quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

NAS MÃOS DOS ALGOZES


Por Barnabé Lucas Ncomo
Sétima parte

NAS MÃOS DOS ALGOZES

Malawi na berlinda: A prisão no Aeroporto de Chileka.

O Malawi é um pequeno país refém geográfico. Encravado en­tre Moçambique, a Zâmbia e, no extremo nordeste, a Tanzânia, é pra­ticamente dependente dos portos moçambicanos para o seu acesso ao mar. O seu líder histórico, Dr. Kamuzu Banda, viu-se numa situação em que simultaneamente tinha que agradar a Deus e ao diabo.

Por ocasião das festividades da independência nacional do Malawi, Banda foi citado como tendo dito que a independência do seu país só teria sentido se Moçambique se libertasse, igualmente, do jugo colonial. Com efeito, em 1965, quando começaram a afluir ao Malawi milhares de refugiados de Moçambique, o governo de Banda proporci­onou-lhes alojamento em zonas como Likoma-Island, Mlanje e Cholo. Tacticamente Banda entendia-se com os revolucionários moçambicanos. Os operacionais dos movimentos guerrilheiros, tanto da Frelimo, como posteriormente do Coremo, entravam no Malawi para acções de recru­tamento político apesar de não possuírem aí bases militares. Banda evitava hostilidades directas com Portugal, pois se por um lado queria a independência de Moçambique, por outro, dependia economicamen­te dos portos portugueses em Moçambique.

As relações entre o governo malawiano e a Frelimo esfriariam na segunda metade da década de 60 quando Henry Chipembere iniciou uma rebelião armada contra o governo de Banda, ao que se supôs, tendo como base de retaguarda a Tanzânia e algum apoio da Frelimo, através dos seus campos de treino no território tanzaniano. Simango conhecia bem o Malawi e os seus dirigentes. Já em Julho de 1969, deslocara-se àquele país na companhia de Joaquim Chissano, tendo aí permanecido sete dias em contactos com Kamuzu Banda e alguns mem­bros do seu governo para, entre várias coisas, tentar quebrar o gelo que já separava as autoridades malawianas da Frelimo.

Homem ponderado e calculista, Banda terá sido apanhado de surpresa pelo golpe do estado de 25 de Abril em Portugal. Em 1974 os líderes do Coremo circulavam no Malawi com conhecimento do go­verno deste país que lhe concedia apoio de diversa ordem. Ciente da situação geográfica e da dependência económica do Malawi, a Frelimo, através do seu Departamento de Segurança, que na essência já era a Contra Inteligência Militar (CIM), iniciaria em Outubro de 1974 con­tactos com o Malawi em que sobressaía a chantagem política, visando a captura dos seus opositores políticos que aí circulavam com conheci­mento das autoridades.

"Ou Banda colaborava para o bem das relações com o Moçambique governado pela Frelimo, o que se avizinhava, ou cor­ria o risco de ver tensas as relações de vizinhança, com consequências de ver as suas rotas para o mar bloqueadas, imedia­tamente após a ascensão da Frelimo ao Poder"465.

Foi desse modo que o Malawi, na pessoa do Ministro na presi­dência, e então secretário geral do partido no poder, Dr. Albert Muwalo Nqumaio, e a polícia política malawiana (a Special Branch) conspira­ria com a Frelimo contra as forças da oposição em Moçambique.

            De descendência moçambicana, Albert Nqumaio era um de vá­rios descendentes da linhagem do histórico imperador de Gaza (Ngungunhane) espalhados pela zona austral da África. Nqumaio tinha uma certa simpatia para com a causa da independência de Moçambique e, particularmente, assim que tomou conhecimento de que o movimen­to de libertação de Moçambique era dirigido por pessoas oriundas de Gaza, forjou amizade com alguns indivíduos da ala regionalista sul na Frelimo. Segundo relata Samuel Simango, membro da primeira hora nas fileiras da Frelimo e posteriormente do Coremo e do PCN, o então ministro na presidência malawiana chegou a possuir um cartão de mem­bro da Frelimo na clandestinidade sem que o seu presidente, Kamuzu Banda, tivesse disso conhecimento. Banda terá embarcado na conspi­ração sob garantias dadas por Nqumaio de que nada de grave aconte­ceria tanto a Simango como a outros políticos moçambicanos que o Malawi entregasse à Frelimo.

-"Parece que Nqumaio disse a Banda que a Frelimo apenas queria a presença deles na Tanzânia para não se retardar o proces­so de ascensão de Moçambique à independência. Depois dopais as­cender à independência, tanto Simango como outros políticos moçambicanos seriam postos em liberdade para desenvolverem li­vremente no país as suas actividades políticas. E Banda caiu na fita"466.

A colaboração do governo Malawiano nesse processo "de agilizar a ascensão da independência de Moçambique", "seria com­pensada por via de boas relações de vizinhança com o novo regime político que se instalaria em Lourenço Marques (Maputo). Banda, terá acreditado nessa estupidez"461

Depois da África do Sul, em Novembro de 1974 Simango se­guiu com destino a Nairobi (no Kenya) na tentativa de estabelecer con­tactos com o presidente Jomo Kenyata. Na época, Kenyata era um líder influente nos corredores da OUA. Uria Simango estava profunda­mente convencido de que o velho estadista keniano teria a capacidade de influenciar o processo moçambicano a nível da OUA, pois esta or­ganização reconhecia também o Coremo como um movimento legíti­mo, representativo das aspirações do povo moçambicano à indepen­dência.

            Tudo indica que enquanto Simango se dirigia ao Kenya, o su­posto espião infiltrado no PCN já se encontrava naquele país na com­panhia do Padre Mateus Gwengere. A chegada de Simango à capital keniana era do conhecimento de ambos. Todavia, por razões imprecisas, o reverendo não se encontraria com o Padre Gwengere.                       Simango chegou a Nairobi em data imprecisa da primeira quinzena de Novem­bro. As circunstâncias da sua saída daquela cidade em direcção ao Malawi estão ainda por esclarecer na sua totalidade. As informações indicam que o aludido espião recebera instruções de Dar es-Salam para aliciá-lo a descer para o Malawi afim de contactar a Frelimo sob os auspícios do Governo malawiano na pessoa do ministro na presidên­cia, Dr. Albert Muwalo Nqumaio. O espião, terá sido a pessoa ao cui­dado de quem Nqumaio enviou um telegrama à Simango, solicitando a sua urgente presença naquele país a fim de "discutir o processo moçambicano". Com efeito, Simango atenderia de imediato a solicita­ção, viajando de avião para Blantyre sendo a passagem custeada pelo Alto Comissário do Malawi em Nairobi. À sua chegada ao Aeroporto de Chileka, Simango foi recebido pelas autoridades malawianas. Con­tudo, cedo se apercebeu da estranha recepção que lhe havia sido dis­pensada. Segundo as suas palavras, viu à sua volta pessoas estranhas a controlar-lhe os movimentos e, minutos depois, chegavam outras que ele supôs tratar-se de agentes da Special Branch malawiana. Foi intro­duzido numa viatura e encaminhado para a fronteira com Moçambique. Chegado a fronteira de Milange, Simango dissipa então as dúvidas. Acabava de cair numa armadilha. Ia ser entregue à Frelimo, pois já lá estavam outros detidos, todos eles ligados ao PCN, tais como Paulo José Gumane, Samuel Brito Simango assim como nove membros da­quele partido que haviam sido presos no Shire Highlands Hotel em Limbe, Malawi468. O Reverendo Una Simango entrava assim na derra­deira caminhada para a morte.

A recepção dos detidos do lado moçambicano da fronteira es­teve a cargo de João Honwana e do comandante da base da Frelimo em Mongue, Mabuko Feitotudo. Ambos trataram de separar Uria Simango e Paulo Gumane do restante grupo de pessoas detidos no Malawi. Simango e Gumane foram de seguida conduzidos à cidade de Quelimane e daí para o campo de preparação político-militar da Frelimo em Nachingweia, Tanzânia469.

Com efeito, nas diversas cerimónias de julgamento público desde Março a Maio de 1975, assinalar-se-ia naquele centro não só a presen­ça de Uria Simango, como também da maioria dos detidos em Moçambique, Zâmbia e Tanzânia no período que vai do 25 de Abril a Novembro de 1974. Nachingweia viria a ser então o testemunho vivo da maior conspiração política de todos os tempos em África, envolven­do as autoridades de quatro países da região austral.

Como troféus de guerra, Simango e outros políticos moçambicanos seriam desfilados e exibidos publicamente por Machel e Marcelino dos Santos sob o olhar de aprovação de Julius Nyerere e Kenneth Kaunda, então respeitáveis estadistas de África.

No rescaldo da contenda: Cantando salmos

"Posso ser uma pessoa despresível, mas quan­do a Verdade fala em mim, sou invencível"

- Mahatma Gandhi -

O Rev. Simango tinha uma coisa a fazer: Detido, vilipendiado, e sem nenhum meio de defesa perante homens que faziam da vida um jogo de morte, restava apenas encomendar a sua alma a Deus. Afinal, ele era um pastor e sabia em que mãos se encontrava. E um homem como ele, moldado pela palavra de Deus nas mãos de homens despidos de senso humano, nada tinha a fazer senão orar para que o Omnipoten­te perdoasse os que não sabiam o que faziam. Nachingweia doeu, como doeria ainda mais todo o subsequente processo da descolonização por­tuguesa e, posteriormente, o Moçambique independente.

Sob uma vigilância apertada, proporcionada por dois pelotões, Simango chega a Nachingweia a 21 de Novembro de 1974. Foi encar­cerado, na companhia de outros, no que havia sido até ao momento a casa de Samora Machel, enquanto comandante do centro.

           "A notícia da sua prisão caiu como que uma bomba para alguns de nós. Pela primeira vez vi o senhor Mungaka a chorar. O homem soluçava às escondidas como um bezerro desmamado. Aquilo foi triste. Eu e muitos outros quase que ficámos uma sema­na sem conseguir tragar um alimento. Nada podíamos fazer. A guarnição estava a cargo do grupo em quem Samora depositava maior confiança. A situação foi mais constrangedora quando nos apercebemos de que a Dona Celina também se encontrava entre os detidos. A senhora estava na companhia de uma senhora de Cabo Delgado, chamada Verónica, guarnecida num outro local por um pelotão de DF*10. Não se permitia que ninguém se aproximasse do perímetro do local onde os presos estavam encarcerados. Nem ami­gos, nem familiares. Havia ordens expressas de que em caso de ten­tativa de fuga se disparasse para matar. Andávamos às voltas dum lado para outro, sem sabermos o que fazer. À noite, alguns de nós choravam num canto, porque sabíamos qual era o fim daquilo. Como os chefes sabiam que nós gostávamos de Simango, tudo fize­ram para nos controlar os movimentos. Alguns daqueles guardas hoje sentem-se profundamente chocados pelo que faziam. Não que­rem acreditar como ingenuamente foram usados para fazer mal aos outros. É assim a vida, o arrependimento vem sempre tarde"411.

No seu regresso a Nachingweia depois duma digressão por Ásia na companhia de alguns responsáveis da Frelimo, Samora Machel e seus camaradas são citados como tendo jubilado de seus feitos. A mai­oria dos dissidentes da Frelimo encontrava-se agora nas suas mãos, o que por si denotava a índole do regime que se preparava para se impor ao país em nome da dita democracia popular.

             Mas o Reverendo jurou manter a dignidade. Não desfaleceria perante qualquer espécie de intimidação ou tortura, pois "a marcha para a morte será longa" - como diria ele próprio aos seus colegas de cativeiro aquando da sua transferência para M'telela. Nas noites escu­ras do cárcere, Simango cantarolava os salmos da Igreja que, para além de encorajá-lo, comoviam alguns dos seus companheiros e os próprios carcereiros. Doeu-lhe a alma rever pela primeira vez, depois de meses de separação forçada, os seus companheiros de luta de olhos   lacrimejantes. A sua esposa estava entre eles e, ao avistarem-se, os seus olhares transmitiam dor e tristeza. Nada sabiam do destino dos seus três meninos, Maúca, Mbepo (Deviz) e Mbiyo (Lutero). Os dias no campo de Nachingweia seriam passados sob torturas físicas e traba­lhos forçados na machamba que circundava o centro. Os métodos de interrogatório que se seguiram, baseados nos manuais dos "mestres" da Europa do Leste de então, ilustravam a rapidez com que os paladi­nos da liberdade em Moçambique assimilaram a matéria da ditadura do proletariado. Era preciso esgotar a resistência física e espiritual dos acusados. Era preciso fatigá-los, pois uma vez caídos nessa fase, tor­nar-se-iam apáticos e concordariam com tudo o que deles se exigisse. Era preciso convencê-los de que as suas declarações seriam a única forma de poderem ainda prestar um valioso serviço à nação depois de todos "prejuízos" por si causados e, garantir-lhes de que a vida dos seus ente queridos, dependia do grau de colaboração que prestassem, a bem da naçãol...

Todavia, o Reverendo Simango, a despeito da confrangedora situação em que se encontrava, relatou com dignidade toda a sua tra­jectória desde a sua saída do território tanzaniano (em Abril de 1970) até a data do seu rapto. Não desfaleceu. Falou dos contactos que man­teve depois do 25 de Abril em Moçambique no âmbito do seu esforço para encontrar uma solução justa para o processo da descolonização do país. Falou do que pensava sobre o que era uma independência. No fim, rematou: "Tal como vocês, meus irmãos, estou profundamente preocupado com a independência do nosso país. Se acham que não, então, matem-me. Não sou eu quem vos julgará. É a história"m.

              Os dias foram passando, como passavam as tortuosas noites com as ameaças de morte subjacentes nos discursos do chefe do campo e dos sequazes mandatados pela casta regionalista do sul. E eis que chega Março. Simango é confrontado com um documento em que se lia que ele confessava ser o causador de todas as desavenças vividas na história da Frelimo; que ele é que havia planificado a morte do Dr. Eduardo Mondlane; que ele era muito ambicioso e que sempre sonhara  em ser o líder máximo da Frelimo; que ele sempre estivera ao serviço de forças imperialistas do ocidente contra a independência e unidade do povo moçambicano e que, perante tudo aquilo, reconhecia que er­rara e pedia ao povo moçambicano que o perdoasse e educasse.

Os mentores da tal confissão, exigiam-lhe que assinasse o do­cumento como condição duma clemência para ele e para a sua família Simango recusa e diz peremptoriamente:

"Antes a morte do que assinar isso. Matem-me para me pou­parem o sofrimento. Isso nunca assumirei no meu juízo normal"41.

E o sol foi-se pondo e dispondo, sucedendo-se os dias. A uma determinada altura da vida dos presos em Nachingweia, as torturas físicas mudaram de executores. Passaram a ser confiadas a um grupo de ex-pides e alguns OPVs que na circunstância se encontravam tam­bém detidos naquele centro. Segundo um dos detidos, os ideólogos da ala regionalista do sul e seus aliados haviam-se apercebido de que os guardas (guerrilheiros) a quem fora incumbida a missão de torturar os presos faziam-no da forma mais leve possível, pois a maioria deles co­nhecia Simango e alguns dos detidos como seus ex-chefes, homens respeitáveis. Condoía-lhes a nova situação em que se encontravam de ter que maltratar esses homens, pessoas por quem sempre nutriram confiança. Em cada missão de tortura, Simango, longe de chorar ou gritar como queriam vê-lo fazer, cantarolava os salmos, acabando por comover os pacatos guerrilheiros. E sempre que os mandantes viras­sem as costas, ficava o Reverendo e outros presos numa amena con­versa com os seus algozes de circunstância.

           "Os tipos começavam a lavar-se em desculpas em frente de Simango e de outros. Diziam que estavam a cumprir ordens senão eles ficavam também mal Foi daí então que os chefes do centro decidiram mudar de trabalhadores, pois descobriram que os guar­das, no lugar de fazerem um trabalho limpo, brincavam e punham-se a conversar com os "reaccionários". Ainda viam em Simango um homem que merecia um tratamento condigno. Era preciso mos­trar-lhes que Simango e os outros já não eram nada. Assim, dirigin­do-se a outros presos (os tais PIDE's e OPVE's), Samora Machel disse: 'vocês foram talhados pêlos colonos a maltratar o povo. Agora quero prova das vossas capacidades aqui. Para melhor colaborarem com a revolução, devem dar provas daquilo que aprenderam com os vossos patrões. Temos aqui reaccionários, moleques dos colonos que vocês devem trabalhar para confessarem. Apliquem o que aprenderam, ouviram?' "474

A missão coube a Valentim475 e a um grupo de OPVs. Simango e os restantes presos seriam psicológica e fisicamente torturados diari­amente por esse bando. Para se ter uma vaga ideia da dimensão da tortura psicológica e física que os presos enfrentaram em Nachingweia, basta recorrer a alguns depoimentos das vítimas:

          "Quando cheguei a Nachingweia na condição de prisionei­ro, meteram-me numa minúscula cela onde já estavam outros. Tí­nhamos dificuldades de nos estendermos, e à noite aquilo ficava às escuras. Machel não estava no Centro quando lá cheguei. E parece que não estava mesmo na Tanzânia. Mas não demorou a regressar. Um dos seus capangas e conselheiro, muito conhecido cá na praça, que acabava de regressar na companhia dele, quando me viu no grupo dos presos quase que pulou de alegria. Começou a sorrir naquele seu sorriso de carniceiro. O tipo conhecia-me bem, fui che­fe dele noutras paragens em serviço da Frelimo. Dirigiu-se a mim e disse: oh! Honwana, estás aí também?!, vou arranjar-te um sítio melhor, aqui não dá para ti. Retirou-me daquela cela. Eu convenci­do de que me ia pôr num sítio melhor, mandou fechar-me num lugar que antes era uma capoeira. Aquilo tinha uma lâmpada forte, daqueles que se usam nas chocadeiras. A noite era uma luta terrível com os insectos que, encadeados pela luz, voavam em direcção à lâmpada que estava por cima de mim. Foi aí que vi que aquele tipo não prestava mesmo""6.

Aquando da sua transferência de Nachingweia para o Niassa, o Reverendo Simango relataria aos outros presos um episódio macabro:

"Dias antes da sua apresentação pública em Março de 1975, os carrascos, a mando dos chefes da segurança da Frelimo, fizeram na sua presença uma cova de comprimento de uma sepul­tura para um adulto, com cerca de metro e meio de profundidade. Foi aí conduzido atado dos pés às mãos e, de seguida, deitado na berma dessa cova. De seguida apareceu o "V" na companhia do "M"para certificarem-se da prontidão do processo. Mandaram tra­zer a esposa do reverendo numa derradeira tentativa de persuadi-lo a vergar. Foi duro para os dois. Voltando-se para Celina Simango, "V" disse-lhe que tomara conhecimento de que também se encon­trava no campo de Nachingweia, e que por isso achou por bem mandar chamá-la para despedir-se do marido. "V" Acrescentou que apesar de tanto trabalho feito pelos camaradas da segurança, no sentido de ajudar o marido, Simango não queria colaborar, "V"dis­se ainda a Celina que o Comité Executivo da Frelimo havia decidi­do que Simango devia morrer e era importante que Celina o persu­adisse a colaborar para evitar que tal viesse a acontecer. Contraria­mente ao que "V" e o seu companheiro esperavam, Celina disse apenas isto: ‘Se é para morrer, vá e descanse em paz Uria. Um dia alguém se lembrará que também lutaste para a libertação de Moçambique!.'

Dito isto, imediatamente, Celina foi arrastada e retirada do local. A senhora viveria os dias seguintes convencida de que o marido havia sido morto naquele mesmo dia. Só se apercebeu de que o esposo ainda vivia no dia da apresentação pública, quando ela, o marido e todos nós fomos retirados das celas para a para­da"477 .

 

Mas naquele dia da simulada sepultura, algo de grave voltou a passar-se na ausência de Celina. Simango preferia a morte do que assi­nar um documento que não fora da sua autoria. A irredutibilidade do Reverendo foi tal que se optou por lhe garantir que se iriam transcrever todas as suas declarações conforme o seu pedido. Para surpresa sua, no dia da apresentação pública, Simango repararia que o documento que tinha em mãos como sendo a transcrição das suas declarações es­tava gravemente alterado. As suas afirmações estavam deturpadas de cima para baixo. A despeito de constar no documento alguns relatos verídicos, o documento continha grande parte de tudo aquilo que recu­sara assumir no seu juízo normal. Segundo ainda um dos presos, a técnica utilizada foi apenas convence-lo a assinar o documento dactilo­grafado, como sendo produto da transcrição das suas declarações. E isso foi feito sob fortes ameaças. "Mas uma confissão tirada a força daquela maneira não tem nenhuma validade para sustentar uma acusação"41*. De facto, segundo escreveria mais tarde Benedito Muianga, tudo indica que Simango não confessou nada. "A confissão de Uria Simango fora, na realidade, redigida por Sérgio Vieira" -escreve Muianga479.

           "O amor à mulher e aos filhos jogou um papel de peso para o desequilíbrio psicológico de Simango. Ele próprio disse que o ha­viam obrigado a ler um documento que se pretendia ser a transcri­ção das suas declarações. Antes de começar a lê-lo chamaram-lhe a atenção para o facto de que esse documento estava em duplicado. Tinha sido fotocopiado. Estaria alguém a acompanhar frase por frase tudo o que pronunciasse. Caso não o lesse em conformidade, antes dele, quem pagaria a factura seria Celina e as crianças. Aí, tudo se alterou. Simango sabia do que Machel e o seu grupo eram capazes. O Reverendo, naturalmente, perante a situação de indefeso em que se encontrava, admitia que o pudessem molestar, mas como qualquer pai e chefe de família, arrepiava-lhe a ideia de ver a sua esposa e os seus filhos em agonia nas mãos de qualquer sanguinário. Samora e seus camaradas eram capazes de tudo desde que a meta fosse a consolidação do poder político. Portanto, para ele, Cetina e as crianças tinham que estar fora daquilo. Então leu aquele documento."4*0

Com efeito, quem o viu confirma o estado de espírito em que o Reverendo se encontrava no momento da leitura desse documento. Simango estava desfeito. Sob o olhar de centenas de combatentes, de jornalistas internacionais e dos dignitários de Tanzânia e Zâmbia, o Reverendo gaguejava, aparentando que a terra lhe saía dos pés. Samora Machel, o juiz-mor do grande julgamento, no seu estilo peculiar, ia intimidando a vítima que matreiramente havia atraído a uma cilada:

Você é reaccionário não é?


Também é racista e tribalista, nós sabemos disso!


Foi você   quem   criou   aqueles problemas todos na Frelimo, nós sempre soubemos disso!481.

 

             Num terrorismo psicológico característico do nazismo, e frente a uma multidão embrutecida pela ignorância e pêlos actos de meia dúzia de pessoas que se arvoravam em legítimas defensoras das aspira­ções do povo moçambicano, os infelizes presos estavam sós e entre­gues ao diabo. A dor sangrava os corações. Perante Machel, um dos prisioneiros desata a chorar. Encharcado de lágrimas, prostra-se aos pés do grande líder, implorando clemência. Tratava-se de José Eugé­nio Zitha. Em Nachingweia, a Frelimo recorria ao ridículo para con­vencer a distraída assistência da justeza da sua luta: Zitha era acusado de ser espião ao serviço da PIDE no seio dos estudantes de medicina na então Universidade de Lourenço Marques, onde com apenas dois anos do ensino do primeiro grau havia sido autorizado a matricular-se pelo regime de Marcelo Caetano a fim de cursar medicina!482

Fazia-se assim o espectáculo mais humilhante possível contra alguns moçambicanos que pecaram apenas por pugnarem por uma li­berdade e por uma independência que as suas consciências lhes dita­vam.

Ironicamente, meses depois do travesti de justiça encenado em Nachingweia, já nas festividades da proclamação da independência do país, entre tantos que no seu estilo característico Machel batia nas cos­tas, o novo presidente de Moçambique aproximar-se-ia, no decurso do banquete, do velho combatente João Muchanga. Entre confabulações espaçadas de goles de vinho, em surdina, no ouvido do velho comba­tente, Machel manifesta a sua sincera dor pelo destino de Simango:

''Olha para esta felicidade camarada Muchanga. É pena pá. Estou a pensar no Simango. Aquele homem trabalhou tanto para este dia!... enfim, é a vida. Mas não há problemas, o homem está nas nossas mãos. É nosso"483.

         "Fiquei sem perceber o que Samora quis dizer. Mas pare­ceu-me que estava a querer dizer que Simango ia brevemente ser posto em liberdade e voltaria para o nosso convívio. Quando soube que o haviam morto, aí é que acreditei mesmo naquilo que alguns camaradas diziam. Machel e alguns camaradas cometiam crimes. Na altura da guerra, algumas mortes de pessoas que não concorda­vam com certas coisas pareciam acidentais. Poucos podiam falar delas como crimes, porque a maioria tinha medo e era difícil pro­var. Mas, e agora, depois da independência, porque é que manda­ram fazer isso? Uma pessoa que todos sabiam estar nas mãos das autoridades desaparece e nem ao povo e nem à família se diz algu­ma coisa. O que é que querem que as pessoas pensem? Simango não era uma pessoa qualquer para não se saber oficialmente o que se fez com ele. Eu não estudei muito, mas penso que é assim.".4*4

          Pouco se sabe dos acontecimentos em Nachingweia nos meses que se seguiram a apresentação pública dos prisioneiros políticos. Mas após a proclamação da independência de Moçambique a 25 de Junho de 1975, o governo tanzaniano via terminada a sua missão de dar gua­rida aos combatentes libertadores de Moçambique. Desde então, cabia às novas autoridades moçambicanas remover os seus bens e prisionei­ros do território tanzaniano para a terra liberta. Em Novembro, Simango e outros prisioneiros foram levados numa coluna de camiões militares, cobertos de lonas, para Tunduro. De seguida foram conduzidos para Mbaba-bay no extremo sudoeste da Tanzânia onde lhes aguardava uma fragata do ex-exército português que os levaria a Metangula, no Niassa. No dia seguinte à chegada a Metangula foram encaminhados para Lichinga e, desta cidade, para M'sawize. Posteriormente, seriam enca­minhados para o chamado campo de reeducação de M'telela onde fo­ram executados. Consumava-se, assim, o dito popular tsonga, "massassane afeia kwatini"485, e confirmava-se então a perca de uma batalha, pois, a guerra, essa, manteve-se em toda a sua plenitude acesa, e os que ficaram continuaram a cantar o "We shall overcome" até en­surdecer os tiranos. No início da década de noventa, como que confirmando a lendária tese de "adaptação a novas circunstâncias" de Sun Tsu486 os dirigentes da Frelimo passaram de ditadores a paladinos do plurarismo político e da concórdia. Eles é que mudavam, e não as suas vítimas.

Entretanto, acredita-se que em 1977, Kamuzu Banda tomou conhecimento das sevícias a que estavam sujeitos os homens que o seu governo havia ajudado a prender. As garantias dadas por Nqumaio de que após a ascensão de Moçambique a independência Simango e seus companheiros seriam postos em liberdade não foram cumpridas. Kamuzu Banda apercebeu-se, então, da natureza real da conspiração por si consentida. Teve ainda conhecimento dos contactos secretos que Nqumaio mantinha, tanto com Dar es-Salam como com o regime da Frelimo, então já sediado em Maputo. Segundo relatos de uma das fontes consultadas, o facto ter-lhe-á enfurecido a ponto de procurar ajustar contas com o seu ministro, acusando-o de um atentado golpista. Assim, Nqumaio viria a ser condenado à morte e executado ainda em 1977 pelo governo de Banda. O seu filho mais velho ter-se-á refugiado em Moçambique onde permaneceu por longos anos. A um outro se­nhor, Focus Gwede, então director da Special Branch malawiana a quem Banda igualmente acusou de conluio no plano do golpe e na detenção dos políticos moçambicanos, coube a sorte de uma condena­ção a prisão perpétua, pena que não cumpriria na íntegra graças aos ventos da democracia multipartidaria que sopraram sobre o Malawi no início da década de 90. Saiu da prisão com a subida ao poder de Bakili Muluzi487

Código Namuli: Do rapto em Nairobi a farsa jurídica

Há algumas curiosidades que não encontram resposta nos con­fusos acontecimentos ocorridos entre 1974 e 1977 na África Austral. A menos que os envolvidos na maioria das tramas da região na época se pronunciem sobre alguns contornos da história recente de Moçambique, tudo indica que muito ficará por esclarecer e, quiçá, re­gistar para a posterioridade.

Segundo se diz, a uma dada altura da sua permanência no Kenya, o padre Mateus Gwengere chegou a desconfiar de alguém relativa­mente ao rapto do Reverendo Uria Simango. Disso, Gwengere chegou a reportar por carta a Jorge Jardim, então refugiado algures na África ocidental. Na carta, Gwengere é citado como tendo afirmado que um "elemento de confiança, ou como tal considerado, se infiltrara no seu grupo, actuando para os serviços secretos da Frelimo."4™.

Dados posteriores colhidos no decurso das pesquisas para a elaboração deste livro, indicam que Gwengere não estava enganado. Contudo, curiosamente, meses mais tarde, a despeito de ter chegado a conclusão de que a Frelimo havia infliltrado espiões no seu grupo, Gwengere cairia numa cilada, ao que tudo indica, em que participou CMM489, o mesmo espião do enredo da captura de Simango.

Em Setembro de 1975, as autoridades tanzanianas e o governo da Frelimo em Moçambique assinaram um acordo económico e ideoló­gico490 que viria a reforçar o já obscuro campo das relações entre os dirigentes dos dois Estados vizinhos. Embora tardiamente explícito por via de uma assinatura formal, o acordo já implicitamente existia muito antes da independência política de Moçambique. A constante interfe­rência das autoridades tanzanianas na contenda entre os moçambicanos fazia parte desse plano tácito. Foi na sequência dessa colaboração que as autoridades tanzanianas prenderam, em Tanga, Miguel Murupa e igualmente perseguiram e prenderam no norte do território tanzaniano Raul Casal Ribeiro e sua esposa Lúcia Tangane. Todos, na companha de quatro filhos menores do casal Ribeiro, foram entregues a Frelimo em Nachingweia.

É igualmente conhecido o rapto do cidadão português Adelino Serras Pires e de dois familiares deste pelas autoridades tanzanianas. Com efeito, sem conhecimento das autoridades do seu país (Portugal) e sem nenhuma ordem jurídica expressa para o efeito, Pires foi extradi­tado do território tanzaniano para Moçambique em Agosto de 1984. Permaneceu sob desumanas condições por um longo período incomu­nicável na cadeia da Machava e, posteriormente, na cadeia da Xefina491.

             Um estudo recente492 igualmente fala da existência de um Conselho Revolucionário, organismo concebido pela Tanzânia, com jurisdição e responsabilidades mais amplas ao nível da África Austral e em cuja hierarquia pontificavam Julius Nyerere e Samora Machel.

Tal como o rapto de Uria Simango, a história do desapareci­mento do padre Mateus Pinho Gwengere é outro caso que ilustra o quão o regime samoriano em Moçambique não descansava enquanto não visse os seus históricos oponentes fora do baralho. Para isso dispendia milhares de contos na compra de consciências de homens despidos de moral.

             CMM era um jovem seminarista natural de Murraça na provín­cia de Sofala. Igualmente, como muitos outros jovens da sua idade na sua época, juntou-se à Frente de Libertação de Moçambique no início da segunda metade da década sessenta. Fez parte do grupo dos contestatários aos procedimentos de Mondlane. Isso ter-lhe-á valido a deportação para Rutanda em Julho de 1968. De Rutanda escapou na companhia de outros dois para o Kenya onde se fixaria até ao "golpe de Estado" de 25 de Abril em Portugal. Regressaria a Moçambique na companhia do Padre Gwengere que, igualmente, havia escapado para o território kenyano nos fins de 1972 na companhia de Willis Shultz493, depois da tentativa de assassinato de que fora alvo na paróquia da diocese de Tabora onde estava afecto. Juntamente com outros contestatários aos procedimentos da Frelimo em 1974, CMM desenvolveria a sua actividade política filiado no Partido de Coligação Nacional liderado pelo Rev. Uria Simango. De forma pouco clara, CMM passou de contestatário aos procedimentos da Frelimo a espião desse movimento no interior do PCN. Em Setembro ou Outubro de 1974, face à turbu­lência então instalada em Moçambique, empreenderia uma nova fuga de regresso a Nairobi, ao que tudo indica, na companhia do Padre Gwengere.

Enquanto uns eram publicamente apresentados em Nachingweia e planificado o seu encaminhamento à terra liberta, os tentáculos da Frelimo mantinham-se em plena actividade no estrangeiro. E, para além fronteiras, um dos alvos a abater era o Padre Mateus Pinho Gwengere.

Estando o padre em Nairobi depois da sua saída precipitada de Moçambique em 1974, seria meses depois aliciado a participar numa suposta reunião com alguns tanzanianos que se apresentaram como sendo opostos ao regime tanzaniano de Julius Nyerere. Para o efeito, segundo dados da nossa pesquisa, ninguém mais do que CMM garanti­ria o pleno êxito da operação, pois desde 1968 que Gwengere convivia com ele e, a lealdade étnica havia dissipado na mente do padre qual­quer réstia de desconfiança em relação ao jovem seminarista. Segundo fontes em Nairobi, raras eram as vezes em que se via o padre Gwengere sem que não estivesse na companhia de CMM ou de Wills Shultz. CMM era como que um secretário particular de Gwengere e Shultz um con­selheiro, assevera uma das fontes.

Na primeira quinzena de Outubro de 1976, um grupo de supos­tos opositores ao regime de Nyerere na Tanzânia far-se-ia a Nairobi para raptar o padre Mateus Gwengere e encaminhá-lo à Moçambique. Segundo fontes no território Kenyano, o plano, concertado entre as polícias políticas de Moçambique e da Tanzânia, contou com a colabo­ração do suposto espião, CMM. Com efeito, depois de preliminares consertações, na tarde de 11 de Outubro de 1976, Gwengere e CMM partiam de Adam ‘s Arcada494 na companhia de dois tanzanianos numa viatura para o que se supunha ir tratar de assuntos da luta comum de dois povos irmãos contra dois tiranos na África Austral - Julius Nyerere e Samora Machel. Segundo aqueles tanzanianos, "Machel era filho de Nyerere e sem Nyerere ele não podia permanecer por muito tempo no poder em Moçambique". Era, portanto, "preciso cortar a raiz para fazer secar a árvore"495. Um outro refugiado moçambicano, que na  circunstância se encontrava com o grupo, desconfiado das atitudes de CMM e do grupo dos tanzanianos, teria sem sucesso alertado o padre para se acautelar, pois a atitude ostensiva com que o grupo tratava de assuntos de natureza política era demasiadamente suspeita para se po­der confiar nos seus propósitos. Contudo, a despeito deste alerta, Gwengere estava profundamente seguro de que nada de contrário aconteceria, pois CMM era o seu homem de confiança. A existir qual­quer perigo certamente que este tê-lo-ia alertado a tempo de não se aproximar daqueles tanzanianos. O precavido homem ficaria assim de fora e o padre partiria com os três, ostensivamente para uma reunião com exilados tanzanianos em Mombassa. Só que a viatura em que se­guiam, pertencente a um funcionário da representação tanzaniana na Comunidade dos Países da África Ocidental em Nairobi, rumou em direcção a Namanga na fronteira entre o Kenya e a Tanzânia. Tanto CMM como o padre nunca mais seriam vistos nos círculos dos refugi­ados moçambicanos no Kenya.

Tudo indica que o Padre Mateus Gwengere não entrou vivo em Moçambique. Terá sido abatido numa tentativa de fuga quando já era conduzido em direcção à fronteira da Tanzânia com Moçambique. Os seus restos mortais seriam transportados na clandestinidade para a mar­gem moçambicana do rio Rovuma, onde foram sepultados de qualquer maneira496.

              A questão de Simango e outros presos políticos em Moçambique, esteve sempre envolto num manto espesso de grande secretismo, uma característica de governos totalitários. Pouco se sabe com exactidão que vida levavam os presos políticos no centro de M'telela. Contudo, particularmente para o Reverendo Simango e sua esposa, é salutar o gesto que se lhes dispensou de, ao menos, corresponderem com os filhos, então aos cuidados dos tios na cidade da Beira. Tanto em Nachingweia como no Niassa, o casal Simango deu notícias do seu estado de saúde por via de cartas. Simango lembrava-se de cor do endereço (caixa postal 396) da Igreja de Cristo Ramo de Manica e Sofala. Sabia que por via dessa caixa postal era possível trocar corres­pondência com os filhos e com o seu irmão Elijah. Como os seus carcereiros lhe haviam garantido que os filhos estavam bem e aos cuidados dos tios na cidade da Beira, Simango pediu imediatamente que lhe per­mitissem corresponder-se com os garotos. Encaminhada a preocupa­ção, num gesto impar de humanismo, a chefia da Frelimo consentiu. Nos fins de Novembro de 1974, Simango deu a primeira notícia atra­vés duma carta cuja recepção foi acusada pelo filho Lutero. Pronta­mente, Lutero respondeu ao pai nos princípios de Dezembro, facto que sobremaneira o tranquilizou. Já em Moçambique, Simango não sabia em que local de Niassa se encontrava, pelo que no cabeçalho de cada carta, apenas escrevia: Província de Niassa. O conteúdo das cartas reflectia o grau de controlo e censura a que estava sujeita toda a cor­respondência de e para o campo. Tanto o Reverendo como a esposa limitavam-se apenas a dizer que estavam bem de saúde, solicitando de seguida que Lutero lhes falasse dos seus estudos e dos irmãos. As res­postas às cartas vindas de Niassa, eram postadas pelo filho na cidade da Beira para um endereço que, mais tarde, se viu tratar-se da caixa postal do Governo Provincial de Niassa. JM., então funcionário ligado a CIM no governo de Niassa, afirmaria mais tarde que toda a corres­pondência era violada em Lichinga. Como Lutero escrevesse em In­glês, cabia a um indivíduo de nome DD lê-las e efectuar a respectiva tradução. JM confirma que Simango e Celina receberam algumas des­sas cartas497. A última carta de Simango para o filho é datada de 15 de Fevereiro de 1976. Celina, por sua vez, escreveria a sua última carta aos filhos no dia 12 de Fevereiro de 1981, mas, em nenhuma delas a senhora fala do marido a partir de Abril de 1976. Diz apenas que está bem e recomenda aos filhos que estudem muito.

             De Março de 1981 em diante o silêncio foi total, o que levou tanto os filhos como a maioria dos familiares a desconfiar de que algo de sinistro se estava a passar. Em 1982, Jorge Costa, ex-director nacio­nal de segurança, dissociar-se-ia do regime indo procurar refúgio e protecção na África do Sul. Foi a partir daí que a execução sumária dos prisioneiros políticos moçambicanos viria a ser conhecida. Foi ainda desvendado e relatado o plano do governo da Frelimo em forjar um documento visando dar credibilidade jurídica à pena capital aplicada a Simango e aos seus companheiros à revelia dos tribunais. Com efeito, a revista sul africana Scope publicou a 11 de Fevereiro de 1983 a trans­crição do documento que daria início ao macabro plano, tendo a atestá-lo a assinatura do então Ministro da Segurança, Jacinto Veloso. Eis, na página a seguir, a transcrição do referido documento:

MINISTÉRIO DA SEGURANÇA Ordem de Acção n. 5/80

De: DI

Para: DB e o Chefe da BO

No espírito dos costumes, usos e tradições da luta armada de liber­tação nacional, o Comité Político Permanente da Frelimo julgou e condenou a morte por fuzilamento os seguintes desertores e traidores do povo e da causa nacional, que foram já executados:

Uria Simango

Lázaro Nkavandame Júlio Razão Nihia Mateus Gwengere

Joana Simeão

Paulo Gumane

De forma a prevenir possíveis reacções negativas, internas ou internacionais que possam surgir em consequência da execução desses contra-revolucionários, o Comité Político Permanente decidiu publicar este acto como uma decisão revolucionária do partido Frelimo, e não como um acto jurídico.

É portanto necessário compilar um dossier declarando a comple­ta história criminal desses indivíduos, bem como suas confissões aos ele­mentos da DD/SI que os interrogaram, declarações de testemunhas, au­tos do processo e sentença.

Para além desse dossier, deve se fazer um comunicado que será lido pelo camarada Comandante em Chefe onde ele anunciará a execu­ção dos acima mencionados contra-revolucionários.

Foi decidido nomear um Comité para compilar o dossier e pre­parar o comunicado. O camarada comandante em chefe decidiu que o acima mencionado Comité será encabeçado pelo camarada SÉRGIO VIEIRA, e terá como membros adicionais os camaradas OSCAR MONTEIRO, JOSÉ JÚLIO DE ANDRADE, MATIAS XAVIER e JORGE COSTA.

A luta continua

Maputo, 29 H 180

O Ministro da Segurança

JACINTO VELOSO

Mas as discrepâncias nas informações à volta dos presos políti­cos, perturbam qualquer investigador atento dada a escassez de uma informação oficial e o perigo de entrevistar directamente os implicados no crime. De acordo com outras fontes:

"(...) em Setembro de 1982, Jorge Costa, ex-Director Nacio­nal de Segurança (Snasp) revelou que em Junho de 1980, Sérgio Vieira, na altura governador do Banco de Moçambique, contactou-o assim como a Matias Xavier, outro membro do Snasp, informan­do-os de que o governo decidira forjar um processo-crime legalizan­do o fuzilamento dos presos políticos. O processo-crime seria redigi­do por Vieira, Costa e Matias, tendo na altura Vieira entregue a estes dois um dossier com a designação NAMUL1, contendo pormenores sobre todos os executados. Castro Lopo, chefe do Departamento Ju­rídico do Snasp foi contactado por Matias Xavier a fim de emprestar um tom jurídico ao referido processo-crime".

O mesmo Jorge Costa revelaria também que:

"No dia 11 de Outubro de 1978, durante uma recepção assi­nalando o terceiro aniversário da fundação do Snasp, o Comissário Político deste serviço, major Abel Assikala, revelou que se havia des­locado a Cabo Delgado em 1977 tendo na altura executado diversos presos políticos, incluindo o Reverendo Simango, Paulo Gumane, Mateus Gwengere, Joana Simeão, Narciso Mbule, Basílio Banda, Lázaro Nkavandame e Júlio Razão de Nilia. Ainda segundo Costa, as ordens de execução dos presos partiram do Vice-Ministro da Se­gurança, Salésio Nalyambipano representante da ala dos ”veteranos” dentro do aparelho de segurança do regime"49*

Mas a estação emissora Voz da África Livre, num comentário repetidamente transmitido em Junho de 1982, afirmaria que em 1980 o Dr. Hermenegildo Cepeda Gamito, homem de mão do regime, com assento num rol de empresas, e também no parlamento (quer na versão mono como na pluripartidária) fora quem havia redigido o texto final da farsa jurídica que o regime se preparava para encenar. A sentença teria sido assinada por três destacados quadros ligados a defesa e segu­rança do regime. O mesmo comentário refere ainda que a execução dos presos dera-se junto ao rio Namuli em Niassa.
São claras as discrepâncias nas revelações acima descritas. En­quanto o Major Assikala é citado como tendo dito que a execução teve lugar em Cabo Delgado, a Voz da África Livre menciona a província do Niassa como tendo sido o local da execução. Pessoas conhecedoras desta província desconhecem a existência dum rio Namuli na referida província. No entanto, durante a luta de independência nacional os guerrilheiros da Frelimo dispunham duma base, designada por Namuli, situada no distrito de Palma na província de Cabo Delgado. Desconhe­ce-se se o dossier "Namuli" está relacionado com a referida base. Pos­sivelmente, apenas alguns dos presos políticos terão sido executados na base Namuli. Em Moçambique existem os montes Namuli, mas es­tes situam-se na província da Zambézia.
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