quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Moçambique: Massacre de Wiriyamu segundo um sobrevivente

 

12 de Dezembro, 2012por Luís Andrade de Sá e António Silva (fotos), agência Lusa
Não é por terem passado 40 anos que parece que as coisas mudaram em Wiriyamu: não há eletricidade nem água e a cidade de Tete, a 30 quilómetros, ligada por uma picada de terra batida, continua insuportavelmente distante.“E fome existe, também”, acrescenta Vinte Pacanet Gandar, 63 anos, camponês de Wiriyamu. E, para que não restem dúvidas, repete: “E fome”.
A quase permanente seca na região, no centro de Moçambique, afeta a produção de mapira e amendoim, que todos cultivam para consumo próprio, e o pouco dinheiro, as raras moedas que usam para comprarem óleo ou sementes, obtêm-se com a venda de carvão na cidade.
Luís Wiriyamu, 27 anos, neto do homem que deu o nome à aldeia, vive de apanhar lenha que, depois, transforma em carvão e vende na berma na estrada – “Não há mais nada para fazer aqui”, queixa-se.
A escola primária, um painel solar numa pequena venda e os camiões de uma mineira australiana, a caminho de mais um projecto nas imediações, destacam-se na paisagem de casas de paredes de barro e telhados de colmo, em veredas de terra batida, por entre embondeiros e mato cerrado, por onde meninas carregam à cabeça feixes de lenha que vão alimentar o fogo com que mulheres cozinham o almoço.
Vinte Pacanet Gandar, que se expressa num português desenvolto, foi um dos sobreviventes do massacre de Wiriyamu perpetrado naquela aldeia por tropas portuguesas, no dia 16 de Dezembro de 1972, que vitimou centenas de pessoas e, segundo historiadores, mudou o rumo da guerra colonial.
A sua condição de sobrevivente granjeou-lhe fama, mas também a construção de uma narrativa, quase de um fôlego, do massacre cometido por tropas especiais portuguesas.
“Surpresamente, apareceram cinco helicópteros e dois jactos que começaram a bombardear lá fora, e, então, aterraram na aldeia para os soldados saírem”, conta Vinte, que tinha, então, 23 anos.
A “Operação Marosca” tivera como motivos próximos a morte, dois dias antes, de seis militares em Tete, e disparos, na zona, contra um avião civil, sinais para as chefias militares de que a Frelimo actuava no centro da colónia, com o apoio da população.
“Cercaram a nossa aldeia. Começaram a queimar o quê? As casas. Levaram as pessoas para acumular lá fora. E começaram a perguntar: ‘Vocês aí, não conhecem os turras? E nós falávamos: ‘Não, não conhecemos’”, prossegue o camponês.
As sucessivas lideranças militares portuguesas em Moçambique tinham encarado de forma diferente o “problema” da Frelimo e a guerra de libertação iniciada em 1962, e, no início, apenas circunscrita ao norte do país.
Comandante militar desde 1969, Kaúlza de Arriaga inova relativamente aos seus antecessores, ao usar intensivamente meios aéreos e tropas especiais, o que fragiliza a Frelimo no norte, obrigando-a a deslocar-se para o centro, onde intensifica essa frente de guerra e se ataca, até, colonos portugueses.
“Mas eles disseram: ‘Não, não, aqui há turras e vocês estão a tirar comida para dar aos turras para os turras vir matar a nós, lá na estrada. Por isso, vocês, hoje, não vão viver nada, vão ser mortos aqui’”, continua Vinte, dando a voz aos militares portugueses.
A zona de Wiriyamu estava a ser batida desde o dia 14 por aviões militares e agentes da PIDE/DGS, que procuravam uma base da Frelimo com cerca de 300 guerrilheiros.
Depois, tropas especiais entram em Wiriyamu, Juwau e Chawola, todas aldeias na mesma zona, e, a 16 de dezembro, recolhem aos quartéis, deixando um rasto de destruição, hoje evocada num monumento que guarda caveiras e ossadas de alguns dos “mais de 450 mortos”.
Vinte safou-se, correndo para o mato e evitando os tiros que disparavam contra ele, mas a sua família foi quase toda dizimada: “Quem morreu? O meu pai, chamado Guspiga, meu avô, Jemusse, Mabalata, Manyate … são muitos … Tuma, Capitone… são muitos”.
Alguns feridos abrigam-se no hospital de Tete e denunciam o massacre a missionários espanhóis. No início de 1973, a Cruz Vermelha e um médico português visitam o local, em junho do mesmo ano, o escândalo chega à imprensa internacional, e Portugal, que, até aí, tinha negado os acontecimentos, acabará por admitir “excessos” das suas tropas.
Dois anos depois de a notícia ser capa do ‘Times’, de Londres, Moçambique torna-se independente e, 40 após o massacre, só por distracção alguém pode achar que continua tudo igual em Wiriyamu.
“Antigamente, não tínhamos escola. As pessoas que têm idade como a minha não falam português, aqui, mas, hoje, as nossas crianças estão a estudar e, quando acabarem, vão fazer bom trabalho”, prevê Vinte Pacanet Gandar, o camponês de Wiriyamu que sobreviveu ao massacre.
Lusa/SOL

Sem comentários: