sábado, 17 de novembro de 2012

Escravos e desculpas

17/11/2012

 

A Asa da Letra

Por Mia Couto

A reclamação de Joaquim Chissano de que os países europeus deveriam formalmente pedir desculpas a África pela escravatura abre espaço para algumas interrogações.
Ninguém pode duvidar do horror que foi a escravatura e de quanto alguns dos países europeus tiraram proveito dessa desumanidade. Persiste ainda hoje uma tendência em lavar esse passado e criar uma amnésia colectiva sobre essa mancha na história da humanidade. Na realidade, nenhuma desculpa formal poderá corrigir essa herança histórica. Recuperar o sentido da História e sugerir modos de rectificarmos o presente, juntos, Norte e Sul: esse pode ser o lado positivo dessa recusa em esquecer. É necessário lembrar, sempre e sempre, que os desníveis de desenvolvimento entre os continentes são resultado da História e não de qualquer diferença na natureza ou essência dos povos ou raças.
Mas a exigência de desculpas dirigida apenas a europeus pode ser problematizada. Não foram os europeus os únicos responsáveis morais e materiais pelo crime da escravatura. Se os europeus devem desculpas aos africanos, outros parecem estar igualmente em dívida com o passado. Na realidade, o tráfico de escravos africanos a longa distância já tinha sido inventado muito antes da chegada dos europeus a África. Foram os árabes os primeiros a escravizar milhões de negros da África sub-sahariana. Formas ignominiosas de racismo foram criadas e os africanos (que já eram pejorativamente designados de zanj) foram classificados como “povos de cor escura, nariz achatado, cabelo crespo e de muito pouca inteligência” (como referiu o escritor árabe Maqdisi)
O historiador tunisino Ibn Kahldun ainda no século 14 afirmava que “os negros são muito submissos e propensos à escravidão porque eles têm muito pouco que possa ser entendido como essencialmente humano e possuem atributos que são muito semelhantes aos dos mais estúpidos animais”.
Por outro lado, elites africanas participaram activamente e desde sempre no rapto e venda de seres humanos. De forma permanente e sistemática foi a cumplicidade de grupos africanos que permitiu e produziu a escravatura. Quem capturava e vendia os escravos do interior para a costa eram negros africanos. Como diz o historiador e economista Tunde Obadina “ a vasta maioria dos escravos arrancados de África foram vendidos por chefes africanos, intermediários e por uma aristocracia que viu nesse negócio uma extraordinária fonte de enriquecimento” Todos estes grupos esclavagistas são, do ponto de vista moral, tão responsáveis quanto os europeus que participaram no tráfico humano.
O mesmo Tunde Obadina escreve: “Quando os britânicos aboliram o tráfico de escravos em 1807 não foram apenas esclavagistas europeus que se opuseram mas toda a aristocracia africana que se tinha acostumado a fazer vida da venda directa e dos impostos cobrados sobre as caravanas de escravos que passavam pelos seus territórios”. José Capela refere a mesma reacção por parte de grupos internos de Moçambique que se rebelaram contra a interdição do comércio.
O assunto dos escravos é uma caixa de pandora. Abre-se a tampa e emergem fantasmas de diversas cores e tamanhos. Não podemos esquecer que a religião muçulmana e católica durante séculos foram usadas para abençoar a escravatura. Todos os povos em todos os continentes criaram e mantiveram formas de escravatura. Dentro de Moçambique séculos de escravatura doméstica beneficiaram elites internas. Uma grande parte dos moçambicanos é descendente de escravos. Mas uma outra parte é descendente de vendedores de escravos. A questão, em todos os casos, dentro e fora de África, é a seguinte: não podem ser responsabilizadas gerações presentes por todos esses processos históricos do passado.
Além disso, a escravatura não é coisa do passado. Ainda hoje persistem formas escabrosas de tráfico de escravos entre países africanos. A escravatura ainda hoje se pratica na Mauritânia; e, no Golfo da Guiné, são surpreendidos, com alguma frequência, navios negreiros cuja “mercadoria” circula na África Ocidental. Ou seja, para encontrar o mal não é preciso olhar para os outros e para o passado. Talvez fosse melhor preocuparmo--nos com estas aberrações, que são presentes e nossas, muito nossas. É demasiado simples procurar vítimas e culpados num único território geográfico. As desculpas, se as tem que haver, deveriam vir também de dentro de África.
SAVANA - 04.03.2005

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