sexta-feira, 23 de novembro de 2012

A destituição de Lugo, vista do palácio (Parte II)

 

O Informador, em parceria com a Agência Pública, está a publicar uma série de grandes reportagens sobre o impeachment de Fernando Lugo, ex-presidente do Paraguai. Estes trabalhos resultam de três meses de investigações e relatam ao detalhe os acontecimentos que levaram à mais recente destituição de um presidente latino-americano. Esta é a segunda de três partes desta série, que irá ter continuação em Dezembro
Por Natália Viana
Há cinco meses, no dia 22 de Junho de 2012, tinha início, formalmente, o processo de impeachment contra Fernando Lugo, presidente eleito 4 anos antes no Paraguai. A Câmara dos Deputados fez a acusação formal, declarando que o ex-bispo estava desempenhando mal as suas funções. O libelo acusatório, no entanto, não continha nenhuma prova concreta, limitando-se a afirmar que as causas mencionadas “são de pública notoriedade, motivo pelo qual não necessitam ser provadas” (clique aqui para saber mais). Eram 18 horas do dia 21 de Junho A defesa teria 17 horas para elaborar seus argumentos e duas horas para defendê-los diante do Senado, que serviria como juiz no dia seguinte.
A notícia do juízo político – a versão paraguaia do impeachment – foi oficializada naquela noite e timidamente alguns grupos começaram a chegar à Plaza Independencia, no centro de Assunção, que fica diante do Congresso. Aos poucos a aglomeração, foi tomando corpo; na manhã seguinte, antes do meio-dia, quando a defesa teria início, já reunia dez mil pessoas.
“Nós nos auto-convocámos”, lembra Katia Maria Guggiari, uma jovem baixinha, de cabelos longos como a tradição política de sua família. Neta de um dos últimos presidentes liberais a governar o Paraguai, José Patricio Guggiari Corniglioni (1928-1932), Katia, contrariando boa parte da tradicionalíssima família – com quem rompeu relações – foi para a praça munida dos conselhos de um primo que havia vivido sob a ditadura de Stroessner. “O mais importante”, lembra ela, “era ficar longe da entrada do Congresso quando anunciassem o resultado do juízo político, porque a polícia iria reprimir imediatamente”.
Leia a parte 1: O bispo e seus tubarões
O que levou Katia à praça não foi apreço pelo ex-presidente Lugo, por quem ela mantém indisfarçável antipatia. “Eu estava absolutamente ofendida com o que estava acontecendo. Passamos 17 anos de transição. Finalmente havíamos entrado na democracia e eles romperam com tudo em 24 horas”, diz ela. “Isso dói”.
Cinco meses depois, ela ainda guarda viva na lembrança o clima de tristeza daqueles dias. “Gente que não te conhecia vinha te abraçar e dizia ‘tranquilo, não está tudo feito ainda…’”, diz ela, que passou boa parte do tempo enviando torpedos para senadores do partido liberal: ‘meu avô está se revirando na tumba’. Os liberais, segunda maior força política do país, haviam fechado um acordo com seus inimigos de longa data, o conservador partido colorado, para levar adiante a destituição do primeiro presidente de centro-esquerda a chegar ao poder no país. “Depois disso foram muitas horas… Foram muito poucas horas, mas parece que foi uma eternidade”.
Dentro do prédio do Congresso, a Ordem do Dia circulava desde o amanhecer daquela sexta-feira, detalhando os procedimentos do juízo político– e demonstrando que se tratava de um acordo mais que fechado.
O procedimento – veja aqui uma cópia do documento – explicava que às 12 horas haveria uma sessão para escutar a defesa do presidente. Às 14:30 se constituiria um tribunal para decidir a admissão das provas oferecidas pelos dois lados. Às 15:30 uma sessão extraordinária para formular alegações, e às 16:30, a sessão extraordinária ditaria a sentença.
A Ordem do Dia descrevia até como seria o encerramento da última sessão: “Uma vez comprovados os votos requeridos se procederá a declarar o acusado culpável afastando-o do pleno direito de seu cargo”.
Nas 17 horas que teve para tentar refrear o juízo político, a equipe de defesa de Lugo interpôs um recurso de pedido de inconstitucionalidade na Corte Suprema de Justiça às 8:24 horas do dia 22 de Junho alegando que o direito de defesa não havia sido respeitado. A resposta chegou na segunda-feira seguinte, quando Federico Franco já comandava o país.
“Como se trata de um procedimento que tecnicamente não é jurisdicional, as garantias próprias do processo judicial, embora possam ser aplicáveis, não o são de maneira absoluta, mas parcial, com o objectivo de garantir o devido processo e o direito de defesa do acusado”, deliberou a Suprema Corte. E termina por indeferir, sem mais trâmites, o recurso de inconstitucionalidade. Veja aqui o documento.
Outro recurso, pedindo a anulação do impeachment, no qual foi anexada a Ordem do Dia que determinava a condenação do réu, também foi negado meses depois. O principal argumento da Corte Suprema é que o impeachment, por se tratar de um procedimento político, não tem a obrigação de seguir as normas de um julgamento comum – como o direito à ampla defesa.
Clique para ler a íntegra do recurso e a decisão da Corte.
Clique para ver a sessão de atas do Congresso.
Clique para ler o documento de condenação a Lugo.
LUGO, NO PALÁCIO; O VOTO NO CONGRESSO; O POVO NA PRAÇA
A manhã começou com uma frenética movimentação na residência presidencial, onde Fernando Lugo viveria por mais algumas horas. Desde às 4 da manhã já se reuniam ministros, secretários e amigos próximos do ex-bispo. Decidiu-se que ele deveria ir ao Congresso para enfrentar as acusações. Depois voltaram atrás. No final, a comitiva seguiu para o Palácio do Governo, onde esperariam pelo resultado da missão de chanceleres dos países da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), que chegara ao país na noite anterior, vindos da conferência Rio + 20, depois de ligações pessoais de Lugo para Dilma Rousseff e José Mujica, presidente do Uruguai, pedindo ajuda.
Do interior chegavam, ainda, algumas lideranças camponesas que vinham dar seu apoio a Lugo. “Aí não tinha mais nada de trabalho institucional. Estávamos ajudando a arrumar as coisas para receber esses líderes que vinham do interior”, lembra José Tomás Sanchez, ex-ministro da Função Pública. A vinda dos líderes sociais, embora a conta-gotas, assustava o Congresso e foi tema do acalorado debate, na noite anterior, apresentado pelo canal Telefuturo, entre o advogado de defesa de Lugo, Antonio Ferreiro, e o deputado colorado Oscar Tuma, principal advogado de acusação.
No programa ao vivo, o apresentador perguntou a Tuma se o rápido julgamento se devia ao temor que houvesse manifestantes na rua, o que poderia gerar uma reacção violenta – “o que todos nós tememos”. O deputado respondeu que sim. “Temos informações de que há mobilizações pagas, funcionários públicos que foram se manifestar em frente ao Congresso com o único objectivo de desestabilizar esse processo”.
Os rumores circulavam também nas conversas que tomaram a manhã entre os representantes da Unasul e os principais líderes políticos do impeachement. Em reunião com os dirigentes do partido Colorado, os chanceleres ouviram que o governo, “inviável”, tinha que acabar. “E que isso havia que ser feito rápido porque supostamente Lugo havia chamado elementos subversivos e violentos”, segundo relato do ministro do exterior argentino, Hector Timerman, ao jornal Página 12.
As informações de inteligência que chegavam ao palácio do Governo diziam exactamente o oposto: havia um plano para provocar um choque violento na praça da Independência, que aos poucos enchia-se de pessoas. A ameaça remetia ao chamado “Março Paraguaio” em 1999, quando sete manifestantes foram assassinados por franco atiradores quando protestavam contra o governo de Raul Cubas, naquela mesma praça.
“Havia gente infiltrada no meio dos manifestantes, para provocar um banho de sangue”, diz um militar que fazia parte da escolta pessoal de Lugo. Em uma das três entrevistas concedidas à Pública, o presidente deposto confirma: “Nós tínhamos essa informação de inteligência, inclusive da polícia, de que queriam repetir o cenário do Março paraguaio de 99, e o mesmo cenário de Curuguaty. Assim o último responsável seria o Executivo, dando consistência ao argumento da destituição”.
Algumas rádios populares haviam montado equipamento de som no meio da multidão com faixas de protesto e cartazes com os números dos celulares dos senadores e deputados – a ordem era mandar mensagens, com nome e sobrenome, pedindo que “votem consciente e respeitem a democracia”. As rádios transmitiam, alternadamente, a música-símbolo do nacionalismo paraguaio, a polca “Pátria Querida” e o julgamento no Congresso. “A praça estava cercada por baias de metal” lembra Katia Maria. “Quando cheguei, policiais que estavam em volta da praça revistaram a minha mochila. Estava tudo controlado”. Pendia fresca, sobre os manifestantes da praça, a dolorosa lembrança do Março Paraguaio.
Leia a parte 1: O bispo e seus tubarões
À mesma hora os chanceleres se reuniam com as lideranças do partido liberal. Segundo Timerman, sua principal preocupação era com a falta de tempo hábil para a defesa. Ouviram em resposta que deveriam ir embora do país. “Senhor, são 11 horas da manhã. Às 12 começa o juízo político. Há algo que vocês podem me dizer para ajudá-los a que essa situação não se agrave?”, perguntou Timerman. “Não”, ouviu em resposta. “A Constituição estabelece formas de fazer o juízo político, e não prazos”.
“Foram mal tratados”, resume uma fonte do Itamaraty. “Afinal, era uma missão de ministros do exterior, que foram até o Paraguai… E eles (os congressistas) falando que estavam fazendo tudo de acordo com a lei, que não precisavam provar nada…?”
Não apenas isso: naquela mesma manhã, Franco tomara a iniciativa de ligar para o embaixador brasileiro, na embaixada de Assunção, para conversar sobre o juízo político “em tom confiante”, segundo uma fonte do Itamaraty.
A ligação foi interpretada pelos governos vizinhos como prova da condenação antecipada a Lugo. “Franco chamou o embaixador do Brasil em Assunção para lhe dizer que nessa mesma tarde iria assumir como presidente. No Parlamento, ainda não havia se consubstanciado a acusação no Senado”, contaria mais tarde o presidente Uruguaio José Mujica a respeito do telefonema.
Depois da fria recepção dos líderes de ambos os partidos, Timerman e o ministro brasileiro Antônio Patriota se reuniram, finalmente, com Federico Franco. Como nas outras conversas, os chanceleres alertaram que o Paraguai ficaria isolado se o impeachment fosse levado a cargo, sendo suspenso de organismos regionais como Unasul e Mercosul. O argentino perguntou se Franco considerava justo o procedimento. “No Paraguai um vice-presidente tem três tarefas: presenciar a reunião de gabinete, actuar como nexo com o Congresso e assumir em caso de doença, morte e destituição do presidente. Vou cumprir com a Constituição paraguaia”, respondeu o vice.
“Duas horas para preparar um juízo político te parece tempo suficiente?” replicou o argentino. “Somente Deus sabe o tempo que lhe dei”.
A conversa com Franco também se encerrou sob a sombra de uma ameaça iminente de violência. Timerman prossegue: “Perguntei se caso convencêssemos Lugo a pedir licença, eles lhe dariam seis meses para preparar a defesa. Foi aí que ele disse uma frase que já havíamos escutado de outros dirigentes ‘Este governo é inviável. Aqui, a violência começa amanhã’”.

A ÚLTIMA REUNIÃO

De volta ao palácio, no início da tarde, o entra-e-sai era constante e o clima, de incredulidade. No dia anterior, Fernando Lugo já havia comunicado à nação que se submeteria ao impeachment. Domingos Laino, histórico membro do partido liberal, lembra que tentou arquitectar uma reacção mais forte ao que chama de golpe armado pelo seu próprio partido. “Eu não sou Allende”, respondeu o presidente.
Muitos defendiam a resistência, inclusive alguns sectores do exército paraguaio. Pouco antes das duas da tarde, Lugo, ainda presidente, convocou os chefes militares. Reuniram-se brevemente, o comandante do Exército, Adalberto Garcete; o comandante da Armada, Almirante Benitez Frommer; da Força Aérea, Miguel Christ Jacobs; e o chefe do gabinete militar da presidência, general Ángel Alcibiades Vallovera.
Discutiram a possibilidade de publicar um comunicado das forças armadas declarando lealdade ao comandante-em-chefe, o presidente. Depois de uma rápida discussão, a proposta foi abandonada. “Lugo falou desde o início que não ia resistir” contou à Pública o general Adalberto Garcete. No final da reunião, segundo fontes militares, o presidente decretou: “Eu sou um mártir da história”.
Os três comandantes permaneceram no palácio, aguardando a ordem de retirada – que demorou a ser dada. Enquanto estavam ali, foram procurados pelo embaixador da Venezuela, Nicolas Maduro. O encontro, que não durou mais que alguns minutos, rendeu uma investigação do Ministério Público a respeito de uma suposta tentativa do venezuelano de incitar um golpe militar, nos primeiros dias do novo governo. Com grande estardalhaço, a imprensa nacional e internacional acusou Maduro de sugerir uma sublevação militar.
Interrogados pela Fiscalía, órgão investigador do Paraguai, os comandantes do Exército e da Armada negaram; Miguel Christ Jacobs, então comandante da Força Aérea, confirmou a história. Dois meses depois, foi nomeado Comandante das Forças Armadas. Os outros dois aguardam pacientemente em suas casas: foram transferidos para a reserva pouco depois de seus depoimentos.
A possibilidade de uma reacção fosse política ou militar, foi também tema da última reunião do gabinete de Lugo, naquela tarde. Estavam todos os ministros, incluindo os liberais, os assessores jurídicos e secretários.
Segundo relatos, Lugo levantou as possibilidades que se apresentavam, ouvindo muito, no seu estilo hesitante que lhe rendera tantas críticas durante todo o governo. Lembrou que não haveria reacção internacional a uma resistência armada. Uma vez tomado posse o novo governo, seria fácil desmobilizar sectores do Exército, que teriam que se submeter ao novo comandante-em-chefe, Frederico Franco. Abatido, Lugo resignava-se. “Pela minha formação, académica espiritual sou contra todo tipo de violência. A historia política do Paraguai sempre foi violenta”, lembra ele, na terceira entrevista à Pública, dois meses depois daquela tarde. “Creio que passarei à historia como alguém que exerceu uma presidência dentro do marco pacífico, em todos os sentido, e que não incitamos nenhum tipo de violência, viesse de onde viesse”.
Outra opção seria renunciar – houve um pedido oficial da Igreja, através da Conferencia Episcopal Paraguaya, para que Lugo o fizesse, para “evitar um derramamento de sangue”. O ex-bispo se negou. Dois meses depois a Igreja pediu desculpas. “Por todo tempo, Lugo disse que não queria derramamento de sangue, que tínhamos que entregar o governo com organização”, diz a ex-ministra de Saúde, Esperanza Martinez. “Ele disse que não ia fugir, pedir asilo, que ia ficar no país e resistir por todos os meios possíveis”.
Ao final da reunião, Fernando Lugo assistiu pela televisão à votação do fim do seu governo. Quando chegou a 30 votos, o quórum necessário, manteve o silêncio sepucral. “Tinha cara de pena”, conta o fotógrafo presidencial Rafael Ursúa.
“Vimos a votação pela televisão, e quando terminou a destituição dissemos: ‘Presidente, nos vamos porque não queremos estar quando Franco assumir”, relembra o chanceler Timerman. “A Argentina oferece asilo a qualquer um que solicite”, disse.
Na praça, os manifestantes rodearam a rádio para ouvir a contagem. “As pessoas estavam abraçadas em volta da caixa de som. Contando. Até que chegaram a 30 votos… Aí acredito que começamos a canta Pátria Querida. E chorávamos.”, lembra Kátia Maria.
Em poucos minutos começaram a estourar gases lacrimogéneos “Fiquei muito impressionada, porque nunca tinha vivido isso. Uma amiga me agarrou e me puxou, senti o cheiro do gás e comecei a correr”. Na corrida, derrubaram as baias de metal, até chegarem à escadaria diante da catedral de Assunção. Ali se reuniu grande parte dos manifestantes durante as horas da noite.
As portas da catedral estavam fechadas.
Ao cair da noite, os assistentes de Lugo começaram calmamente a retirar os seus pertences do palácio. Muitos ministros já haviam partido. O ex-presidente gravara, pouco antes, um comunicado oficial no qual negava a legitimidade do juízo politico, mas deixando claro que o acataria. Federico Franco tomou posse pouco depois.
“Ver ali os ajudantes do presidente tirando as coisas, as despedidas, ver o presidente dando adeus pro pessoal do palácio, os assessores de segurança… Fumar um último cigarro aí na varanda, olhando para o Rio Paraguai… E ver, pela sala, o presidente vendo o fim pela televisão… Foi muito triste”, relembra o ex-ministro da Função Pública, José Tomas Sanchez.
Na praça, a multidão se dissipava. Dois meses depois, em entrevista à Pública, a voz o chefe do gabinete da presidência, Lopes Perito, tido como homem forte de Lugo, ainda fraquejava lembrança. “As pessoas esperavam que o presidente não aceitasse… E depois veio a desilusão quando dissemos a essas pessoas ali na praça, vocês têm que se retirar porque o presidente vai entregar o governo”, diz.
“Eu me senti muito mal. Parecia tudo muito absurdo, que se perdesse o governo desta maneira tão miserável. Senti que falhamos com as pessoas”.
Às seis da tarde, relembra Timerman, os chanceleres saíram em direcção ao aeroporto. “Nos abraçamos e fomos embora. Havia pouca gente na rua”.
Amanhã: Curuguaty, a matança que não se quer investigar. A Pública visitou os camponeses acusados de armar um emboscada contra a polícia no conflito que deu origem ao impeachment. As falhas da investigação. Os cartuchos que sumiram do relatório oficial. As suspeitas de execuções e as prisões arbitrárias de camponeses.

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