sábado, 27 de outubro de 2012

Ter muitos órgãos de informação significa liberdade de imprensa?

Ter muitos órgãos de informação significa liberdade de imprensa?
 
Lázaro MabundaLázaro Mabunda
Uma sociedade só é independente quando é capaz de emitir a sua opinião sem ameaça de isolamento, de marginalização nem de perder emprego por ter opiniões e convicções diferentes das de quem governa.

 
O mundo celebrou, ontem, o Dia da Liberdade de Imprensa. Trata-se de um dia não só de celebrações simbólicas, mas também de auto-reflexão a que qualquer jornalista se deve sujeitar sobre o papel que tem desempenhado para a sociedade, sobretudo na vigia das actividades do Governo: o que o Governo faz ou deixa de fazer. Para os estudantes do jornalismo que, eventualmente, sonham em ser jornalistas, é fundamental que também reflictam sobre o que eles têm para oferecer a esta mesma sociedade. Acima de tudo, devem fazer exame de consciência em torno de uma “sociedade ideal” que poderá resultar do seu trabalho. É preciso ter em conta que a sociedade moçambicana não precisa de jornalistas que venham adicionar ao número de reprodutores dos políticos. Precisa é de novos jornalistas com nova mentalidade e novas maneiras de fazer jornalismo. Jornalistas que vigiam as actividades do governo. Poderão perguntar: porquê vigiar as actividades do Governo?
 
É que o povo é que os “nomeou” por voto, ou melhor, indicou-os para dirigir o seu destino. Ora, o eleitor tem a obrigação de obrigar o eleito a prestem contas a ele. Se não querem prestar contas, então, nós jornalistas devemos assumir o nosso papel, fiscalizá-los à força. Cabe-nos a missão de, não só trazer as verdades que os nossos dirigentes escondem, como também alertar o povo de que tem o direito de exigir a quem o elegeu a apresentação das contas. É este tipo de jornalismo incómodo que falta em Moçambique.
Zygmunt Bauman, um sociólogo polaco, dizia, a dada altura, que uma sociedade, para ser independente, precisa de indivíduos independentes, e estes só podem ser livres numa sociedade autónoma. Isto é, os indivíduos são livres quando podem instituir uma sociedade que promova sua liberdade. Trata-se do poder de “influenciar as condições da própria existência, dar um significado para o ‘bem comum’ e fazer as instituições sociais se adequarem a esse significado. Por isso, “a reflexão crítica é a essência de toda autêntica política (enquanto distinta do meramente ‘político’, isto é, do que está ligado ao exercício do poder”.
Uma sociedade só é independente quando é capaz de emitir a sua opinião sem ameaça de isolamento, de marginalização nem de perder emprego por ter opiniões e convicções diferentes das de quem governa. Mas para termos essa “sociedade ideal”, precisamos de jornalistas ideais, não comprometidos com o sistema (elites político-económicas) nem com outras organizações com interesses pouco claros.
Todos nós sonhamos com uma sociedade como a americana, em termos de liberdade e do desenvolvimento. No entanto, esquecemos que aquela sociedade foi criada com o esforço dos próprios americanos, com um contributo incondicional da imprensa. Martin Luther King, Malcolm X, entre outros, são símbolos dessa luta pela igualdade e liberdade. Hoje, a imprensa americana, sobretudo os “Watch Dogs (cães de vigiar/guarda)”, funcionam mais do que os próprios órgãos da justiça e o parlamento, como os disciplinadores dos governantes e de todos os agentes do Estado, e até do cidadão comum. Aliás, a imprensa americana funciona como “dinamite” de escândalos que alimentam os órgãos da justiça, as organizações não governamentais e o senado americano.
É verdade que, tal como escreveu Carlos Eduardo Lins da Silva, no seu livro “O Adiantado da hora: a influência americana sobre o jornalismo brasileiro”, uma coisa é o jornalismo americano, que já sabe que ele e a instituição que representa gozam de prestígio e poder de facto na sociedade em que vivem. Talvez por isso se sintam seguros em relação às críticas.
“No Brasil, ao contrário, o profissional e a maioria de veículos, embora percebidos como poderosos e influentes pela população, na verdade, sabem como é limitado o seu campo de acção real. Por isso, as críticas fazem-nos sentirem-se ameaçados. A insegurança, em qualquer situação, pode levar o indivíduo à arrogância. Além disso, há todo o passado cultural diferente dos dois povos com relação à crítica. No geral, o americano recebe a crítica como contribuição, o brasileiro como ofensa e indicação de inimizade.”
Quando se tem uma missão soberana por se cumprir e uma causa por se defender, não se pode recear as consequências que advirão disso. No mesmo livro, Carlos da Silva diz algo muito importante que se enquadra no cenário do jornalismo moçambicano: “a questão das relações pessoais acima das institucionais é importante, em pelo menos outro aspecto ético no Brasil: elas prejudicam a qualidade do papel de “cão de guarda do governo” (Watchdog role) que a imprensa deve desempenhar, de acordo com o modelo americano. Não é só o facto de que muitos proprietários de meios de comunicação têm relações com os poderosos da República e muitas vezes lhes devem favores, e, por isso, acabam orientando a linha editorial do seu veículo para uma política de apoio ao Governo ou pelo menos de crítica suave apenas sobre questões tópicas.”
E mais, escreve: “Do lado dos funcionários, a lógica é a mesma, em todos os níveis da redacção. Pode-se explicar com os rendimentos baixos que muitos repórteres recebem e que os obrigam, de um modo ou de outro, a depender de empregos paralelos obtidos junto do Governo. Mas também não é desprezível a quantidade de jornalistas que deixam de exercer o seu papel de investigador e de vigia às actividades governamentais porque têm amigos no governo ou porque concordam ideologicamente com a linha política do Governo”.
Em mensagem enviada ontem aos jornalistas, o Presidente da República, Armando Guebuza, escreveu que: “Com muito agrado, continuamos a registar o aumento do número de órgãos de comunicação social em mais distritos desta Pérola do Índico e expansão dos existentes para mais espaços geográficos do nosso solo pátrio. Estes desenvolvimentos aproximam a imprensa do cidadão”. A questão é: a liberdade de imprensa mede-se pelo surgimento de novos órgãos? De quem são esses órgãos? Que assuntos difundem? Estas são questões para o debate.
Com base numa análise simples, pode concluir-se que o aumento de número de órgãos de informação, para o caso de Moçambique, não pode ser indicador de medição da liberdade de imprensa, porque, creio, mais de 90% desses órgãos pertencem ou são financiados por capitais provenientes de elites políticas (ligadas ao partido no poder), o que retira a sua independência. Por outro lado, pode concluir-se que esses órgãos de informação publicam informações semelhantes, ou seja, divulgação das realizações governamentais. Quase não há investigação.
Temos de continuar a questionar a nossa história, irritando os seus fazedores. Temos de continuar a questionar os critérios da redistribuição da riqueza e do enriquecimento fácil. Temos, também, que continuar a dizer que o governo não está a cumprir com a promessa de combater a pobreza, o burocratismo, o “deixa-andar”, a corrupção, as desigualdades sociais, entre outros. Bom jornalista é aquele que incomoda, comporta-se como um “bulldog” (watchdog) e não como “lapdog”, cão que qualquer um abraça.

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