sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Moçambique - alguns momentos na voz do Jornalista Gouvêa Lemos

POR MAUS CAMINHOS

Por

Enquanto esteve na Beira, de passagem para Lourenço Marques, o ministro das Obras Públicas, engo. Arantes e Oliveira, percorreu a cidade em companhia do presidente da Câmara Municipal, dr. Janeiro Neves, e do secretário provincial, dr. Andrade e Silva.
Andou o sr. Ministro por um lado e por outro desta Beira em obras, desta Beira que precisa de obras, principalmente de obras públicas e, de certo, o engenheiro ilustre sentiu-se em casa ao percorrer uma cidade em contínua construção, uma cidade inacabada, uma cidade-estaleiro.
Andou o sr. Ministro por maus caminhos e andou muito bem, pois sabemos que essas andanças lhe quadram ao feitio além de condizerem com a função. E também porque a Beira, só por si, justificaria um ministério de Obras Públicas, tal como o sr. Ministro, certamente ficou a pensar, quando terminou a sua rápida corrida por ambas as margens do Chiveve.
Por nossa parte, ficamos a pensar em que talvez tenhamos razão se ficarmos com a esperança nos resultados possíveis desta corrida ministerial pelos maus caminhos da Beira. Todos nos dizem e nós acreditamos que o engo. Arantes e Oliveira, além de técnico competente e de conceituado homem público, é pessoa de boa vontade e coração, que não deixará de se lembrar com interesse construtivo e solidariedade activa, desta jovem cidade que lembra uma rapariga partida, engessada, com muletas.

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Notícias da Beira –Pág. 3 – 17 de Setembro de 1966

 

REPETINDO UMAS COISAS ÓBVIAS - Pegue-se no futuro de Moçambique...

Por


"1963 X 2012" ou "1963 = 2012"
Pegue-se no futuro de Moçambique, de que tanto devemos cuidar, e como quem olha um poliedro, miremos-lhe as faces, uma por uma: sempre havemos de constatar uma necessidade urgente e iniludível, a condicionar e a implicar-se em todas as outras necessidades e chama-se ela desenvolvimento económico.
Pense-se na promoção social das populações, de que vemos gentes de vários feitios ocupar-se por formas diversas e com intenções diferentes, e logo se sente que pouco ou nada poderá fazer-se, se essas populações não forem promovidas economicamente.
Fale-se em consciencialização política ou esclarecimento cívico dum povo, para o habilitar a exercer direitos consignados na lei, e imediatamente se vê que a quem se aplica não tem um nível económico exigido.
Lembre-se a instrução, indispensável ao homem moderno, urgindo sobretudo onde ela tem de começar pela alfabetização de milhões de pessoas, ao mesmo tempo que deve exercer-se também em graus superiores, para constituição de elites intelectuais e formação profissional, e logo nos assustaremos de pensar o que haverá de ser ocupação adequada de quantos forem saindo das escolas, dos institutos, dos liceus, das faculdades universitárias, se um vasto programa de instrução não for acompanhado, apoiado e justificado por um surto simultâneo de desenvolvimento económico.
Veja-se como será inválida qualquer actividade séria no campo da saúde e da higiene, se a massa populacional sobre a qual se exerce não tiver possibilidade de elevar o grau da sua saúde colectiva, se não conseguir apurar os seus hábitos de higiene, se não tiver meios materiais e não dispuser de processos técnicos que lhe assegurem um estado aceitável de sanidade, se, em suma, a sua situação económica não lhe permitir praticar as teorias, dar continuidade às práticas e efectivar os seus resultados.
Repare-se em como será inviável a elevação espiritual de quem não tenha da vida uma concepção diferente da que lhe dá a preocupação da sobrevivência.
Ora, estas coisas tão simples como todas as de bom senso preocupam., afinal, quantos sejam conscientes e se encontrem em Moçambique e fazem que ninguém de boa fé possa admitir a fuga às obrigações que tais realidades impõem.
Moçambique tem no seu território enormes capacidades de riqueza, umas conhecidas e muitas apenas adivinhadas, mas sabendo-se de todas que são mais que suficientes para dar aos seis milhões e meio que aqui vivem e aos mais que vierem a viver excelentes condições económicas. Esse potencial tem de ser utilizado. Vai ser utilizado. Se não se fundasse nesta determinação, nenhuma política se justificaria.
O remédio de todos os males não está no processo simplista de aumentar salários; o que se impõe é o aumento da produção, a criação de riqueza, para se enfrentarem então os problemas da sua melhor distribuição, seja através de salários, seja na participação de lucros, seja pelo sistema que o povo escolher.
O que tem de haver é aquela certeza acima referida, generalizada e por todos vivida, de que o homem de Moçambique usará a riqueza que Moçambique oferece, parecendo-me, por isso, inoportunos certos rumores de pessimismo, que se manifestam até para condenar iniciativas daqueles que acreditam no futuro desta sua terra, baseando-se os velhos do Restelo em que os tempos vão muito maus.
Se os tempos vão muito maus, terão de vir a ser bons, mesmo contra a vontade de alguns.

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano IV, nº 96, 28 de Setembro de 1963, p. 10]

OS PSEUDOS

Por

 

Eis que nesta Lourenço Marques tão garrida apesar dos pesares, remirando-se na baía nem sempre espelhada do Espírito Santo, encanudando e frisando os polanas e os somerchildes e escondendo os caniços, pupulam cada vez mais pululantes os pseudos.
É encantadora, chega a ser comovente a desfaçatez com que actuam livremente, muito livremente aliás, com uma liberdade só deles, certos pseudo-intelectuais, sem um mínimo de dignidade intelectual, que são pseudo-jornalistas, fazendo dos jornais postigos de delação, que são pseudo-escritores, escrevendo sandices com citações mal digeridas à mistura, que são pseudo-patriotas batendo-se por que se espete com a Pátria num atoleiro. São até, nas horas vagas, anti-racistas, generosamente, magnânimamente, como seres superiores que se julgam, detentores do direito a tais abdicações, mas quando se lhes mostra que mesmo nessa pseudo-generosidade paternal há racismo, os pseudo-humanistas enfurecem-se e gritam. E, em situações taís, pode acontecer que peçam uma balança para pesar encéfalos ou uma guilhotina para cortar cabeças, invocando Darwin em latim mal copiado ou Fidel Castro em português sem gramática. Isto é, quem for de cor diferente leva poucos miolos, quem for de opinião diferente fica sem miolos nenhuns. Mas não são maus homens, os pseudos. Até dão esmola aos sábados.
Oh! como andam activos, os pseudos!
Vem um, e de pera em punhal, ameaça com«el paredon» em estilo cubano os colegas e os «grupinhos» (os «grupinhos» são as suas varizes) da «Imprensa contra a Nação». Mal da Nação se a «Imprensa pela Nação» fosse a que ele abrilhanta.
Vem outro, e - tem graça! - também de pera em naifa, ruge impropérios contra quem chama traidores e antipatriotas (pobre da pátria que o pôs, se não fosse melhor servida!), sugere o fechamento de jornais, talvez porque se negaram à sua prosa que não escolhe poiso e esquecendo na precipitação polémica que, até porque isto de políticas é, como ele bem sabe, coisa sujeita a grandes contingências e reviravoltas, sempre será melhor haver mais jornais que menos, não só para os jornalistas mas até para os pseudos.
Oh!, senhores! como eles andam mausões!...
O pior é que - e só por isso eu dedico estas linhas aos pseudos - eles berram, barafustam, gesticulam e esbravejam e devem cada vez mais considerar-se certos e infalíveis, perante o silêncio de quem não quer e não pode, pô-los nus na praça pública, revelando-lhes a estatura e as mazelas.
Acabavam-se os pseudos. Calavam-se os activos, desiludiam-se os passivos, divertia-se a multidção, era uma santa higiene.

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano IV, nº 77, 18 de Maio de 1963, p. 12 e 11]

NEGRÓFILOS E NEGRÓFOBOS

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Ninguém é obrigado a conhecer esta matéria, trata-se de coisa novíssima.

Assim como, a todo o momento, a ciência, em permanente evolução, em eterna busca e ininterrupta conquista, nos oferece mais um ramo, um diferente caminho, também a ignorância - oh! a bruta, a fera, a mexida ignorância - nos revela uma novidade, nos desvenda uma vereda inesperada, nos agride com um atrevido rebento.

E nós, os pobres homens, trocamos os olhos entre os pratos da balança, num deles Einstein, sereno, esclarecendo o Universo; no outro, D. Cretino Polit y Castro, aos pulos, não deixando a balança quieta.

A mim, por exemplo, chamaram, outro dia, negrófilo. Fiquei aflito, quer será isso, meu Deus, fui ver ao dicionário. Não porque eu fosse incapaz de recorrer à etimologia, por acaso sabia muito bem decompor a palavrinha, negro é preto, filo vem do grego, philos, quer dizer amigo, negrófilo seria amigo dos negros, nada de mal, pelo contrário, eu era uma pessoa decente, bem formada, um tipo fixe, sim senhor.

Ora o dicionário confirmou o meu humilde saber, fiquei sem perceber qual fora a ideia de me acharem aquele senão. O Cândido de Figueiredo só acrescentava que negrófilo também se chamava ao partidário da abolição da escravatura, mas isso não podia ser, olha o disparate, escravatura já não há.

Cismei uns minutos, não muitos, que eu por acaso até gozo de uma certa agilidade mental, e optei por averiguar o que seriam os meus acusadores, o que sentiriam, o que pensariam, para me censurarem aquilo. (Note-se que eu nem estava zangado ou ofendido com eles, pois se tratava, inegavelmente, de pessoas generosas, concedendo-me imerecidas vantagens no seu julgamento; só é pena, diziam, que seja negrófilo).

Claro está - concluí eu - que verberando em mim tal coisa, os meus estimáveis juízes devem ufanar-se do contrário: o antónimo de negrófilo, não preciso de perguntar a ninguém, é negrófobo. E senhor desta descoberta, iniciei-me na nova ciência, trémulo de emoção investigante. Mentalmente, espichei o indicador direito e apontei para mim: eu sou negrófilo; eles são negrófobos, e apontei para eles.

Cândido de Figueiredo sorriu-me e confirmou: negrófobo é o que tem negrofobia; negrofobia é ódio aos negros: Ai!!! que susto!...

Juro que tive um arrepio de horror, quando cheguei ao fim do meu ordenado raciocínio. Não por mim, que estou a coberto da lei, mas por eles, coitados, pessoas consideradas sérias, com responsabilidades, usando um ar severo e uns nomes respeitáveis (bem sei que alguns são uns pobres vagabundos, embora de analfabetismo muito actuante, em todo o caso seres humanos), por eles, sim, pobrezinhos, fiquei eu assustado, pois se a Lei é Lei e a Constituição vale, se a Civilização ocidental, se os princípios cristãos que enformam a nossa estrutura social, etc., se a nossa blandícia de costumes, oh coisa doce sem par no Mundo, se tudo isso, que a gente sabe e ouve e lê, tem valor, se, enfim, há sinceridade nisso; então não resta dúvida nenhuma de que esses desgraçados - que pena eu tenho das famílias! - estão aqui, estão todos presos.

A Polícia deve andar de olho neles. Com certeza, tem os negrófobos todos fichados e sob constante vigilância, pois que suspeitos são eles, os insensatos, de traição ao que há de mais sagrado, ao sangue dos ancestrais, à própria razão de ser da Lusitanidade, alastrando por todos os continentes, diversificada em tantas raças, mais feita de negros que de brancos.

Ai! dos negrófobos! Ai! dos traidores!
Que segurança dá ser negrófilo, estar-se a coberto da Lei, protegido pela Autoridade!

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano 4, nº 68, 28 de Fevereiro de 1963, p. 12 e 10]
 

A PROPÓSITO DUM COLÓQUIO: DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO E PROMOÇÃO SOCIAL

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Assisti, há dias, a um colóquio que se realizou na sede da Associação dos Naturais de Moçambique, sobre o tema de«promoção social das populações», do qual se ocupou, primeiro, o dr. Velez Grilo, em interessante dissertação, ficando, depois, à disposição das numerosas pessoas presentes, para o debate que se seguiu.
Sem pretender atribuir a ninguém as culpas do facto, quero aqui somente registar um engano grave e geral, que veio desde o princípio e se manteve a dominar o colóquio até ao fim, reflectindo, aliás, uma confusão estranhamente generalizada na opinião pública, possívelmente em resultado da acção mal definida de certos serviços.
Assim, aconteceu no colóquio que a maior parte das pessoas se ocupou num dilema incrível: desenvolvimento económico ou promoção social?! Qual mais importante? Qual mais urgente? Antes, já se falara de instrução, e, por isso, houve quem, solicitamente, explicasse que isto de promoção social é coisa que tem de ser feita com um bocadinho de tudo, algum desenvolvimento económico, algum ensino, enfim uma saladinha jeitosa, sem mão pesada nos temperos; tendo sido admitido que sim, senhor, assim era, acrescentando-se mesmo, com algum espírito científico (usando-se já uma técnica não de salada mas de cocktail) que assim era até certo ponto.
Mais adiante, no decurso do mesmo colóquio, perante as arremetidas teimosas dos campeões do desenvolvimento económico, preferindo-o até à promoção social, foi a tolerância ao ponto de se admitir, que, lá diz o ditado: «casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão»... Donde me pareceu querer-se insinuar que, de facto, é conveniente que as pessoas tenham algo de comer para se pensar em promovê-las socialmente. Será isto?!
Por outras palavras, entende-se que, se queremos ensinar pessoas a estar à mesa, convém que antes lhes justifiquemos o acto de se sentarem a ela.
Em resumo: salvo o devido respeito por todos os intervenientes, deu-me o referido colóquio a impressão de se estar fora ou não se querer mesmo entrar nas realidades que nos deviam ocupar não só por palavras, mas, principalmente, por obras, comportando-se ali toda a gente, afinal, como se não soubesse muito bem o que é essa coisa a que chamam promoção social. E para aumentar a confusão ainda veio decisivamente contribuir a informação de que no estudo do Plano de Fomento se sentiu a necessidade de constituir uma comissão de promoção social, dando a ideia de que superiormente se verificou que a promoção social também é necessária ao fomento da economia e não esta uma condição indispensável, a primeira e a mais importante de todas, para se alcançar aquela.
Claro que eu estou a falar de Moçambique, porque suponho que era de Moçambique que no colóquio se tratava. E, neste pressuposto, não concebo, não sou capaz de acompanhar o raciocínio, as especulações e o fraseado de quem quer que seja que pretenda propor, solicitar e estudar soluções para a promoção social dos moçambicanos sem partir da elevação do nível económico da sua vida. Pois o que será promoção social de quem precisa, antes de mais coisa nenhuma, de ser alimentado, de ser alojado convenientemente, de ter saúde e de ser instruído?! Não vejo nem ninguém vê como se possa educar um povo, elevá-lo socialmente, sem lhe dar o pão suficiente, a casa digna, o hospital onde se trate e a escola onde aprenda a ler. Tudo quanto se fizer, antes de isto, ou se pretenda fazer à margem disto, será lirismo, será o carro à frente dos bois, será insensatez. Pois que na consecução desses bens essenciais já se contém uma valiosíssima elevação social, porque económico-social será esse progresso, que, aliás, todos o sabemos, Santo Deus! não pode ser progresso económico sem resultar em elevação social, nem pode ser progresso social sem ter sido elevação económica.
Ora, no caso que nos interessa - os povos de Moçambique - a promoção social deles terá de ser e será, por certo, o verdadeiro objectivo, a única meta de toda a acção governamental, de todo o trabalho público, de toda a acção consciente dos cidadãos responsáveis. Promoção social não pode ser o âmbito do trabalho limitado duma pequena repartição encaixada numa comissão que estuda um plano de fomento; a promoção social das populações está acima e à frente desse fomento. Para a promoção social das populações se fazem estradas, se constroem hospitais, se erguem escolas, se criam universidades, se contratam professores, técnicos, cientistas; para a promoção social das populações, há impostos, há governos, há política. Temo verdadeiramente que os nossos colóquios não cheguem.
Não sei ao certo donde nasceu agora esta ideia de promoção social como ciência infusa, mas desconfio, já disse, que resultou de recentes serviços de acção confusa. Entretanto, o que penso é que seriam de enorme utilidade aqueles colóquios em que pudesse participar livremente a opinião pública de Moçambique - através dos seus órgãos legítimos, os jornais -tendo por temas todos os capítulos desse programa geral e completo que se pode chamar de promoção social das populações; certamente apareceriam vozes numerosas e de valia a debater os assuntos de economia, saúde, instrução e cultura, enfim, a falar de promoção social.
Para terminar darei um exemplo do que pretendo referir: naquele coloquiozinho, a certa altura, fomos informados de que, por cálculo do administrador Rita Ferreira seriam necessários ao Governo 750 mil contos por ano para prestar às populações rurais uma assistência proporcional aquela de que beneficiam as populações urbanas. Isto é, para se resolverem os problemas mais urgentes e mais gritantes do mato, seriam gastos 750 mil contos anualmente.
Esta revelação deu-me uma alegria enorme no primeiro impacto e fez-me ficar tristíssimo quando pensei melhor. A alegria nasceu-me de ter achado barato; eu pensava em muitos milhões de contos, coisa de americanos... Mas fiquei triste, logo que me lembrei que, afinal, nem isso se gasta, porque não se pode gastar quando se distribuem verbas segundo uma escala de valores e numa ordem de prioridades, etc e tal, continuei pensando por aí fora, mas nem vale a pena escrever, não é verdade?
Ora, esta! Setecentos e cinquenta mil contos... Só?!
Então não me falem de promoção social.

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano IV, nº 78, 25 de Maio de 1963, p. 12]

 

AINDA AS LOTARIAS: MAIS UMA SUGESTÃO

Por


O assunto «lotarias» continua em pauta e, pelo que se lê, teve o condão de interessar muita gente, que se manifesta com entusiasmo nas colunas dos jornais. Não quero ignorá-lo e já que sobre ele também tenho opinião, aqui a ofereço.
Ponho o problema assim: a lotaria é um jogo de azar; os jogos de azar são um vício; logo, a lotaria é um vício. Por isso, a solução mais corajosa e mais conveniente à sociedade que constituímos em Moçambique seria proibir as lotarias todas, terminantemente. Mas poderá alegar-se (e teremos que aceitar, como a tantas outras vergonhas e covardias colectivas, chamadas «males necessários») que a lotaria é útil, pois que da sua exploração basicamente desonesta, se colhem proventos destinados a sustentar obras de assistência social. Pode-se, assim, considerar a lotaria um mal necessário, consequentemente de falta de justiça social e, neste pé, admita-se, encarando-se o problema com o inválido espírito cordato, que solicita «do mal, o menos».
Agora, interessa averiguar o que mais convém, no caso de Moçambique: se a continuação da venda, aqui, da lotaria chamada nacional, com a supressão inevitável da lotaria dita provincial, se a proibição daquela venda e a ressureição da finada lotaria de cá. Não percamos tempo a cuidar das possibilidades de coexistência de ambas no nosso mercado, pois provaram os factos a sua impraticabilidade e até o Provedor da Santa Casa da Misericórdia, que esteve cá, afirmou que a lotaria provincial só se manteve bem enquanto não teve concorrência.
Neste ponto, vejamos o que pesa a favor e contra cada uma das lotarias:
A favor da «provincial»: - contribuiu valiosamente para a Assistência Pública de Moçambique e parece que só começou a contribuir menos, quando passou a vender-se mais, aqui, a lotaria da Metrópole;
- Os seus prémios são pagos obrigatoriamente cá, em moeda aqui emitida, e não implica grossas transferências de dinheiros para fora da província, nem por parte da Administração da própria lotaria, nem por intermédio das firmas que se dedicam à sua venda;
Contra ela: - só conta o facto, comum às outras, de constituir um vício, o da jogatina generalizada, ao alcance de todos.
Considera-se a favor da lotaria nacional o seguinte: - contribui substancialmente para manter a obra assistencial da Santa Casa da Misericórdia, na Metrópole e também ajuda valiosamente a Assistência de Moçambique;
Em contrapartida: - como é lógico e admissível canaliza para a Metrópole um nutrido caudal de dinheiros, afectando notavelmente a economia da província, que, em vez de ser sangrada, precisa de ser robustecida; numa época em que tanto se procura evitar importações, reduzindo-as ao mínimo e, às vezes, abaixo desse mínimo, não está certo que se importem toneladas de bilhetinhos coloridos, bem caros, fazendo-se um negócio em que matematicamente se perde, pela própria natureza do jogo;
- por outro lado, não menos importante -ou mais grave ainda - possibilita esssa lotaria o exercício ilegal de transferências, em rendosas negociatas, feitas por quem não tem no comércio de lotarias o simples interesse desse ramo. - É grave o que digo? - Sim, é grave. Mas fala-se, por aí, muito, dum verdadeiro mercado negro de cambiais e daqui chamo para isso a atenção de quem tem o dever de averiguar o facto e punir os «contrabandistas de escudos», quer os que fizeram o jeito, castigando com todo o rigor, seja quem for que tenha participado nas operações. É difícil, bem sei; mas vale a pena, pois é altamente injusto, é criminoso que, enquanto gente pobre tem dificuldades, ou, pelo menos, tem de cumprir formalidades legais, ao transferir uns magros cobres para a família, simultâneamente a lotaria duma Casa que até se chama Santa, sirva de capa aos transfugas do capital e de veículo de evasão de verdadeiras fortunas.
Um inquérito a isto, feito por gente capaz e independente, é coisa que se impõe, com urgência.
Entretanto, para que à minha prosa não falte nenhuma característica de crítica construtiva - coisa mal definida que se exige muito aos jornalistas - aí vai a indispensável sugestão:
- Proíba-se a venda, em MOçambique, da Lotaria de Lisboa; restabeleça-se a Lotaria Provincial; e ponha-se esta a contribuir com uma percentagem para a Santa Casa da Misericórdia. Embora não faça muita falta, à Administração da lotaria nacional, este tributo - como se conclui do que disso o dr. Melo e Castro - com ele ficariam tranquilas as nossas consciências, pois não seria furtada, à obra assistencial da Santa Casa, a nossa ajuda. Assim, continuaríamos a colaborar com essa benemérita instituição, sobre a qual, conforme palavras do seu Provedor aqui proferidas, pesa «a maior parte da responsabilidade pela protecção social da cidade de Lisboa, onde vão desaguar infelicidades e carências de todos os territórios portugueses».
Ao fim e ao cabo, só se estragaria um negócio, que não justifica especiais contemplações, em face do interesse geral.

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano 3, nº 46, 31 de Março de 1962, p. 1 e 11]

PARA UM RETRATO DA MINHA AMIGA CIDADE (última parte)

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O compadre Tomás apanhou-o na queda e meteu-lhe um ombro sob o sovaco, puxou-lhe o braço à roda do pescoço e levou-o, de pernas bambas, pés a arrastar, os dois aos bordos, numa solidariedade forçada. O compadre Tomás, enfermeiro do Quadro de Saúde, ia a pensar na vida do João e perguntava-se a si mesmo, se fazia bem ou mal em levá-lo a casa. Ao mesmo tempo ia reparando em que a viagem, assim, era nervosa e cansativa. Quando chegaria ele, Tomás, à sua casa? E pensava, Tomás, que entraria de serviço na manhã seguinte, bem cedo. João resfolgava. Que idéia a tua João!

*

Por mim, minha amiga cidade, vou apagar a luz na mesa de cabeceira. Cansado e tentado a não ter esperança. Mas sei que acordarei com um sol doirado e quente, em céu escandalosamente azul, a envolver-te completa, nos arrebiques e maselas, no riso e no choro, na música e nos gritos, nas flores e nos charcos, nos prédios e nos barracos, no amor e na briga de todos os contrastes, dando-se na mesma dádiva às trezentas e cinqüenta mil pessoas de que és feita. E o sol, minha amiga, minha mais bela cidade do mundo, o sol nasce agora às seis e trinta e seis. Nasce fatalmente!

FIM

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