sábado, 20 de outubro de 2012

Rostos da pobreza urbana

 

Por Rui Lamarques on Wednesday, 27 October 2010 at 10:09 ·
Às sextas-feiras, a cidade de Maputo, sobretudo a sua baixa, não cabe na oficiosa imagem feita de uma zona comercial e de prestação de serviços. A peregrinação matinal de uma massa compacta de mendigos que se move da periferia para a zona de cimento transforma-a num centro de caridade, onde se pede esmola e um pouco de tudo para o consumo imediato. A deficiência física, congénita ou adquirida, e a idade, menor ou avançada, são os principais argumentos geralmente usados para consubstanciar a precariedade sócio-económica exposta aos olhos dos bons samaritanos.

Texto: Emídio Beúla

Os relatos aqui reproduzidos são uma pequena amostra de um penoso circuito de sobrevivência que vai arrastando centenas de sujeitos. Quando o fim-de-semana espreita, crianças, jovens, adultos e velhos de ambos os sexos, desdobram-se em pequenos grupos e “expõem-se” à compaixão dos proprietários de estabelecimentos comerciais e transeuntes. Uma rede de solidariedade medra-se no complexo mundo do informal que se institui na sombra do Estado.

Os rostos do fenómeno

São 9 horas da manhã de 25 de Julho. Cacilda Magaia, idade incógnita, tronco curvado, tenta transpor a 25 de Setembro. Debalde. O tráfego é intenso em todas as quatro faixas que compõem a avenida. Inverte o sentido de marcha para o Mercado Central. Mãos trémulas, à direita alavanca o corpo numa bengala e à esquerda segura um saco plástico, depósito de ofertas. “Não tenho onde ir, vivo à custa da boa vontade de pessoas”, resume a sua tristeza bem estampada no rosto enrugado. Viúva e mãe de três filhos, todos casados, Magaia não sabe dizer sobre o paradeiro dos mesmos. Vegeta nas artérias da baixa da cidade e pernoita onde as circunstâncias o ditarem.
Bem diferente de Cacilda Magaia, pelo menos fisicamente, está Paulina Machel, 56 anos, corpo recto e “cheio de vida”. Ela é casada com Carlos Alberto, mãe de cinco filhos, um dos quais a fazer 11ª classe. A única semelhança com Cacilda é que ela também permeia o mundo da mendicidade. E isso fere-lhe o orgulho, reconhece. O que é que a senhora faz? “Nada”. Não tem machamba, não vende… “Não”, advinha-se-lhe do acenar negativo.
Residente no bairro de Ndlavela, município da Matola, Paulina Machel percorre a baixa da cidade às sextas-feiras, empurrando a carrinha de rodas sobre a qual sobrevive Carlitos, seu neto de 20 anos. Uma má formação congénita deixou-lhe com pernas estropiadas o que impossibilita o jovem de se locomover. “Peço esmola para alimentá-lo. A mãe faleceu e desconhecemos o paradeiro do pai”, justifica a peregrinação. De avenida a avenida, de passeio a passeio, Carlitos, com uma pasta a tiracolo onde colecciona o dinheiro ofertado, vai sendo exposto à compaixão dos transeuntes. Mas é nas portas de estabelecimentos comerciais e mesquitas onde é mantido por longo tempo e onde recebe mais ofertas.
“Nos dias de sorte conseguimos entre 100 a 150 meticais, mais produtos de primeira necessidade”, disse Paulina Machel.
Enquanto ela conversava com o SAVANA, Samito, seu neto de 15 anos, aluno da 3ª classe, recebia um quilograma de arroz das mãos de um trabalhador da loja onde Carlitos estava frontalmente estacionado, ali na esquina entre as avenidas Vladimir Lenine e Ho Chi Min. “Ele ajuda-me a empurrar a carrinha”, indicou a fonte.
Paulina Machel assegurou que se tivesse dinheiro não iria expor o neto nas artérias da cidade. “Muitas pessoas dão-lhe ajuda. Há uma loja onde mensalmente nos oferecem 300 meticais para custear as despesas de Carlitos”, disse. Mas a fonte reclama que o actual custo de vida quase anula toda a ajuda. “O arroz é que está muito caro”, lamenta.

“Quero estudar”

Numa breve troca de palavras com Samito, soubemos que Carlitos gosta de cantar. Parco em palavras, Carlitos sintetizou o seu sonho nos seguintes termos: “quero estudar”. Um sonho que, apesar de coincidir com um dos direitos fundamentais proclamados na Constituição da República (Artigo 88, Direito à Educação), está sendo difícil realizar-se. Segundo Paulina Machel, nas escolas públicas normais Carlitos foi rejeitado sob o argumento de que a invulgaridade da sua deficiência iria desviar a atenção dos outros alunos. Normais, claro.
“Aconselharam-nos a procurar escolas especiais. Fomos a uma que fica na Julius Nyerere, não fomos aceites”, conta com amargura.

Atacar em grupo
Na Avenida Fernão Magalhães, um grupo de cinco mulheres cerca uma loja. Delas faz parte Rita Armando, 33 anos e mãe de quatro filhos. Com aspecto físico salutar, Rita Armando mendiga porque “a vida está difícil”.
Dona de uma machamba na Matola Rio, onde reside, esta senhora disse que o marido lhe abandonou e sozinha não aguenta alimentar os filhos. Com os últimos gémeos de seis meses nas costas, repositório de
ofertas em punho, roupas sujas e semblante cheio de incertezas do manhã, Rita Armando vai comovendo os bons samaritanos. Como tantas outras pessoas o fazem, com ou sem argumentos.
Na esquina entre as avenidas Guerra Popular e Zedequias Manganhela, um senhor que aparenta ter acima de 50 anos, posicionado à entrada de um estabelecimento comercial, vai distribuindo 10 meticais por cada mendigo que por ali passar. Tentámos, sem sucesso, arrancar-lhe algumas palavras.
Mas Alberto Tembe, 60 anos, reformado da empresa pública Caminhos-de-Ferro de Moçambique, revela-nos o segredo de só às sextas-feiras: “Foram os indianos que nos aconselharam para virmos às sextas-feiras sempre que precisarmos de algo para comer”.
Infelizmente, os donos de estabelecimentos comerciais não aceitam falar sobre o fenómeno onde são também actores.

Produto das relações sociais

O sociólogo Carlos Serra coordenou, no ano 2001, uma pesquisa sobre a “Precariedade Social em Moçambique” na qual se concluiu que a mendicidade é produto das dificuldades de sobrevivência num mundo
altamente competitivo. Sete anos depois, Serra não vê nada de novo no fenómeno, fora a sua “ampliação”, sobretudo na cidade de Maputo.
Aos olhos deste Professor da UEM e investigador do Centro de Estudos Africanos da mesma universidade, levantar-se-ão vozes dizendo que “estamos em presença de parasitismo social ou de uma romaria de preguiçosos”. Mas, alerta, a mendicidade não é produto da natureza, ela resulta das relações sociais e aparece como uma espécie de “tributo que se cobra ao bem-estar, uma espécie de renda que as pessoas com dificuldades sócio-económicas entendem explorar”. A fonte entende que a sua massificação está ligada aos “desajustes familiares”, sobretudo nas famílias com maior agregado e que não conseguem se suster.
“Pedir esmola transforma-se num emprego” onde a exposição de deficiência física compensa.
Classifica o acto de pedir esmola como um circuito de sobrevivência à qual não se recorre por mero prazer, mas porque falham as possibilidades de acesso permanente aos recursos vitais, incluindo o emprego.
Mas “é preciso estudar a reprodução social das famílias na periferia de Maputo”.

Fenómeno tipicamente urbano

Já o Professor Manuel Mendes de Araújo, especialista em geografia urbana, indicou que a mendicidade pode ser um indicador interessante em estudos de pobreza urbana. Apesar de ainda não haver estudado a mendicidade nas cidades, o Professor da UEM e investigador do Centro de Estudos da População afirma que não se trata de um fenómeno novo nem exclusivo à cidade de Maputo. “É um fenómeno tipicamente urbano e resultante de situações concretas de pobreza”, disse, recordando que já noutros períodos da história da cidade de Maputo se verificava o fenómeno, talvez em dimensões menores.
Quanto à sua organização, o geógrafo apontou que o acto de pedir não é feito ao acaso e de forma espontânea. Aventa a hipótese de serem os proprietários de estabelecimentos comerciais que tentam dar ordem ao acto de pedir e os próprios pobres vão-se comunicando. “Isso evita perturbar o seu negócio e dar um mau aspecto ao próprio estabelecimento comercial”, disse, na tentativa de justificar a peregrinação só às sextas-feiras.
A fonte indicou haver motivações religiosas e culturais por parte de alguns comerciantes, sobretudo os de origem asiática, que “ajudam” os mendigos.

Da miragem da cidade

Questionado sobre as razões que levam muita gente a emigrar do campo para a cidade onde os mecanismos de sobrevivência são mais limitados, Manuel de Araújo disse que, apesar de assertivas, “as duas coisas não são antagónicas”.
Indicou que nas zonas rurais, apesar de a pobreza ser maior, existem outras estratégias para minimizá-la que não seja o acto de mendigar. “As pessoas podem produzir e têm acesso a outros produtos até naturais”.
Em contrapartida, prossegue, nas áreas urbanas, apesar de continuarem a ter hábitos rurais, restam-lhes apenas duas saídas: uma legal e pacífica, que é pedir, e outra ilegal e não pacífica, que é roubar.
E porquê que as pessoas continuam a emigrar para a cidade? “Porque a cidade sempre foi, não só em Moçambique, mas em todo o mundo, uma aspiração no consciente das pessoas”. Araújo acrescentou que se parte do pressuposto de que as condições da cidade são melhores que as existentes no campo. “Não quer dizer que se tenha a certeza de que vão ter acesso a essas condições, mas elas existem”, precisou.

Da vergonha de regressar

Mas porque a realidade é outra, a pessoa que emigrou para a cidade dificilmente regressa ao campo na miséria, porque no imaginário popular isso representa um fracasso. A pessoa que não conseguiu “vencer na cidade” tem vergonha de regressar ao campo pobre e prefere manter-se na cidade em condições muito piores.
“É uma questão que está para além do racional e do lógico”, disse, precisando que “a miragem da cidade só termina com o fomento das zonas rurais”.
Aos olhos daquele académico, é mais difícil combater a pobreza urbana, não só pelas suas especificidades, mas também “por as cidades estarem sempre a receber gente que emigra do campo sem capital”.
De acordo com a fonte, algumas pessoas, antes de se aportarem na cidade, procuram alguém capaz de os inserir nas redes de sobrevivência, incluindo de mendigos.

Texto publicado na versão impressa do SAVANA no dia 08/08/2008
Posto o texto aqui porque é actualíssimo, mas também para homenagear um camarada de trincheiras Félix Filipe da Esperança.

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