 6 milhões.7

Esta monografia não especula com estes números. É suficiente afirmar que grande número de armas foi distribuído por ambos os lados e é opinião geral que apenas uma pequena porção destas armas foi entregue à ONUMOZ. Segundo um dos entrevistados presentemente nas forças armadas, soldados e oficiais recebiam mais do que uma arma durante a guerra. Sempre que eram transferidos para um novo posto, recebiam mais uma arma, ou um conjunto de armas (por ex: Uma arma de pequeno porte (pistola) e uma espingarda ). Apesar de deverem obrigatoriamente deixar as armas recebidas no quartel em que estavam antes de partir para assumirem os seus novos postos, a maior parte não o fez. Isto significa que soldados podiam acumular várias armas não registadas. Na altura da desmobilização, com poucas esperanças no futuro, muitos soldados e oficiais apenas devolveram as armas que quizeram ou apenas as que tinham defeitos.8 .

De acordo com esta mesma fonte, a ONUMOZ recolheu cerca de 200.000 SALW e entregou-as ao GdM; 24.000 estão registadas como tendo sido destruídas.9

Apesar de a ONUMOZ ter mostrado interesse em destruir um maior número de SALW, o GdM não o permitiu.10

A enorme diferença entre o número de armas recolhidas pela ONUMOZ e o número estimativo das que foram distribuídas, mesmo que se considerem apenas os valores mais baixos, dá uma boa ideia do problema que ficou por resolver:

• forças armadas com excesso de equipamento ( os principais vencidos no processo de paz ) com pouca capacidade para gerir os armamento existente.

• instituções paramilitares com excesso de pessoal.

• esconderijos de armas não registados, de ambos os lados, espalhados por todo o país.

• um “exército” de soldados desmobilizados e desempregados com conhecimento e acesso a armas escondidas.

A Necessidade de Prosseguir com o Desarmamento

Se o impacto dos problemas que afligiam tanto as forças armadas como as instituições paramilitares não fosse de imediato evidente, o falhanço na recolha e destruição de armas utilizadas durante a guerra bem cedo se tornou claro. Enquanto a ONUMOZ deixava o país cuja segurança devia ter garantido, os índices de criminalidade em Moçambique subiam dramaticamente, particularmente nos centros urbanos. A guerra já não era um problema, mas a segurança dos cidadãos Moçambicanos estava de novo ameaçada. Para além disto, era aparente que esta ameaça estava a transbordar para os países vizinhos, principalmente a África do Sul. Talvez ainda mais do que durante a guerra, a insegurança Moçambicana tomava agora dimensões regionais.

A Situação em Relação ao Crime

O número de crimes relatados em Moçambique aumentou de 30.579 em 1994 para 37.396 em 1995 e para 42.967 em 1996, um amento de treze por cento.11

Como as estatísticas não são separadas, é difícil saber quantos destes incidentes incluiram o uso de armas de fogo. Contudo, dada a conhecida relutância dos Moçambicanos em relatarem crimes às autoridades (ver capítulo 4)12 pode assumir-se que uma grande percentagem destes números representa crime violento. Fontes formais e informais parecem estar de acordo que o crime violento atingiu os valores mais altos no período 1996/1997 e decresceu a partir de então.13 O que quer que as estatísticas digam, a percepção depois de 1994 era de que o crime violento estava a aumentar nos centros urbanos em Moçambique, assim como ao longo das estradas principais, deste modo limitando a mobilidade, o investimento, e impedindo a circulação livre de pessoas e mercadorias. Em 1995 o GdM reconheceu que grandes quantidades de armas ilegais estavam em circulação em Moçambique, e anunciou um plano mestre para tratar da questão. O plano permitia a colocação de unidades especiais de reacção rápida nas estradas principais e áreas mais afectadas pelo crime, re-estabelecimento de comandos distritais de polícia e proporcionava uma maior co-operação com as forças policiais dos países vizinhos.14

Impacto Regional

À medida que a situação da criminalidade se agravava em Moçambique, o governo da África do Sul enfrentava problemas semelhantes com o aumento da criminalidade urbana, enquanto, simultaneamente, se debatia com o conflito interno, incluindo as guerras dos táxis no Kwazulu-Natal. Também era evidente que tanto o crime violento urbano como o conflito estavam sendo alimentados com armas fluindo de Moçambique para a África do Sul.

Os países da África Austral ainda debatiam a institucionalização da cooperação policial regional e ,portanto, não havia uma organização para tal cooperação15 mas os governos dos dois países concordaram que não podiam esperar mais tempo por um enquadramento mais vasto. A estabilidade social, o desenvolvimento e a democracia em ambos os países estavam sendo ameaçados. Um problema tinha sido claramente identificado:

SALW ilegais fluiam de Moçambique para a África do Sul, alimentando o crime violento e o conflito. A origem destas armas também era conhecida: eram os restos da guerra Moçambicana que haviam sido escondidos. Uma estratégia rápida tinha que ser desenvolvida. Foi neste contexto que o Presidente Mandela e o Presidente Chissano acordaram sobre um processo comum para refrear a transferência de SALW ilegais de Moçambique para a África do Sul – a destruição de esconderijos de armas em Moçambique. Este programa de cooperação viria a ser chamado Operação Rachel e provou ser uma das iniciativas mais bem sucedidas do seu género."

 



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