segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Dom Eurico dias Nogueira

 
Eurico Dias Nogueira, nasceu em Dornelas do Zêzere, quando decorria o ano de 1923. Naquele dia 6 de Março, nascia o maior vulto da Cultura Pampilhosense. Filho de uma família destacada na aldeia, cedo se revelou para a Igreja.
Ordenado sacerdote em 22 de Dezembro de 1945, veio a doutorar-se em Direito Canónico, pela Universidade Gregoriana de Roma no dia 3 de Julho de 1948. Mas não só nas ciências da Igreja se destacou. A 5 de Julho de 1955, licenciou-se em Direito Civil na Universidade de Coimbra.
O rumo definitivo da sua vida sacerdotal, é delineado em 10 de Julho de 1964, quando é nomeado Bispo de Vila Cabral. No entanto a ordenação episcopal apenas acontece a 6 de Dezembro desse mesmo ano.
Em 1972, ano em que é nomeado Bispo de Sá da Bandeira, no dia 19 de Fevereiro, inicia-se um ciclo novo na vida deste homem das Serras da Pampilhosa. Tal ciclo tem o seu momento alto em 1974, quando em representação do Episcopado Angolano, participa no Sínodo dos Bispos.
Reconhecido pelo seu valor, é nomeado no dia 5 de Novembro de 1977, Arcebispo metropolita de Braga e Primaz das Espanhas lugar que resigna a 18 de Agosto de 1999.
A sua actividade cultural, é bem representativa do vigor que Dom Eurico Dias Nogueira deu à sua existência. Com cerca de uma vintena de obras publicadas, e um rol enorme de artigos em revistas e jornais, ainda encontrou tempo para traduzir algumas obras, tais como "Mistica da Perseguição".
Politicamente foi sempre uma figura incómoda, quer se trate de Presidentes como o Mário Soares, a quem chamou ateu, ou mesmo ditaduras como a do Dr. Oliveira Salazar, onde Dom Eurico se Revelou contra a falta de liberdade de imprensa.
É este o Homem que nunca receou as suas raízes, e tão pouco esquece as gentes das Serras, quando as injustiças surgem, venham elas de onde vierem.
Luís Gonçalves
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DADOS BIOGRÁFICOS
José Pedro Castanheira (Cortesia do Jornal Expresso)


D. Eurico Dias Nogueira deixou, em consequência da idade, as funções de Arcebispo de Braga, passando a residir no Seminário de Santiago, nesta Cidade, na qualidade de Arcebispo Emérito.
Nascido em Dornelas do Zêzere, Coimbra, em 6 de Março de 1923, frequentou o Seminário de Coimbra de 1934 a 1944, sendo ordenado sacerdote em 22 de Dezembro de 1945.
De 1945 a 1948 frequentou em Roma a Universidade Gregoriana, onde se laureou em Direito Canónico, defendendo a tese sobre «A condição jurídica das Missões Católicas no Ultramar Português».
Frequentou a Universidade de Coimbra de 1950 a 1956, licenciando-se em Direito Civil com o curso complementar de Ciências Político-Económicas, apresentando então um trabalho sobre «O Padroado de Portugal sobre as igrejas do Ultramar».
Em Fevereiro de 1965 foi nomeado Promotor da Justiça, Defensor do Vínculo e Consultor Jurídico da Cúria Diocesana de Coimbra.
Em 19 de Março de 1965 foi nomeado Cónego da Sé daquela Diocese.
Em 10 de Julho de 1964 foi nomeado Bispo de Vila Cabral, em Moçambique, onde esteve durante oito anos, tendo recebido a ordenação episcopal na Sé de Coimbra em 6 de Dezembro de 1964.Tomou posse da diocese, por procuração, em 6 de Setembro de 1964 e deu entrada nela em 1 de Janeiro de 1965.
Transferido depois para Sá da Bandeira, Angola, deu entrada nessa Diocese em 1 de Julho de 1972. Esteve ali durante cinco nos.
Em 17 de Fevereiro de 1977 o Santo Padre aceitou a sua resignação de Bispo daquela Diocese e em 5 de Novembro do mesmo ano de 1977 foi tornada pública a sua nomeação para Arcebispo de Braga.
Tendo solicitado a resignação, foi tornada publica a nomeação do seu sucessor em 5 de Junho de 1999, passando então a governar a Diocese até à posse de D. Jorge Ortiga como Administrador Apostólico.
Começou a sua actividade sacerdotal como prefeito e professor no Seminário Menor da Figueira da Foz.
Foi professo do Seminário Maior de Coimbra, da Escola do Magistério Primário e da Escola Normal Social da mesma Cidade.
Desempenhou o cargo de assistente eclesiástico de vários organismos da Acção Católica – JCF, JECF, JICF, JUCF e JC.
Foi assistente do CADC-Centro Académico da Democracia Cristã (de 1956 a 1963), capelão da Universidade e Chefe de Redacção do semanário «Correio de Coimbra».
Foi assistente interino da UCIDT e o principal realizador da ideia das Semanas Nacionais do Direito Canónico.
Na Conferência Episcopal Portuguesa foi membro do Conselho Permanente, Presidente da Comissão para as Migrações e Turismo, Presidente da Comissão para as Missões.
Foi Consultor da Comissão Pontifícia para a Pastoral das Migrações e Turismo.
Em 21 de Março de 1986 tomou posse do cargo de membro do Senado da Universidade do Minho.
É doutor honoris causa pela Universidade do Minho (17 de Fevereiro de 1990), membro da Academia Portuguesa da História (4 de Maio de 1990), Grande Oficial da Ordem Equestre do Santo Sepulcro (3 de Março de 1990), Grã-Cruz de Mérito da Ordem de Malta (19 de Outubro de 1996).
Nomeou o Tribunal que deu início ao processo de canonização de Frei Bernardo de Vasconcelos (4 de Julho de 1983). Presidiu à reabertura do processo de canonização de D. Frei Bartolomeu dos Mártires (2 de Março de 1989). Instituiu o Tribunal diocesano para colaborar no processo de canonização do fundador da «Obra de Santa Zita» (10 de Julho de 1990). Empossou o Tribunal encarregado de organizar o processo de canonização do P. Abílio Gomes Correia (28 de Setembro de 1997).
Promoveu a reforma do Calendário Litúrgico próprio de Braga e a publicação dos textos para a Missa e para a Liturgia das Horas.
Erigiu o Instituto Diocesano de Apoio ao Clero (IDAC), em30 de Abril de 1994.
Promoveu a realização do 40º Sínodo Diocesano de Braga.
Merece particular destaque a sua actividade ao serviço do Ecumenismo.
Assistiu a parte do Vaticano II, tendo participado nas sessões conciliares posteriores à sua nomeação episcopal.
Tem tido frequentes e oportunas intervenções na Comunicação Social. Fez parte da equipa de comentaristas da TSF. Em 7 de Maio de 1996 recebeu da SIC o «prémio da má-língua».
Colaborou em numerosas revistas e jornais e publicou diversas obras, de que desatacamos: «De Jurisdictione Supleta» (1949), «A Igreja e o Estado em Portugal» (1959), as teses acima referidas, «Reflexões» para a Juventude Católica Universitária (1964), «Missão em Moçambique» (1970), «Quatro Homilias» (28 de Outubro de 1978), «Homilias, Reflexões e Entrevistas» (27 de Dezembro de 1979), «Homilias Controversas – Antes e Depois» (Dezembro de 1981), «Desenvolvimento Regional e Fé Cristã» (Agosto de 1986), «Jubileu Episcopal» (Dezembro de 1990), «Episódios da minha missão em África» (Março de 1995), «Jubileu Sacerdotal» (Dezembro de 1995).
Dos principais documentos publicados no início do seu pontificado salientam-se a carta pastoral sobre os problemas socio-religiosos do Niassa Português (6 de Setembro de 1965) e a Carta fraterna aos Muçulmanos da sua Diocese (6 de Setembro de 1966).
Promoveu importantes obras no Seminário de Nossa Senhora da Conceição e a recuperação do Seminário de Santiago.
Promoveu a criação do «Projecto Homem», em Braga (1991), para recuperação de toxicodependentes.
Criou em 19 de Fevereiro de 1989 o Instituto de História e Arte Cristã (IHAC).
O balanço dos primeiros vinte anos à frente da arquidiocese de Braga encontra-se no livro de A. Sílvio Couto, «D. Eurico Nogueira --- Horizontes...». Quanto ao que foi a actividade episcopal de D. Eurico Nogueira nas duas últimas décadas recomenda-se também a leitura de duas das suas homilias: uma proferida por ocasião da última Quinta-Feira Santa, na Sé de Braga, (ver a revista «Acção Católica» de Abril de 1999) e outra de despedida na Conferência Episcopal, em Fátima (Idem, Maio de 1999).


DOM EURICO NO ESTADO NOVO


1958
O país inteiro vive em alvoroço. Em Junho, a campanha eleitoral do general Humberto Delgado acorda os cidadãos de uma profunda letargia e faz tremer a ditadura. Em Julho, no rescaldo das eleições, o bispo do Porto dirige a famosa carta a Salazar - um gesto de grande coragem e frontalidade, que há-de custar a D. António Ferreira Gomes um exílio de dez anos. Nessa altura, Eurico Dias Nogueira é um jovem sacerdote de 35 anos, mas com apreciável currículo. Natural de Dornelas do Zêzere, fora ordenado padre em 1945; doutorado em Direito Canónico pela Universidade Gregoriana de Roma, licenciara-se em Direito na Universidade de Coimbra, de que é o capelão, ao mesmo tempo que exerce as funções de assistente eclesiástico do Centro Académico de Democracia Cristã.
À data da divulgação do «manifesto» do bispo do Porto, o padre Eurico está na Áustria, no Congresso da Pax Romana, um movimento católico internacional onde pontifica Maria de Lurdes Pintasilgo (futura primeira-ministra de Portugal). Regressado à «sua» Coimbra, toma conhecimento do texto de D. António, que conhece pessoalmente e a quem se apressa a escrever uma carta. Datada de 17 de Setembro de 1958, é apanhada pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), que faz uma fotocópia do texto e do envelope - constituem os primeiros documentos existentes no volumoso processo que a polícia política organizou sobre o futuro arcebispo de Braga.
O padre Eurico manifesta «a profunda admiração que desde há muito consagro a V. Exª. Revmª., pela profundidade, desassombro e oportunidade das suas mensagens periódicas ao público intelectual português». O capelão da Universidade, porém, não tem ilusões quanto ao desfecho de semelhante atitude: «Receio que a voz de V. Exª. Revmª não seja ouvida e acatada tão depressa como seria necessário, o que poderá trazer trágicas consequências e bem assim, que ela lhe traga dissabores que são sempre o salário amargo mas heróico de quem luta pela Verdade e pela Justiça». Ainda assim, está convicto de que a carta de D. António, «se não foi escutada na sua primeira formulação, há-de ouvir-se, com clara intensidade, sob a forma de eco, volvido não muito tempo. Creia que a juventude, inteligente e generosa mas conformista, com quem tenho de viver dia a dia, por 'dever de ofício', bebe avidamente a doutrinação do Bispo do Porto. Confiamos em Deus que esta jamais nos falte».
1964
Durante os seis anos seguintes, a polícia política desinteressa-se do padre Eurico, que em Dezembro de 1964 é ordenado bispo. O Vaticano atribui-lhe uma difícil missão: abrir uma nova diocese em Moçambique, em Vila Cabral (que depois da independência passará a chamar-se Lichinga), no Noroeste da colónia. É uma vasta região, de 120 mil km2, com apenas 270 mil habitantes, de maioria muçulmana. A missão é duplamente espinhosa, já que desde Setembro que a guerra chegou àquela colónia e ao lago Niassa, conduzida pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).
Sagrado bispo, volta a ser referenciado pela PIDE. A causa é um recorte do jornal «La Mañana», de Montevideo, com uma notícia da AP, difundida a partir de Lisboa. Diz a agência norte-americana que «um bispo português pediu menos censura governamental nos meios de Informação e liberdade de imprensa». Falando numa homilia que assinalou em Lisboa o aniversário do diário católico «Novidades», o bispo jurista solicitou «uma lei clara e boa» para garantir a liberdade de informação, pois só assim «poderá a imprensa informar a verdade».
1965
A partir deste recorte, a direcção da PIDE faz um primeiro pedido ao Serviço de Ficheiros sobre as informações existentes a respeito do bispo, que, em Janeiro, volta a ser notícia. Baseado de novo na AP, o diário norte-americano «Evening Star» dá conta do protesto «de certos círculos católicos indignados com a proibição de algumas notícias» relacionadas com a visita do Papa Paulo VI à Índia, para o Congresso Eucarístico de Bombaim. O jornal acentua que «o primeiro discurso diferindo da atitude do Governo proveio de um bispo», que denunciou «uma ordem oficial» proibindo «os jornais de noticiarem livremente a viagem» pontifícia. É a embaixada de Portugal em Washington que faz chegar o recorte do jornal ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), que, solícito, o remete para a PIDE.
Por essa altura, já D. Eurico está instalado na novíssima diocese de Vila Cabral, no Niassa, onde fizera questão de chegar simbolicamente no dia 1 de Janeiro. No mês seguinte, o responsável da PIDE em Lourenço Marques (actual Maputo) alerta Lisboa: «O Sr. Bispo de Vila Cabral (...) tem patenteado atitudes de hostilidade, censura e pouco reconhecimento para com o Governo.» Surpreendido com a desfaçatez do novel bispo, o director-geral da PIDE, major Silva Pais, comunica a novidade à Presidência do Conselho e ao Ministério do Ultramar.
Em Abril, a guerra já incendeia o distrito do Niassa, que tem por capital a cidadezinha de Vila Cabral. A guerrilha alarga-se a todo o Norte. O quadro é descrito pelo prelado, num tom muito crítico, em carta ao arcebispo de Lourenço Marques, D. Custódio Alvim Pereira: «Os militares começam por aqui a morrer às mãos dos terroristas. Mas ninguém lhes pode acudir rapidamente porque ou não há estradas, ou não dão passagem por falta de pontes e entretanto constrói-se a auto-estrada para a Matola, a ponte turística para a ilha de Moçambique... A tragédia e a possível perda da Província hão-de dar-se pelos Distritos de Cabo Delgado e Niassa, criminosamente abandonados pelas Autoridades Administrativas. Estas não gostam que se fale, mas há silêncios que constituem conivência nos crimes alheios.»
Ao longo de quatro páginas, perpassa um sentimento de revolta contra o que designa de «a desgraça» que veio encontrar no Niassa: «Eu por aqui continuo a aturar um Governador de Distrito que não possui o mínimo de 'savoir faire' (para não dizer coisa pior)» - referência ao então major Costa Matos, conhecido por «petit Napoleon»... As queixas estendem-se ao governador-geral de Moçambique, o general Costa Almeida, cujas «promessas (...) já estão a tardar demasiado». A carta prossegue: «Talvez um dia a minha voz se faça ouvir e cause escândalo nos homens da política bem instalados na vida ou facilmente acomodáveis. Não vim para o Niassa para passar o tempo a tomar café com os 'grandes' da terra e chá com as respectivas esposas, como talvez eles desejassem (...) Se nada aqui puder fazer, hei-de um dia explicar à Nação o motivo dos meus forçados braços caídos.»
Em 21 de Maio, o «Diário de Moçambique» é suspenso pelo governador-geral. Órgão da diocese da Beira, fundado por D. Sebastião Soares de Resende, o jornal é uma voz prestigiada e teimosamente independente. A homilia deste bispo, dita na Sé de Lourenço Marques, no 25º aniversário da Concordata e do Acordo Missionário, fora publicada na íntegra, não acatando os cortes da censura. Um despacho do governador suspende o diário por dez dias. É mais uma acha no conflito entre o bispo da Beira e o poder colonial.
D. Eurico coloca-se de imediato ao lado de D. Sebastião e protesta junto do governador: «No meu humilde parecer, tal determinação contraria frontalmente não só o espírito mas a própria letra do artigo II da Concordata vigente.» O texto é enérgico: «O facto parece tanto mais estranho e sintomático quanto é certo que a censura se mostra escandalosamente benévola quando se trata de enxovalhar publicamente» o bispo da Beira «e denegrir a actividade missionária em geral». Ao núncio apostólico em Lisboa (designação oficial do embaixador da Santa Sé) e aos demais bispos de Moçambique, D. Eurico envia uma carta justificativa: «Pareceu-me que seria uma lamentável abdicação e trair a independência da Igreja calar num momento destes.» Ao núncio remete, a 4 de Junho, uma nova carta, violada de forma grosseira pelas autoridades.
Inconformado com a suspensão do jornal, D. Eurico contacta com a diocese da Beira. Na ausência de D. Sebastião, dirige-se ao vigário-geral, monsenhor Manuel Barbosa. Em anexo, envia um projecto de texto dos bispos de Moçambique, de solidariedade para com o colega da Beira, alvo de soezes ataques por parte de um jornal da metrópole. Os bispos aproveitam para elogiar D. Sebastião, «grande prelado e grande português, a quem a evangelização e promoção social de Moçambique muito devem». D. Eurico propõe a publicação do texto de desagravo no jornal «Novidades» e na imprensa católica da província e sugere que se recorra da suspensão do diário para o Supremo Tribunal Administrativo. «Talvez não fosse mau, no caso de não lhe ser dada satisfação pelo recurso hierárquico.» Saudoso dos seus tempos de jurista em Coimbra, voluntaria-se: «Muito gostaria de servir de advogado nesta causa e naquele tribunal, se isso fosse possível...»
A 10 de Junho - Dia de Portugal -, o arcebispo de Lourenço Marques envia para o Niassa três documentos. Um deles é uma exposição confidencial do episcopado ao governador, que exibe alguma divisão dos bispos quanto à suspensão do «Diário de Moçambique». Outro, é um texto da Comissão Litúrgica Interdiocesana, que confirma a posição extremamente conservadora do episcopado, mesmo em termos pastorais. «Quanto à Santa Missa», lê-se no texto, «a Comissão determinou que não se adoptassem as línguas nativas, por quatro votos contra um».
Em Agosto, e enquanto a PIDE abre uma subdelegação no Niassa, o bispo desloca-se a Roma, para participar em mais uma sessão do Concílio Vaticano II. Escritas de Vila Cabral, a polícia intercepta as cartas endereçadas ao reitor e vice-reitor do Pontifício Colégio Português em Roma, monsenhores João António da Silva Saraiva e Manuel Cardoso de Carvalho, respectivamente. A escala em Lisboa é detectada pelo agente da PIDE em serviço na Portela: «Em cumprimento do determinado superiormente, tenho a honra de informar V. Exª de que hoje, dia 23, pelas 02.20 horas, procedente de Luanda, desembarcou neste Aeroporto, num avião dos 'TAP', sua Exª Revª o Bispo de Vila Cabral, D. Eurico Dias Nogueira.»
De passagem por Coimbra, descansa uns dias no paço episcopal, para onde lhe escreve o padre Jorge Camejo, um dos seus dois secretários no Niassa. Más notícias: «Enviei hoje para si às 8h da manhã um telegrama, mas julgo que não lhe chegará às mãos. Isto está a complicar-se.» O padre Camejo conta que «a Missão de Nova Coimbra foi bombardeada» pela própria aviação portuguesa, que causou alguns mortos e feridos. «Oficialmente ninguém comunicou nada, no quartel informaram-me ter sido um engano da aviação (...) Não sei que pensar, no entanto, quero-me convencer que foi um engano.» A finalizar, a mesma dúvida inicial: «Não sei se esta carta lhe chegará às mãos.»
A sessão conciliar prolonga-se por vários meses. As cartas que chegam de Vila Cabral são sempre preocupantes. Uma delas, de autor não identificado, opta pelo sentido figurado: «Hoje partiu-se mais um ovo na estrada de Managulo, a cerca de 20 km daqui. São mercadorias que dificultam imenso as viagens por esta estrada, tornando-se até impossíveis, a não ser com pessoal impermeabilizado, pois de contrário há granada pela certa.»
Outra missiva é do padre Aldo Monjiano, superior dos Padres da Consolata (e actual bispo de Roraima, no Brasil), que relata uma visita do governador. «Tinha tomado vulto a ideia de colocar uma pequena guarnição de militares na Missão de Unango. A ideia naturalmente vinha dos militares e nós estávamos com receio que se concretizasse. (...) Conseguiu-se que o Sr. Governador Geral levasse os militares a mudar de opinião e deixar sossegada a Missão.»
Outra carta é dos padres Joel Carlos e Jorge Camejo, secretários do bispo, que contam que na missão de Nova Coimbra estão «acampadas em palhotas de capim ao redor da casa dos padres mais de 700 pessoas». Um dos sacerdotes visitou «um acampamento de mato onde o povo está guardado pela Frelimo depois de uma acção da tropa. Fui recolher os cadáveres e transportar as velhas e feridos. Todos eles gente do povo. Como vivem no mato, as privações, as doenças, a cadeia e chicote, etc. etc. como que são dominados pelos terroristas só visto... A situação tem melhorado segundo creio, com a chegada de mais tropa».
Dias depois, os dois secretários lamentam a morte, a tiro de pistola, de um velho líder muçulmano e colaborador da diocese, pela Frelimo. «O nosso amigo Ludmila lá se foi... custou-me muito a morte do velhote.»
1966
O bispo está de volta ao Niassa em Janeiro. Em carta ao padre João Ribeiro Jorge, em Coimbra, descreve a situação que encontrou, cinco meses volvidos: «Há outro tipo de clima que encontrei, bastante mudado para pior. E não se prevê melhoria para os tempos mais próximos. Pelo contrário.» A passagem seguinte é sublinhada a vermelho pela PIDE: «Já fui visitar a Missão de Unango onde vieram acolher-se multidões de foragidos (praticamente todos muçulmanos). Em breve irei a Nova Coimbra e outras Missões. Embora não sejam isentas de riscos estas viagens, não devo deixar de as fazer. Ide rezando pelos Missionários do Niassa, aos quais não faltam trabalhos e dificuldades (que aceitam de bom grado) nem incompreensões e acusações (que custam a 'roer').»
A 20 de Fevereiro, dirige-se ao cónego António dos Reis Rodrigues, tenente-coronel capelão militar (e futuro bispo, com o título de Madarsuma). «Venho dirigir-lhe por este meio um apelo que não duvido qualificar de angustiante: o envio urgente de mais algum capelão militar.» No Niassa, com uma superfície superior à de Portugal, encontram-se vários milhares de militares, com apenas dois capelães, um dos quais à beira de terminar a comissão. «A maior parte dos militares mortos em campanha não têm qualquer assistência religiosa por falta de capelão (...) Muitas vezes nem sequer há a presença do sacerdote quando os cadáveres são sepultados. Não imagina a impressão que isto causa nos pobres militares expostos a contínuos riscos.» Anteriores diligências junto da hierarquia resultaram infrutíferas. «Venho pois implorar os seus bons ofícios.»
Em Março, desabafa junto do seu conterrâneo e «caríssimo amigo» José Fernando Nunes Barata, deputado à Assembleia Nacional. «Sobre os graves problemas deste infeliz Niassa tive várias conversas (ou entrevistas como queiram) com os 'grandes' do Ministério do Ultramar (que por vezes me deixaram descontente), com o Embaixador António Faria e com o Presidente do Conselho (que me impressionaram muitíssimo bem).» Queixa-se de intrigas várias, visando «minar a minha reputação». «Como tudo isto me faz pena... e se não fora o muito amor à Igreja e a Portugal, bem como a estas infelizes populações, apetecia-me virar as costas a isto tudo. Mas importa resistir às tentações... os homens vão passando, mas ficam os grandes ideais pelos quais vale a pena viver, sofrer e morrer.» Lembra ao deputado que a situação militar «continua francamente má. Quase não se pode sair de Vila Cabral, senão de avião».
Ao padre Isaías Pereira, do Patriarcado de Lisboa, pormenoriza: «Já por quatro vezes carros das Missões sofreram ataques de terroristas», de que resultaram dois missionários feridos com gravidade. «Vila Cabral está na iminência de um assalto de um momento para o outro. Os incidentes sucedem-se na periferia e ainda esta noite houve uma tentativa de ataque ao depósito de águas.»
As relações com a PIDE deterioram-se. O agente de Vila Cabral reporta um encontro com o bispo, em que afirma suspeitar que um padre da missão de Massangulo colabora com a Frelimo. O bispo desmente e mostra em seu abono uma carta do padre italiano Camilo Pontegia, que prova que os guerrilheiros pediram por várias vezes cooperação e auxílio, mas que este recusara. O polícia pede a ajuda dos missionários, mas o bispo - lê-se no relatório da PIDE -«observou não haver forma de prestarem colaboração mais activa, para além do que tinham feito, porquanto sempre informaram a tropa do que se ia passando».
A guerra está numa escalada. As cartas de D. Eurico são lancinantes, quase desesperadas. «A situação parece agravar-se de dia para dia», escreve ao cónego Manuel Paulo, reitor do seminário de Coimbra. «Há mortos e feridos quase todos os dias: e vêm raptar pretos fiéis durante a noite, junto a Vila Cabral, nas barbas das autoridades. Qualquer dia (ou antes, noite) são capazes de me virem raptar a mim...» Sair do perímetro urbano é perigoso, só enquadrado «numa coluna militar. Doutro modo, não há segurança, pois nem assim é muita».
Noutra mensagem ao reitor de Coimbra, diz que as «selvas do Niassa» se apresentam «cada vez mais complicadas e traiçoeiras (...) Tudo mudou e o ar torna-se cada vez mais irrespirável (...) A pequena cidade está completamente rodeada de bandoleiros, se é que não andam livremente dentro dela, disfarçados em empregados, trabalhadores, cipaios, etc. Quase todas as noites se ouvem tiros e explosões aqui à volta (o que vale é que eles apontam muito mal e por isso as vítimas não têm sido numerosas)». O bispo vive a três quilómetros da cidade, na casa de uma missão, sem qualquer protecção, apesar das promessas das autoridades, que, no entanto, não se cansam de o vigiar. A ponto de desabafar: «É possível que esta carta seja lida no caminho abusivamente por terceira pessoa, pois de há muito que os 'direitos, liberdades e garantias' consignadas no art. 8º, nº 6 (segunda parte), da Constituição Política são palavras vãs em Moçambique, sobretudo pelo que respeita aos Bispos». Uma conversa tida em Lisboa com Salazar deixou-lhe boa impressão, «mas parece-me que daí para baixo anda tudo de olhos fechados: não vêem, não querem ver ou... fingem que não vêem».
Na tarde de quinta-feira santa, escreve ao seu colega de Aveiro, D. Manuel de Almeida Trindade. «Como a Igreja parece incipiente e débil, olhada nesta imensa solidão do interior de África! E como, vistos de fora e de longe, parecem ridículos e mesquinhos certos aspectos característicos da velha cristandade europeia!» De novo, a guerra: «Vila Cabral é uma cidade sitiada (...) Creio que a situação é aqui mais grave actualmente do que em qualquer outra porção do território nacional, apesar do silêncio com que procuram envolver o Niassa.» Ao bispo de Aveiro, (como, no mesmo dia, a D. Ernesto Sena de Oliveira, bispo de Coimbra), queixa-se de que continua sem capelães militares. A solução, aventa, está no recurso ao chamado «Ordinariato Castrense, previsto na Concordata. Se isto não é estado de guerra... não sei o que seja».
Pouco depois, volta a escrever ao cónego capelão António dos Reis Rodrigues, para acusar a vinda (finalmente!) de um novo capelão militar. Insuficiente, embora, uma vez que ficam «ainda três batalhões sem capelão».
D. Eurico está inteiramente à vontade com o reitor do seminário de Coimbra, cónego Manuel Paulo. «Tomara-me a milhares de quilómetros daqui mas nada posso fazer. Quem nasceu com má sina, não pode esperar boa estrela. O pior é se perco a paciência e... faço uma asneira. Pede comigo a Deus que tal jamais aconteça.» Depois de descrever várias cenas de tiroteio, acrescenta: «Não sei se a carta vai a cheirar a aguardente de mel. É que enquanto a escrevi o padre Joel veio trazer-me uma xícara dela chegada há pouco num caixote de géneros vindo de Coimbra.»
O controlo do correio atinge foros de escândalo. Disso dá conta ao padre António Ribeiro (futuro cardeal-patriarca de Lisboa), em 24 de Junho. «A carta de V. Revª datada de 30 de Abril e carimbada em Lisboa em 2 de Maio acaba de chegar a Vila Cabral! Quer dizer: veio a pé, em vez de por via aérea, decerto por insuficiência de franquia ou... excesso de peso. Este não vinha indicado e o selo desaparecera na longa viagem.»O ambiente de guerra «é cada vez pior. Mal se pode dormir, pois os sobressaltos nocturnos são quase contínuos: tiroteio junto das casas e raptos de europeus na periferia da cidade. Pode acontecer até que o problema se resolva, pela minha parte, com o meu rapto... E a situação agrava-se constantemente». A direcção da PIDE reage prontamente e pede informações ao Serviço de Ficheiros sobre o padre António Ribeiro.
Pela mesma altura, escreve a Víctor Sá Machado, director do Serviço do Ultramar da Fundação Calouste Gulbenkian. «A situação do Niassa apresenta-se cada vez mais trágica. Se não se lhe acode com urgência e em força, não virá longe o descalabro da Província, a começar pelo Norte; e a ele seguir-se-á possivelmente o de todo o Ultramar português. E parece que as autoridades provinciais e de Lisboa ainda não se aperceberam inteiramente da gravidade da situação.» Conta como foram raptados, em menos de um mês, dez colonos europeus, todos «em pleno dia». Um dos casos envolve «um pobre açoriano de 26 anos, a quem raptaram a família - esposa e três filhinhas - chegadas há um mês da Europa. Parece um sonâmbulo, repetindo obsessionadamente: 'Sou um homem destruído.'» O episódio serve como «um símbolo terrível do trágico ambiente que nos rodeia. E tudo isto derivado do criminoso abandono a que durante décadas (para não dizer: séculos) deixámos estas terras e suas populações».
A 27 de Julho, o bispo toma um avião para a Beira, a caminho de Lourenço Marques. Alarmado, o agente da polícia política informa que «devido às acusações feitas aos missionários, de entendimentos com o inimigo, estes estão dispostos a abandonar os lugares e a pedir ao Governo e à Santa Sé providências». Na opinião do delegado da PIDE, a situação é «perigosíssima, dadas as repercussões resultantes». Refere mesmo que um dos secretários do bispo foi a Unango «contactar os terroristas», numa tentativa de conseguir «a libertação» de um grupo de mulheres e crianças raptadas.
O arcebispo de Lourenço Marques - um dos prelados mais incondicionais do salazarismo - não esconde a sua incomodidade perante a acção do colega do Niassa. Tenta inclusivamente afastá-lo da diocese. Em Agosto, D. Custódio Alvim Pereira escreve ao núncio em Lisboa, Massimiliano de Furstemberg. A carta, em italiano, sugere a colocação de D. Eurico na vizinha diocese de Nampula, como bispo auxiliar. Alega D. Custódio que na sua «última e rápida visita» constatou «o desejo» do prelado local «de ter um Auxiliar e Coadjutor». A sugestão é feita sob a forma de pergunta: «Não se poderia nomear o Bispo de Vila Cabral, ao mesmo tempo, Auxiliar de Nampula?» O arcebispo argumenta: «Vila Cabral é uma diocese pequena» e o bispo bem poderia ajudar um colega vizinho durante parte do ano, «seria até um escape à própria actividade, em pleno espírito pós-conciliar». Cópias desta carta ao embaixador da Santa Sé são enviadas pela PIDE a Salazar e ao ministro do Ultramar, Silva Cunha. Quanto a D. Eurico, só tomará conhecimento deste projecto (não consumado) 34 anos depois, e pelo repórter do Expresso .
A Lisboa, via Lourenço Marques, chega nova informação da PIDE. Recentemente colocado em Vila Cabral, o agente Celestino Dias Albino, afilhado de casamento de D. Eurico, diz que este lhe confidenciara que os bispos moçambicanos «enviaram uma exposição para Lisboa, assinada por todos, por suspeitarem que as suas cartas são abertas nos Correios».
Entretanto, a acção do bispo de Vila Cabral começa a ser noticiada na Imprensa internacional mais crítica do colonialismo. A revista francesa «Informations Catholiques Internationales» (ICI) reporta, na edição de 1 de Outubro, uma invulgar «Carta fraterna aos muçulmanos» da diocese. O jornal católico «La Croix du Nord», de Lille, noticia uma mensagem aos participantes de um seminário em Aveiro. «Os portugueses de hoje não se cansam de louvar o passado, mas renegam o presente, o que agrava a sua apatia (...) Portugal traiu a sua vocação missionária e não dá conta de que a África é um continente em evolução.»
No último dia do ano, D. Eurico volta a escrever ao núncio. Na véspera de completar dois anos em Moçambique, «é ocasião para um rápido exame de consciência. Terá valido a pena a criação da Diocese de Vila Cabral? (...) Creio que a resposta só pode ser afirmativa». A guerra aperta. «Basta dizer que não se pode dar um passo para mais de 5 kms de Vila Cabral sem correr sérios riscos. A minha terceira missa de Natal foi acompanhada pelo troar compassado do canhão, colocado a 200 metros de distância da igreja. O ambiente é de castelo sitiado, mas sem a segurança das muralhas...» O prelado queixa-se de problemas de saúde: tensão alta, nervosismo acentuado, falta de sono, deficiente circulação no braço direito. Após um exame neurológico e análises várias, está encharcado em medicamentos: no último mês, «tomei mais remédios do que nos 43 anos e 8 meses anteriores». Tudo somado, confessa um crescente «pessimismo quanto ao meu futuro africano. No entanto, esforçar-me-ei por cumprir até ao fim o meu dever de Bispo missionário. E que Deus me ampare, para não me deixar sucumbir pelo ambiente».
1967
Em plena Páscoa, D. Eurico escreve ao cardeal-patriarca de Lisboa, para agradecer uma anterior nota de D. Manuel Gonçalves Cerejeira. «Faz-nos bem, no meio desta solidão e frente a riscos e problemas de toda a ordem, sentir a simpatia e orações de quantos, longe da vista, continuam a ocupar lugar cimeiro na nossa amizade ou admiração.» Sobre a «Carta» aos muçulmanos, «apesar da singeleza da forma e conteúdo, logrou uma repercussão de todo inesperada. Chegaram-me ecos de várias partes do mundo».
Em Junho, integra uma comitiva de onze bispos portugueses a Roma. E em Setembro, acompanhado por 28 missionários, divulga uma mensagem pastoral, com o significativo título «O Progresso, Factor de Paz no Niassa» - que a PIDE anexa ao já volumoso «dossier». Logo a seguir dá instruções ao seu irmão José Maria, em Coimbra, para distribuir cópias da carta pastoral a todos os bispos do país e padres de Coimbra. «Deste documento pastoral tenho recebido calorosos aplausos e... silêncios significativos. A Censura meteu-se com ela na imprensa diária mas por causa disso mandei compor em itálico aquelas passagens com que ela embirrou.» Cópias desta carta e da mensagem pastoral são entregues «pessoalmente» por Silva Pais a Salazar e Silva Cunha, «com conhecimento» para o ministro do Interior.
Ao findar do ano, o registo de que também o jornal «Étoile du Congo» noticia a pouco usual carta aos muçulmanos.
1968
Três anos volvidos, ainda se fazem sentir os efeitos da onda de choque provocada pela suspensão do jornal «Diário de Moçambique». O arcebispo de Lourenço Marques e o ditador trocam missivas. Ignora-se o seu conteúdo. Em Março, porém, Salazar, permite que D. Custódio divulgue ao restante episcopado parte de uma sua carta, a informar que «se deu a máxima atenção ao pedido da Conferência Episcopal», mas não se viu «a possibilidade de alterar ou suspender a pena imposta pela autoridade local ao jornal em causa». Em Junho, corresponde-se com Luís Torgal Ferreira (futuro administrador da Rádio Renascença) que lhe solicitara um artigo para uma revista. Sem tempo para o redigir, informa que, no dia seguinte, irá em viagem ao interior, «com um olho na estrada, onde há minas, outro no capim donde espreitam 'bazookas'».
Depois de uma algumas semanas na metrópole, D. Eurico retorna a Vila Cabral. O embarque é registado pelo posto da PIDE do aeroporto de Lisboa, às 00.45 horas de 19 de Agosto. Cinco semanas depois, com Salazar incapacitado, Marcelo Caetano é nomeado Presidente do Conselho. É o início de um novo ciclo do regime - mas não em Vila Cabral

DO MARCELISMO AO 25 DE ABRIL DE 1974



1968
Com Salazar politicamente moribundo, Marcelo Caetano ascende ao poder em Setembro de 1968. Na longínqua Vila Cabral, D. Eurico Dias Nogueira procura inteirar-se das mudanças ocorridas na cúpula do poder. Com a esperança de que elas venham a repercutir-se positivamente no problema número um do país, de Moçambique e do Niassa: a guerra.
Na Igreja, entretanto, estala o caso do padre Felicidade Alves. As críticas públicas do pároco de Belém à hierarquia católica levam o cardeal de Lisboa, D. Gonçalves Cerejeira, a afastar o padre Felicidade, que, em resposta, denuncia o que chama de regresso dos métodos inquisitoriais. O ex-pároco de Belém escreve a D. Eurico, que lhe responde a 3 de Dezembro de 1968. Indiferente à substituição operada na chefia do regime, a PIDE continua a abrir a correspondência do bispo, com as fotocópias a serem anexadas ao processo iniciado dez anos antes. «A sua carta (...) despertou em mim um contraditório sentimento de tristeza e de alegria», escreve o bispo ao padre Felicidade.
No entanto, apesar de doutorado em Direito Canónico, alega que não sabe «pronunciar-se sobre o seu caso». Por duas razões: «Estou demasiado longe de tudo e de todos, neste espesso 'mato' do interior de Moçambique. E se o pretendesse, debruçando-me sobre todas as peças de um processo que não sei como se organizou, ser-me-ia difícil pronunciar um juízo seguro: por falta de ciência e talvez por míngua de isenção e caridade.»
O estado de guerra consome por inteiro as suas energias. «Tudo isto é martirizante. E absorve-me de tal modo que não me resta tempo ou disposição para acompanhar a evolução eclesial que se processa na velha Cristandade. Daí que mal possa compreender situações como as do caro padre Felicidade.» A carta acaba com um apelo e uma oferta.
O apelo: «Rogo-lhe que não deixe esmorecer na sua alma sacerdotal a fé em Deus e em Cristo Salvador, mesmo que no seu coração sinta apagar-se a confiança nos homens que na terra Os representam funcionalmente.» A oferta: «Se entender que nalguma coisa posso ser-lhe útil, disponha inteiramente de mim (...) Abraço-o com viva estima e fraterna amizade.»
1969
As ondas de choque que a morte política de Salazar provocou dentro da Igreja continuam a chegar ao Niassa. Depois do caso do padre Felicidade, é a exigência de largos sectores católicos, no sentido do fim do exílio do bispo do Porto. A 10 de Janeiro, mais de dois mil católicos daquela diocese assinam uma exposição, dirigida a todos os bispos portugueses: «...esperamos de Vossas Excelências Reverendíssimas aquela acção que a Justiça e a Caridade evangélicas pedem, a qual acreditamos já esteja em curso, em ordem a vermos entre nós, no governo efectivo da sua Diocese, o nosso Bispo ausente». O exemplar do manifesto enviado para Vila Cabral chega às mãos da polícia - e D. António Ferreira Gomes regressará a Portugal em Julho.
O Papa Paulo VI visita o Quénia e o Uganda. Para que D. Eurico e o seu colega de Quelimane, D. Francisco Teixeira, possam deslocar-se aos dois países africanos, necessitam de um averbamento no passaporte. Consultada em Julho, a direcção da PIDE em Lisboa autoriza. A viagem, contudo, acaba por ser cancelada, em virtude de uma informação chegada do Uganda prevendo uma manifestação hostil por parte da Frelimo, que em Fevereiro viu o seu líder, Eduardo Mondlane, assassinado pela explosão de um livro-bomba endereçado pela PIDE.
D. Eurico estranha que Angola e Moçambique não tenham sido convidadas para o Simpósio dos Presidentes das Conferências Episcopais de África, a realizar na mesma altura no Uganda. O protesto é endereçado ao núncio em Lisboa: «É pena que personalidades eclesiásticas de elevada responsabilidade na Igreja não consigam abrir caminho direito, libertando-se de pressões ou considerações políticas.»
O Verão é aproveitado para vir à Metrópole. As novas moçambicanas chegam-lhe através do irmão, José Maria, professor primário: «A maior novidade é as tuas cartas não aparecerem... Vieram todas num dia...» Quanto à guerra, «não está a melhorar, antes pelo contrário. O Meirim de Moçambique» - como chama ao general Kaulza de Arriaga, o novo homem-forte da colónia - «não está a cumprir aquilo que prometeu».
1970
Passam dois anos sobre a subida ao poder de Marcelo Caetano. Salazar já está morto e enterrado e a PIDE foi extinta, para dar lugar a uma Direcção-Geral de Segurança (DGS). Em Vila Cabral, porém, nada mudou. Pelo contrário: a tensão entre a diocese e o poder político não cessa de aumentar.
Em Agosto, o bispo é abordado pelo sub-inspector da DGS de Vila Cabral, para lhe manifestar o «profundo desgosto» do governador-geral, eng. Arantes e Oliveira, ex-ministro das Obras Públicas de Salazar. Em causa está o teor da chamada «Oração dos Fiéis», formulada pelo padre Manuel Carreira numa missa celebrada na catedral. Na versão policial, a oração teria sido da seguinte fórmula: «Pelos nossos governantes, para que não nos enganem com falsas promessas. Ouvi-nos Senhor!»
Após ter-se informado do ocorrido, o bispo responde ao governador a 18 de Agosto. A referida oração fora «muito diversa» da reportada pela DGS. O seu teor exacto - confirmado por uma fotocópia enviada em anexo, - fora este: «Pelos chefes políticos, para que sejam sinceros e não enganem com falsas promessas.» Trata-se por sinal da «fórmula indicada» para o domingo em causa «pela revista portuguesa 'Ora & Labora', dos monges beneditinos de Singeverga, especializada em assuntos litúrgicos e aprovada pela competente Autoridade Eclesiástica da Metrópole». O bispo deixa escapar um comentário: «Não vejo que possa haver qualquer melindre nesta oração, que deve ter sido feita nesse domingo em milhares de igrejas do vasto espaço português, desde Braga a Timor, inclusive na Catedral de Lourenço Marques».
Furioso, D. Eurico lamenta que «haja agentes» do Governo «que buscam os templos, não para louvar o Senhor em espírito de oração, mas com mera preocupação inquisitorial e de espionagem, em busca de pretextos para levantar escândalos e causar incómodos sem razão. Provocando atritos entre autoridades civis e religiosas, estão a prestar um péssimo serviço à causa da Nação». Confirmando o seu «profundo desgosto» para com a situação, o bispo junta uma carta redigida duas semanas antes, «mas que havia retido para não incomodar» o governador. A justificação para esta mudança de atitude vem a seguir: «Seria cobardia não reagir perante tantos atropelos à dignidade e indispensável liberdade de quem aqui trabalha, suportando incomodidades e arriscando a vida, por Deus e a Pátria.»
Que diz a carta que ficara na gaveta, datada de 5 de Agosto? É um libelo contra a actuação da polícia: «A minha correspondência é frequentemente violada por agentes da DGS (ex-PIDE), desconhecendo eu a razão política que determina tal comportamento e a base legal em que se fundamenta.» O bispo-jurista argumenta: «Tal procedimento viola o art. 8º, 6º, segunda parte, da Constituição Política, que não me consta estar suspensa no Niassa, senão mesmo o art. II da Concordata.» Tempos houve - após um protesto junto dos CTT e de três cartas dirigidas ao próprio Salazar - em que o bispo se convenceu de «que o assunto ficara resolvido». Puro engano. «Desde há muito que verifico a repetição dos mesmos atropelos.» Sendo assim, pede ao governador uma «explicação» para um «procedimento de todo arbitrário e gravemente ofensivo por ilegal». No final, opta pelo sarcasmo: «Em desespero de causa, rogo que ao menos sejam colocados nesta lamentável ocupação agentes competentes que façam o trabalhinho com a rapidez necessária, a fim de evitarem ao máximo prejuízos de que outros são vítimas, ficando aqueles impunes.»
Cópias de ambas as missivas são enviadas por Arantes e Oliveira à delegação da DGS de Moçambique. No respectivo despacho, o governador anota: «Interessa saber, com segurança, quais as palavras proferidas» na polémica missa.
O director da DGS responde em dois ofícios, ainda redigidos em impressos da PIDE. No primeiro, de seis páginas, encostado à parede, é obrigado a confirmar a versão do bispo sobre o teor da oração rezada na Sé. Humilhado, o inspector investe numa absurda argumentação litúrgica e teológica: «Não se vê que tal formulação seja diversa, em essência, da informada inicialmente por esta Delegação.» E mais à frente: «Por não abalizados suficientemente em matéria de renovação litúrgica, não discutimos a competência dos monges beneditinos de Singeverga, nem ao menos sabemos se será curial a prece, e ainda que aprovada pela Autoridade Eclesiástica da Metrópole, ser proferida sem a homologação da Conferência Episcopal de Moçambique ou da Comissão Litúrgica Interdiocesana. No entanto, não podemos deixar de evocar, com certo saudosismo, por mais consentânea ao espírito evangélico e melhor de acordo com os actuais condicionalismos, a fórmula de prece substituída na Súplica Universal (oração dos fiéis): 'pelos nossos governantes, para que nos governem na Justiça e na Verdade à Luz da palavra de Deus'».
No segundo ofício, o director da polícia nota que o bispo «tem procurado mover, ultimamente, cerrada campanha desqualificada à Subdelegação da DGS em Vila Cabral». O inspector denuncia o facto de o prelado não admitir «os esquemas e dispositivos militares adoptados para o combate à subversão. Classifica-os de criminosos porque, quando empregamos meios violentos, o fazemos por sadismo e instinto criminoso, enquanto os elementos da Frelimo matam por ignorância ou falta de amor». Traçando o «perfil político» de D. Eurico, o responsável da DGS inclui-o «na corrente democrato-liberal».
Quanto à questão do correio, que motivou o protesto do bispo junto do governador, o director da DGS não só mente como se mostra ofendido: «A especulação contra alegadas violações da sua correspondência parece revelar certa morbidez psíquica e acarretar graves ofensas aos funcionários da DGS, atentando ostensivamente contra o seu brio e decoro profissional. Além do mais, tal procedimento é atentatório de disposições penais em que se coloca o autor de tais ofensas.»
Pela mesma altura, o ultra-oficioso «Diário da Manhã» faz-se eco de uma entrevista de D. Eurico ao angolano «Jornal de Benguela». Sabe-se que a hierarquia católica nas colónias é constituída, quase em exclusivo, por brancos. Heterodoxo, o bispo do Niassa deseja: «Oxalá muito em breve haja por todo o Ultramar, ao lado dos missionários europeus, muitos sacerdotes autóctones, incluindo bispos e até cardeais.»
1971
Com mais de seis anos à frente de uma muito trabalhosa diocese, adivinha-se que D. Eurico está prestes a mudar de ares. Em Janeiro, é sondado para ir para a diocese da Beira. A hipótese de uma transferência a curto prazo transparece numa carta de Fevereiro ao padre José Vicente, do jornal angolano «O Lobito», a quem diz que prepara uma visita ao interior da sua diocese, que «pode ser a última...»
Em Outubro, em Lisboa, é abordado pela Nunciatura. Inviabilizada a hipótese da Beira, o destino mais provável, agora, é Angola: Sá da Bandeira ou Nova Lisboa.
No mesmo mês, participa na IX Semana de Estudos Missionários, no seminário da Boa Nova, em Valadares. Os vários painéis contam com a presença de Anselmo Borges, Alçada Baptista, Maria de Lurdes Pintasilgo, Teresa Santa Clara Gomes, Mário Murteira, general Emílio Cherye (embaixador do Chile em Lisboa) e D. António Ferreira Gomes. A DGS do Porto não perde pitada dos debates, sobre os quais elabora um relatório de dez páginas, a pedido do próprio Silva Pais.
1972
Na segunda semana de Fevereiro, o núncio acreditado em Lisboa visita Moçambique. Vice-presidente da Conferência Episcopal, D. Eurico é informado do desejo do Vaticano de o transferir para Sá da Bandeira, em Angola. Obtida a anuência, a nomeação oficial é feita a 19 de Fevereiro. O anterior titular, D. Altino Ribeiro de Santana, é colocado na diocese da Beira. As mudanças são noticiadas pela Imprensa a 25.
Nas semanas seguintes, o bispo despede-se de Vila Cabral. Nas «Conferências Quaresmais», faz uma intervenção com o título «A Igreja e a Política no Caso Concreto de Moçambique», devidamente relatada pela DGS: «Como não podia deixar de ser, o Bispo reservou para esta sua última palestra o extravasamento (sic) do ódio que lhe enche a alma, em relação às Forças da Ordem, mormente no que respeita a Organismos Policiais e, muito especialmente, a esta Corporação». Falando do chamado terrorismo, «apresentou os excessos cometidos como uma reacção condenável, mas desculpável, por parte do sector militar, pois, afirmou, beneficiavam da atenuante da luta. Dizendo que era um princípio absolutamente errado que o terrorismo só se combatia com o terrorismo, lançou-se em seguida num ataque cerrado, violento e virulento, às Instituições Policiais, claramente à nossa Corporação, sem que, contudo, a nomeasse (...) Valendo-se mais uma vez da sua posição de Bispo e do facto de poder falar em público, sem ser contestado, lançou do Altar para baixo todo o ódio que o consome». No termo da conferência, o agente abandona a catedral para não ter que cumprimentar o bispo, que «quis, em vésperas da sua partida, mostrar que ainda se trata de um 'Bispo revolucionário'».
Pouco depois, recebe uma curiosíssima missiva, em francês, de F. Busson, um consultor da FAO, que se dirige nos mesmos termos ao bispo de Tete, D. Félix Niza Ribeiro. Conhecedor de Angola e Moçambique, Busson confessa-se «admirado com as belas realizações portuguesas nestes países». O que faz escrever o técnico da FAO é um artigo do diário francês «Le Monde», de 27 de Maio, segundo o qual o bispo seguiu os conselhos da Frelimo e «fez pintar as viaturas da diocese de cor-de-rosa, para evitar que fossem atacadas». Busson solicita uma informação confidencial sobre a matéria.
Contactado pelo Expresso, o arcebispo resignatário de Braga não se recorda da carta de F. Busson. Mas lembra-se bem de um ataque da Frelimo, «com uma 'bazooka', a um carro das nossas missões, ferindo um padre». Pouco depois, o movimento guerrilheiro «pediu-nos desculpa pelo sucedido e sugeriu que passássemos a levar uma bandeira branca nos nossos carros». O bispo seguiu parcialmente a ideia «e pintámos uma cruz amarela nas portas dos jeeps». Desconfiados, «os comandos militares mandaram apagar a cruz»; em resposta, o bispo ordenou «que se pintassem todos os carros dos missionários de amarelo». E assim passaram a estar identificados...
A última carta pastoral, enquanto bispo de Vila Cabral, é difundida a 1 de Junho. O documento insurge-se contra os «excessos lamentáveis, escusados, e sempre contraproducentes» das acções repressivas e especialmente de «algumas actuações policiais e neste campo com menos atenuantes, dada a situação de detidos e desarmados das vítimas». Irritada, a polícia remete um exemplar da pastoral para Lisboa, com a anotação (só agora em impressos da DGS...) de que é «destituída de oportunidade» e «susceptível de especulações políticas», pelo que «não pode deixar de merecer as atenções das autoridades da Província».
A 25 de Junho, D. Eurico deixa Moçambique, onde serviu como bispo durante sete anos e meio. A 1 de Julho chega à sua nova diocese: Sá da Bandeira (futura Lubango), com uma área de 223.000 km2 e uma realidade, em termos de guerra, muito diferente da do Niassa.
1973
Dos primeiros seis meses da comissão angolana não há qualquer notícia de D. Eurico no seu volumoso «dossier» guardado na Torre do Tombo. Aliás, um estudo atento do seu processo revela uma mudança substancial nos métodos de actuação da DGS de Angola - ou pelo menos de Sá da Bandeira - no que respeita ao bispo. Não só o volume de informações é reduzido, como se altera a sua origem. A partir da sua estada em Angola, deixa de haver cópias da sua vasta correspondência, tudo indicando que as cartas que escreve e recebe não são violadas - ou pelo menos não são fotocopiadas. O que não significa que deixe de ser alvo de atenção e vigilância.
O primeiro documento deste novo ciclo é uma cópia do quinzenário católico francês «Informations Catholiques Internationales», de 15 de Janeiro, que dedica quase uma página à última carta pastoral do bispo de Vila Cabral. Título: «Moçambique: Pela primeira vez, um bispo denuncia os crimes da repressão colonial».
A mesma pastoral é objecto de notícia na «Rádio Voz da Liberdade», em Maio. Captada e gravada em Lisboa pelo Serviço de Escuta da Legião Portuguesa, a emissão da rádio de Argel dedica-lhe quase três minutos, com o título «O bispo D. Eurico Dias Nogueira denuncia a repressão colonialista». Transcrita pela Legião, a rádio diz tratar-se de «um queixume amargurado, uma denúncia e um protesto». Uma atitude isolada, uma vez que «grande parte da hierarquia católica continua a ter, em relação à guerra colonial, uma posição de silenciosa cumplicidade».
Em Abril, a delegação de Angola da DGS remete para Lisboa quatro documentos importantíssimos da autoria do agora bispo de Sá da Bandeira.
O primeiro, em termos cronológicos, é o depoimento prestado por D. Eurico no Tribunal Militar de Lourenço Marques, durante o célebre processo dos padres do Macúti.
O segundo chama-se «Memorial» e é extremamente interessante, na medida em que é o esqueleto de uma futura Constituição de um «Estado federado», em que Portugal, Angola e Moçambique ficariam praticamente no mesmo pé de igualdade.
O terceiro documento é a homilia da missa de 11 de Fevereiro. Aproveitando a presença do governador-geral de Angola, chama a atenção para «a falta de diálogo de quem exerce funções administrativas ou policiais com os missionários, falta essa causadora de mal-entendidos e acusações que a ninguém aproveitam». Refere, a propósito, os incidentes na cidade da Beira, que o levaram a depor, no mês anterior, como testemunha no Tribunal, e cita uma carta que enviara «ao principal responsável pelo barulho que se fez». Na homilia, D. Eurico não identifica esse responsável - fá-lo-á mais tarde no seu pouco conhecido livro de memórias «Episódios da Minha Missão em África» (Braga, 1995). Tratou-se de Jorge Jardim, ex-agente especial de Salazar e que preconizava uma independência de Moçambique sob a liderança da minoria branca. No referido livro, Jardim é apontado como «impulsionador do empolamento do caso do Macúti, através dos vários e poderosos meios de comunicação social de que dispunha na Beira».
O quarto e último documento enviado pela DGS de Angola é o texto de uma outra homilia, dita a 5 de Março, na missa do sétimo dia da morte do anterior bispo de Sá da Bandeira, D. Altino Ribeiro de Santana. A longa homilia, de 11 páginas, é uma sentida homenagem ao prelado que, transferido para a Beira em Maio de 1972, sucumbiu ao fim de dez meses, com apenas 57 anos. A homilia é um relato pormenorizado dos meses «de calvário e fel» que levaram à morte do bispo, vítima de um colapso cardíaco.
D. Altino chegara à Beira no auge da crise do padres do Macúti, detidos meses antes, sem caução, à guarda de um tribunal militar. D. Eurico lembra que o seu colega tivera um primeiro ataque cardíaco «no decurso das audiências de julgamento, precisamente no dia em que deveria dar o seu testemunho. Enquanto conversava com algumas pessoas, junto da sala do Tribunal, num intervalo daquelas, caiu desamparado no solo, com os sentidos perdidos». Recomposto após alguns dias de descanso, D. Altino «pôde prestar o seu depoimento» - que, juntamente com o de outros três bispos, contribuiu para que o tribunal determinasse a libertação dos réus. Seguiu-se, porém, uma «nova campanha de agitação» contra os dois padres, liderada pelos mesmos que haviam «desencadeado a tempestade» inicial. Uma campanha que incluiu «um cortejo automóvel», a publicação no jornal local de «gravuras e legendas significativas» e a difusão «de escritos anónimos insultuosos». O ponto mais alto foi «o rebentamento de um engemho explosivo» junto da residência episcopal, onde estavam hospedados os dois padres.
Na homilia, D. Eurico lê passagens de várias cartas de D. Altino, onde é patente um tom de preocupação e angústia crescentes. A última é de 24 de Março: «Voltei ontem de Nampula, após uma reunião apressada do Conselho Permanente. Os nossos problemas agravam-se (...) As acusações são sempre as mesmas. Mas as provas não aparecem.» Perante uma catedral repleta de fiéis, D. Eurico remata: «Três dias depois de escrita esta última carta, D. Altino morria vítima de um colapso cardíaco.» A homilia não deixa margem para dúvidas quanto às causas e aos responsáveis pela morte daquele que fora o primeiro bispo de Sá da Bandeira.
1974
Em Fevereiro, a polícia fotocopia uma longa carta, de mais de 30 páginas, em que o italiano padre Antonio Cesare Bertulli, ex-responsável da congregação dos Padres Brancos na Beira e Tete, responde ao ex-bispo de Vila Cabral. É a única carta existente no «dossier» guardado na Torre do Tombo com origem na DGS de Angola. O documento é extremamente crítico das posições de D. Eurico, que se demarcara publicamente da saída daqueles padres de Moçambique.
Pouco depois, a DGS de Moçambique envia para Lisboa a cópia de uma carta do padre José Carvalheira. Escrita em Vila Cabral e endereçada para Sá da Bandeira, o ex-colaborador de D. Eurico conta-lhe que «estamos novamente em forte tensão», desta feita com «o foco» em Nampula. Demarcando-se do que designa de «os extremistas» - em que inclui os Padres Brancos, os combonianos e aparentemente o bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto -, o padre Carvalheira diz ansiar «a hora de poder ir para Angola». Datado de 28 de Março, é o último documento existente no seu processo policial.
Menos de um mês depois, dava-se o 25 de Abril. A PIDE/DGS era dissolvida. A liberdade em Portugal era restaurada. D. Eurico Dias Nogueira podia, finalmente, escrever e receber cartas, com a certeza de que não eram violadas, espiolhadas e fotocopiadas.
NOTAS SOLTAS
FONTE: EXPRESSO REVISTA


Testemunha dos Párocos de Macúti
Em Janeiro de 1973, o bispo de Sá da Bandeira atravessou África para depor no Tribunal Militar de Lourenço Marques, como testemunha de defesa dos padres de Macúti. O caso rebentara um ano antes, com a prisão do responsável da paróquia de Macúti (na Beira), padre Joaquim Teles Sampaio, e do seu coadjutor, padre Fernando Marques Mendes.
A acusação inicial fora a de insulto à bandeira nacional, que alegadamente teria sido impedida de entrar na igreja durante um cerimónia de escuteiros. Mas cedo se percebeu que a questão de fundo fora uma homilia proferida dias antes, a 1 de Janeiro de 1972, Dia Mundial da Paz, com a denúncia de várias atrocidades cometidas pelas forças militares portuguesas em Cabo Delgado e Tete. Presos há mais de um ano, os dois sacerdotes foram julgados em tribunal militar.
O depoimento do ex-bispo de Vila Cabral prolongou-se por todo o dia 12 de Janeiro e foi precedido pela leitura de um texto - a que deu o título de «Introdução a um depoimento» -, entregue ao tribunal. No texto, D. Eurico conta que assim que tomou conhecimento «do incidente que serviu de pretexto para este processo», pôs-se de imediato à disposição da diocese da Beira «e dos sacerdotes publicamente enxovalhados e detidos». Nesse sentido, ofereceu-se «para intervir como advogado de defesa» dos dois padres - tal com o fizera, em 1965, aquando da suspensão arbitrária do «Diário de Moçambique», o jornal que não acatara os cortes efectuados pela Censura numa homilia do então bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Resende. Os dois padres-réus, porém, já haviam passado procuração a dois dos mais conhecidos e prestigiados advogados de Moçambique, Adrião Rodrigues e João Afonso dos Santos (irmão do cantor Zeca Afonso). Não podendo ser advogado, foi nestas circunstâncias que o bispo surgiu como testemunha de defesa.
No seu texto, D. Eurico recusa-se a discutir o incidente da bandeira, que classifica de «simplesmente ridículo e um puro pretexto aproveitado demagogicamente à falta de melhor». O que está em causa, afinal, é uma homilia, que, sublinha, se situa «na actividade de magistério integrante da sua função sacerdotal» e, como tal, é «um acto que está protegido pela liberdade ministerial da Igreja Católica, garantida pela Constituição Política bem como pela Concordata».
Na homilia em causa, os dois padres denunciaram as violências exercidas sobre populações por parte de militares portugueses. Daí a reacção intempestiva das autoridades. Quanto a isso, o bispo interroga: «E a denúncia do crime não é um direito e dever de todo o cidadão?» Uma questão de resposta óbvia, «até porque se acredita sinceramente que crimes como os denunciados se verificam com total desconhecimento e contra as claras instruções dos mais altos responsáveis pela condução da coisa pública e das próprias actividades militares, conducentes à restauração da ordem pública e à manutenção da paz ameaçada».
Quanto ao processo utilizado - uma homilia -, o bispo invoca o seu próprio exemplo: «Eu mesmo, tendo tomado conhecimento de alguns actos ilícitos ou criminosos, do mesmo género embora de menores proporções, levados a cabo no Niassa em diversas ocasiões no início da subversão (...) não hesitei em os denunciar junto das Autoridades.» Mais ainda: «E a eles aludi em homilias na catedral e em Cartas Pastorais que são do domínio público.» E para que não restem dúvidas quanto ao seu apoio à atitude dos dois padres, o depoimento termina com uma pergunta ao tribunal - que é, também, uma pergunta ao poder político: «Como posso admitir que se considere crime uma denúncia que eu faria igualmente, se tivesse tido conhecimento dos factos em causa?»
Os dois padres foram condenados a leves penas de prisão correccional - o que foi equiparado nos meios eclesiásticos a uma absolvição e que, em contrapartida, deixou indignados os sectores políticos e militares que sustentavam a acusação. Em prisão preventiva durante mais de um ano, ambos saíram logo em liberdade. Contudo, passado um mês, e perante nova campanha desencadeada pelos mesmo sectores, os dois padres foram obrigados a abandonar a cidade da Beira com destino a Lisboa.
CONTACTOS COM A FRELIMO
D. Eurico Dias Nogueira teve vários contactos com dirigentes da Frelimo e designadamente com Sebastião Mabote, um dos míticos chefes da guerrilha e que viria a ser vice-ministro da Defesa.
Um desses contactos é documentado num relatório da PIDE, de 14 de Outubro de 1968, com o título «O Prelado da Diocese de Vila Cabral perante a Frelimo». Da autoria da delegação de Moçambique e com a classificação de A-1 (máxima fidedignidade), foi dado a conhecer ao novo Presidente do Conselho, Marcello Caetano, bem como aos ministros do Ultramar (Silva Cunha) e Defesa (general Sá Viana Rebelo).
Diz o relatório que, a 1 de Abril, no decorrer de um ataque à base da Frelimo na província do Niassa, «foram encontrados e capturados vários documentos», entre eles uma carta dirigida a um tal «BX», que a polícia tem como certo tratar-se de D. Eurico.
Procurando aprofundar esta pista, a PIDE indagou junto de um «destacado terrorista da Frelimo, Subchefe do Sector ou Zona B – Distrito de Mandimba, com sede na Base Catur». O relatório não esclarece os meios utilizados para a obtenção das informações - apenas faz o relato daquele dirigente. Assim, e a fazer fé neste relato, o bispo «vem mantendo contactos directos com chefes da Frelimo» desde 1966. Nesse ano, o prelado «teve um encontro em Vila Cabral com o então Chefe da Base de Instrução de Chala, de nome Horácio Nunes, natural da Zambézia. Tal encontro foi comunicado ao Sebastião Mabote», chefe operacional do Niassa, «que mandou uma carta» a D. Eurico através do mesmo Horácio Nunes.
A PIDE nada adianta sobre o conteúdo da carta de Mabote, que, após a independência de Moçambique, em 1975, viria a ocupar os cargos de vice-ministro da Defesa e Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. No entanto, é provável que seja a carta que viria a ser publicada em 1995 por D. Eurico no seu livro de memórias «Episódios da Minha Missão em África» (págs. 81 e 82). Vale a pena citar na íntegra: «Desde há tempos que desejo ter uma conversa pacífica com você», escreve Mabote. «Mas não tenho conseguido, porque a tropa fascista, colonialista e imperialista de Salazar não nos permite tranquilidade nessa sua área. Mas se você indicar uma base de segurança, eu enviarei um emissário para combinar o encontro. Entretanto, para prova do seu espírito internacionalista, mande pelo portador um garrafão de cinco litros de vinho, para festejarmos o próximo aniversário do início da nossa luta.»
Abordado pelo EXPRESSO, D. Eurico conta que, «após esta carta, falei com o governador-geral de Moçambique - creio que era o general Costa Almeida -, que deu luz verde para o encontro com o Sebastião Mabote, mas que não se concretizou».
Seja ou não esta a missiva a que a PIDE se refere, o relatório prossegue: «O Senhor Bispo, em resposta, entregou» ao portador, Horácio Nunes, «a quantia de 1.000$00 em moeda malaviana e uma carta dirigida ao Mabote, escrita em papel timbrado da diocese, pedindo-lhe que quando lhe quisesse falar, o fizesse pessoalmente e não por carta».
Mabote terá respondido através de uma segunda carta, cuja transcrição é anexada ao relatório da PIDE. É uma carta de três páginas, de que o arcebispo resignatário de Braga diz não tido conhecimento, se bem que acredite que «seja verdadeira». Redigida num português deficiente, é dirigida a «BX» (que a PIDE, como se disse, sustenta ser o bispo de Vila Cabral) e acusa a recepção do dinheiro do Malawi. O documento faz frequentes elogios a D. Eurico, apontado como «um dos que honra pela paz de Moçambique, e do mundo inteiro». O autor, de resto, afirma «que eu e os meus camaradas, somos católicos e rogamos sempre (Avé Maria) em todos os nossos trabalhos revolucionários».
A carta esclarece que «o Nosso Partido não luta contra o povo português, nem a cor nem a raça. Mas sim luta contra somente o Governo português e todos os seus lacaios». Lamentando que não haja «negociações» com o governo de Lisboa, promete: «Nós estamos dispostos a sofrer, morrer pela terra, mas os que restarão, gozarão a Independência». E anota que, num Moçambique independente, «precisaremos de vocês para nos ensinar». A carta termina com o pedido para que lhe seja enviado, «se possível», diverso material escolar, como livros de aritmética, ciências, história, francês, português. A lista inclui ainda títulos de várias «obras literárias» de autores como Júlio Dinis, Padre António Vieira e Alexandre Herculano.
Um pedido semelhante foi feito, ainda em 1967, por um tal Matias Vítor, que no citado relatório da PIDE é apresentado como «actual chefe do Sector ou Zona B – Distrito de Mandimba». Em resposta, a diocese terá enviado «alguns cadernos, dois dicionários de português e alguns livros de matemática e geometria», mais tarde apreendidos por militares portugueses no assalto à base da Frelimo de Catur.
O mesmo relatório adianta que, já em 1968, o chefe da base de Catur, Lucas Nantumbudia, de etnia maconde, enviou uma outra carta ao bispo, ignorando-se o respectivo teor.
OS TRÊS ESTADOS FEDERADOS
Dois anos antes do 25 de Abril, D. Eurico propôs a transformação de Portugal de Estado Unitário num Estado Federal - indo ao encontro das teses defendidas na Guiné pelo general António de Spínola. Num «memorial» não assinado, mas que a DGS de Angola atribui ao bispo de Sá da Bandeira, adverte-se que esta é «a única modificação constitucional a tentar».
Datado de 2 de Fevereiro de 1972 (e não de 1962, como, por lapso, consta no documento de três páginas), o «memorial» foi redigido na sequência de uma iniciativa do governador-geral de Moçambique, Pimentel dos Santos. Licenciado em Direito, o bispo demarca-se por inteiro de uma anterior proposta constitucional do governador, que classifica de «mera desconcentração» do poder político.
Esgotada a velha concepção de um Portugal uno do Minho a Timor, a solução estaria num Estado Federal, com a designação de «Comunidade Portuguesa (ou outro nome que se lhe desse)». Esse Estado seria constituído por «três estados federados: Portugal, Angola e Moçambique (a que se podia, por questão de princípio, acrescentar a Índia)»; a Guiné, S. Tomé, Macau e Timor seriam «Províncias Ultramarinas»; quanto a Cabo Verde, «receberia o estatuto das Ilhas Adjacentes», no mesmo pé da Madeira e dos Açores.
Dando corpo a este esqueleto, o documento propõe a criação de vários «órgãos federais»: o Chefe de Estado, presidente da Comunidade (ou da União); uma Assembleia da Comunidade; um Conselho de Ministros da Comunidade ou Conselho Federal; um Supremo Tribunal Federal. Em Angola e Moçambique, «um Alto Comissário representará o Chefe do Estado e o Governo Federal», possuindo «poderes para nomear o Governo (ou o Primeiro Ministro), para promulgar e votar as leis».
O texto reconhece que «se trata de uma modificação profunda que porventura chocará até a Metrópole», mas que se afigura como «a única jogada que vale a pena». Por um lado, «é um passo considerável no caminho do auto-governo das duas grandes províncias». Por outro, «dá maior participação na administração aos colonos». Além disso, «atesta internacionalmente o nosso desejo de evoluir». Por fim, «concilia os desejos de auto-administração das províncias e as pressões estranhas no sentido de as autonomizarmos com a necessidade de continuarmos a mantê-las portuguesas e de as apoiarmos por todos os modos».
Como se disse, a cópia desta proposta de revisão constitucional que está no processo aberto pela PIDE/DGS não vem assinada. Abordado pelo EXPRESSO, o arcebispo resignatário de Braga não se recorda do documento. «Mas não há dúvida nenhuma de que me revejo nele. Corresponde ao meu pensamento na altura.» E referindo-se à política africana do Estado Novo: «Aquilo não tinha solução.»
Ideias semelhantes foram defendidas, à época, pelo governador da Guiné, general Spínola, e por alguns sectores liberais do regime. Prevaleceram, contudo, as teses integracionistas, que levaram a política e a guerra colonial a um beco cuja única saída foi o 25 de Abril de 1974
FONTE: EXPRESSO REVISTA

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