terça-feira, 20 de novembro de 2012

BOM GOSTO PRECISA-SE!

05/09/2011

 

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Namp11 CARTA DE LEITOR
Apesar de viver em Maputo há mais de 12 anos, Nampula continua a ser a minha cidade de coração.
Não apenas pelo passado, por ter nascido e crescido lá, mas pelo desejo que tenho de voltar a viver lá num futuro próximo. É tudo uma questão de identidade: Identifico-me com a cidade, pessoas, com a história, cheiros e sabores, enfim com tudo que distingue esta cidade das restantes.
É por isso que não perco uma única oportunidade de viajar à Nampula e faço-o duas a três vezes por ano. Nampula foi sempre uma cidade agitada, mas controlada. Hoje parece que esse controlo desapareceu. A agitação tomou conta de tudo, incluindo as referências arquitectónicas da cidade. Como qualquer cidade pequena ou grande deste país, Nampula possui suas referências arquitectónicas, uma espécie de cartão de visita para seus visitantes, o orgulho da sua gente.
No passado e sempre que alguém me pergunta sobre Nampula, para além da culinária e mulheres bonitas e simpáticas eu falava da feira de artesanato aos domingos, da Catedral, do edifício do Governo, da rotunda (Praça da Liberdade), do jardim do Parque dos Continuadores, do Estádio 25 de Setembro, do Museu Etnológico, etc.
Hoje, com excepção de um ou outro marco, tenho muitas dificuldades de usar estes locais como referência da beleza de Nampula. A feira já não é mais o que era. Vende-se lá tudo menos obras de arte.
Podemos até encontrá-las, mas não com mesmo bom gosto característico e que tornavam o local na mais famosa e sofisticada feira de artesanato do país.
Não tenho a certeza se foi a qualidade do artesanato que desapareceu, se os artesãos perderam inspiração ou se o ambiente envolvente deixou de ser digno de uma feira daquele calibre de outrora.
Antes a feira realizava-se no jardim que separa o edifício do governo de
Nampula da catedral; que quanto a mim (a par da rotunda e ambiente envolvente) o local mais belo de Nampula; uma verdadeira obra de arte e lição de bom gosto. Aquele jardim já foi verde e os edifícios em seu redor brancos que nem neve: uma combinação perfeita para uma fotografia memorável.
A feira no jardim era um momento especial; era o ponto de encontro de todos nampulenses, uma passagem obrigatória para as famílias no regresso do cemitério, da igreja, do mercado, a caminho de mais um almoço de família ou do Estádio 25 de Setembro.
Lembro-me até de situações de pessoas que vindas de outros locais do país programavam suas viagens de regresso só depois de visitarem a feira.
Lembro-me ainda que muitos dos brinquedos que tive na infância eram Made in Mozambique e comprados na feira.
Tudo moçambicano, matéria-prima, software, capital, tudo moçambicano. Hoje
a feira já não está mais lá, naquele espaço estão a nascer infraestruturas de recreação. Do lado da igreja foi construído um campo de desportos de salão, do lado do Governo parece me que estão a construir um parque infantil.
Ora, não sou contra o progresso ou maximização de espaços, mas avaliando pela qualidade do campo já erguido, noto um défice gritante de bom gosto nas pessoas que estão à frente da iniciativa.
O referido campo não tem estética nenhuma e retirou a pouca beleza que ainda restava naquele jardim. As pessoas que conheceram Nampula na década 70, 80 e princípios da década 90 sabem do que estou a falar. E não são saudades do tempo colonial, como muitos podem pensar.
Sou fruto da revolução moçambicana, e a ter saudades, são saudades da época das trevas em que não tínhamos muitos recursos humanos e financeiros mas ainda conseguiam-se fazer coisas com alguma estética. Penso que as coisas não devem ser apenas feitas porque há um espaço disponível ou porque há necessidade de se construir algo. É preciso ter noção de espaço, enquadramento e harmonia, de passado e futuro.
O exemplo da feira que já não é a melhor de Moçambique e do jardim que separa dois majestosos edifícios, que eram o orgulho de Nampula, é apenas um entre vários. Poderia vos falar da rotunda que perdeu toda sua beleza. Disseram me que estão a erguer no centro da rotunda uma estátua em homenagem a Samora Machel.
Sobre isso não me vou debruçar porque me parece uma exaltação excessiva (com cheiro a lambebotismo) de uma figura que já está muito bem representada em Nampula.
Basta ir até à Academia Militar de Nampula para verificar quão bem representado está Samora em Nampula.
Mas podia vos falar do jardim do parque popular, de longe a área mais verde do centro da cidade de Nampula. O seu actual aspecto é uma tristeza. Sem comentários.
As vezes questiono-me sobre onde é que os noivos tiram fotos em Nampula, pois o jardim do parque era principal referência. Mas a degradação deste jardim começou há já algum tempo.
Lembro-me que, há dois ou três anos atrás, por ocasião do dia da cidade, o município promoveu a abertura de barracas e quiosques naquele recinto, sem respeitar rigorosamente princípios básicos de preservação ambiental e saneamento do meio: um autêntico desastre ambiental.
Autêntica falta de consideração para com a cidade no dia do seu aniversário.
Mais para baixo está o estádio 25 de Setembro, palco de grandes duelos envolvendo o Namutequeliua e Muahivire.
Já estive em grandes estádios dentro e fora de Moçambique, mas a emoção vivida em Nampula é única. O estádio foi condenado à morte.
Sempre teve problemas no sistema de esgotos, mas o amor que recebia dos seus gestores, aliado à classe dos artistas, à qualidade do espectáculo, o orgulho e respeito dos seus espectadores, tornava-o um verdadeiro teatro de sonhos. Hoje já não é. E talvez isto explique a situação das equipas de Nampula no Moçambola.
O estádio está morrer e com ele a história do futebol macua no período pós independência. Muita pena. Podia falar de muitas outras referências que estão a desaparecer devido a acção ou inacção de quem por direito tem a obrigação e a responsabilidade de cuidar dessa majestosa cidade, mas fico por aqui.
Isto tudo para vos dizer que já não tenho o que dizer a quem me procura para obter informações sobre o que ver ou visitar em Nampula. Por outras palavras:
Nampula cidade não é mais uma referência turística recomendável. É sim uma cidade com novos hotéis, de fácil acesso por terra e por ar, alguns bons restaurantes (mas nada que se compare com o passado) pubs interessantes, com muitas universidades.
Mas sem referências de realce, sobretudo para quem quer fazer turismo ou levar alguém a conhecer a cidade. Mais grave que isso é o perigo da história.
Nampula província e cidade são muito pouco referenciados nos livros de história em Moçambique. Tudo que se sabe de Nampula antes de 75 é aquilo que as pessoas dizem, com agravante de muitas dessas fontes estarem a desaparecer.
Quando leio estórias de Lourenço Marques antes da independência, os locais de referência dos grupos de jovens negros, lembro-me das estórias do Clube Africano e outros locais em Nampula que o meu pai e tios nos contavam.
São estórias idênticas de bravura, exaltação cultural e de identidade, mas sem lugar nos livros de história de Moçambique. É como se Nampula não tivesse história. E tudo isto agrava-se agora com desaparecimento gradual das referências físicas, com a falta de conservação e sobretudo de bom gosto na sua racionalização.
A municipalização tão desejada não esta conseguir travar isso. Muito pelo contrário, grande parte da beleza da cidade de Nampula está ser posta em causa pelas políticas municipais, ou pela ausência de politicas, sobretudo no domínio da cultura e do turismo, duas áreas de intervenção pública relevantes para promoção da identidade de um povo e de uma cidade.
A cidade está crescer, um crescimento que agrada e preocupa. A cidade está maior, tem mais gente, o comércio está mais vibrante. Mas é um crescimento desordenado, sem nenhuma visão do que se pretende que seja, um crescimento poluidor, sem autoridade.
Tudo isto nos torna incapazes de evitar a desordem causada por hábitos de outros povos, que, inspiradas nas características das suas cidades de origem, estão a transformar Nampula num grande bazar.
Uma verdadeira cidade loja. Como para todo mal existe um remédio, de certo que o município tem um plano estratégico, ou com qualquer outra denominação.
Quanto a mim, isto não se resolve com um desses planos estratégicos comuns, que de estratégico não têm nada. A ser estratégico ele devia se concentrar nos factores que estão a desvirtuar o sentido estético da cidade, ou seja, como usar os escassos recursos que a cidade possui para preservar sua história e usar essa mesma história (representada pelas pessoas, cores, edifícios, sabores ...) para se destacar e mobilizar recursos.
Mesmo sem ser especialista nesta área penso que a resposta está na forma de governar. Governar não como um simples ou complexo exercício burocrático atribuído a políticos em comissão de serviço e tecnocratas, mas como a realização prática de uma visão inspirada numa cultura, tradição, na valorização do belo e no bom gosto.
Enfim tenho uma visão romântica de governação, e é o que eu desejo para Nampula.
Um abraço fraterno de um nampulense de gema.
Silvestre Baessa Filipe Júnior
WAMPHULA FAX – 06.09.2011

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