quinta-feira, 15 de novembro de 2012

MOÇAMBIQUE POR CONTAR


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VISÃO - Lisboa, 26 de Agosto de 2004
OPINIÃO - BOAVENTURA SOUSA SANTOS
MOÇAMBIQUE POR CONTAR
È urgente criar uma Comissão de Verdade e de Reconciliação Nacional em Moçambique
Acaba de ser publicado em Maputo um livro perturbador. De autoria de Barnabé Lucas Ncomo, intitula-se Uria Simango: um Homem uma causa e é já um acontecimento editorial.
No seu lançamento a que assistiram várias centenas de pessoas, foram vendidos 450 exemplares. O livro está a agitar os meios políticos moçambicanos e sinal disso é o facto, relatado pelo conceituado semanário
Savana, de a publicidade ao livro na televisão moçambicana ter sido censurada por razões políticas.
O LIVRO É UMA BIOGRAFIA de um dos fundadores da Frelimo, Uria Simango, e nele o autor procura demonstrar, com bases até agora desconhecidos do grande público que o seu biografado oficialmente considerado um "traidor" cujo paradeiro se desconhece foi de facto assassinado pela facção vitoriosa da
Frelimo. Não tenho conhecimentos que me permitam avaliar a veracidade do que é relatado no livro e aos que o têm não facilatará a tarefa o facto de muitas das fontes do autor serem anónimas.
Por outro lado, suspeito que, numa luta ideológica com a violência com que se terá travado, é pouco crível que um dos contendores seja uma vítima sem mácula.
Nada disto, porém, põe em causa o verdadeiro mérito do livro: questionar com alguma fundamentação, a história oficial da frelimo e, portanto, a história contemporânea oficial de Moçambique.
A credibilidade do argumento do livro reconhece-se facilmente no Maputo, conversando com pessoas, hoje afastadas da política, que contactaram de perto com algumas das personagens referidas ou participaram de alguns dos acontecimentos narrados. Em suma, o livro "cheira" a verdade.
Traz à memória outros desaparecimentos suspeitos de outros fundadores da Frelimo, como por exemplo Lourenço Mutaca, assassinado na Etiópia na década de 80, e Shafurdin Khan, na Zâmbia na década de 90. E faz sobretudo pensar nas mortes não totalmente esclarecidas do primeiro presidente da Frelimo, Eduardo Mondlane, e do primeiro presidente do país, Samora Machel, para não falar dos casos mais recentes da morte do jornalista Carlos Cardoso e do economista Siba-Siba Macuacua.
MOÇAMBIQUE não é caso único quanto a mortes políticas não esclarecidas. Quem matou os Kennedy? Sá Carneiro foi vítima de acidente ou atentado? Mas isso não atenua o efeito de assombramento que este livro está a causar em Moçambique. É que não só o recurso à elimi-nação física parece ter sido uma componente "normal" da luta política no seio da Frelimo, como também - o que é bem mais importante - não está garantido que o macabro desfile da morte tenha terminado.
À luz disto, este livro coloca dois desafios exigentes à sociedade moçambicana.
O primeiro dirige-se aos cientistas sociais e históriadores moçambicanos, alguns dos quais já escreveram sobre o período analisado no livro sem considerarem nenhum dos factos relatados nele e reforçando, assim, a história oficial.
Espera-se deles que ponham mãos à obra e que, com critérios ainda mais exigentes dos deste livro, reinterpretem os factos da história contemporânea do país. Todos anseiam por ela e especialmente os mais jovens que encheram as sessões de lançamento do livro.
O segundo desafio dirige-se à sociedade política.
Por mais doloroso ou difícil que seja, é urgente criar uma Comissão de Verdade e de Reconciliação na qual as atrocidades do passado sejam reveladas, mesmo que implique impunidade criminal.
Se tal não acontecer, continuarão a surgir livros do teor deste e, com isso, os moçambicanos, sobretudo os mais jovens, ficarão impossibilitados de saber se se revêem no lado da vida ou no lado da morte da história contemporâneado seu país.
 

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