"Todas nós, mulheres, há muito fomos enterradas.
Seu pai me enterrou; sua avó,
sua bisavó, todas fomos enterradas vivas."
Mia Couto – A Confissão da Leoa
Um mundo
dividido e hierarquizado em gênero. Quem nasce mulher, nasce menos. Padece de um
aborto cultural antes mesmo de desentranhar-se da mãe. Essa é a África do livro
“A Confissão da Leoa”, do escritor moçambicano Mia Couto, publicado, no Brasil,
pela Companhia das Letras.
Meditar acerca
da posição social da mulher “num outro mundo chamado Moçambique” é tarefa que,
no primeiro momento, nos dá a falsa e confortável ideia de que as problemáticas
das narrativas do romance, ficcionais e de uma cultura que se nos aparenta
fabulosa, não nos dizem respeito. Contudo, em todos os lugares do mundo existem
mulheres a observarem-se “enterradas vivas”, ante a violência física e moral de
que são vítimas.
A história se
passa em Kulumani, uma aldeia situada ao Norte de Moçambique, África, em que,
afirma o autor “tudo está treinado para morder. As aves abocanham os céus, os
ramos rasgam as nuvens, a chuva morde a terra, os mortos usam os dentes para se
vingarem do destino.”
Nessa terra
encontraremos leões a devorarem pessoas. Seriam leões nascidos de leoas ou leões
fabricados por feitiçaria? - Indaga-se. Um caçador é chamado. Sua chegada faz um
coração estremecer. É o coração de Mariamar, a que tivera, há tempos,
conquistado.
Rituais permeiam o livro. Mulheres são submetidas a um infinito de violências morais de submissão e silêncios, somados à ideia de que jamais pertencerão a si mesmas, sendo meras figurantes e jamais protagonistas de seu destino. Agressões físicas como mutilações de órgãos sexuais e estupro são recorrentes em Kulumani.
O que me apavora
é que Kulumani se transporta no espaço e pousa impunimente nos relatórios e
estatísticas criminais brasileiros. Também aqui, nascer mulher é quase uma
condenação à violência doméstica, onde o soco ou o grito ou o xingamento se
alternam com a carícia ou até mesmo com o sexo forçado. Onde a mulher,
enclausurada em seu ego massacrado, se sente de algum modo culpada e merecedora
da agressão recebida.
Não há que se
confundir a luta pela igualdade dos sexos com bandeira sexista. Qualquer
violência praticada contra um ser humano está acima do sexismo: merece um
discurso humanitário, um apelo à justiça, em nome da dignidade da espécie. É por
isso que as leoas rugem.
Essas mulheres,
leoas moçambicanas, brasileiras ou de qualquer outra nacionalidade, guardam
segredos inconfessáveis. Por vez, por descuido ou por um ato de autorrespeito,
confessam, professam sua força. Eis “A Confissão da Leoa”.
NARA RÚBIA
RIBEIRO
5 comentários:
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