sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O nosso conceito de paz é precário

Editorial
 
Maputo (Canalmoz) - Completamos e celebramos esta quinta-feira exactamente 20 anos após a assinatura dos Acordos Geral de Paz (AGP) assinados entre Joaquim Chissano, em representação da Frelimo, e Afonso Dhlakama, pelo lado da Renamo.
O dia 04 de Outubro de 1992 ficará para sempre nas nossas memórias pelas mais positivas razões. Os dois grupos beligerantes decidiram pôr fim ao derramamento de sangue de inocentes e a destruição de uma República para se sentarem à mesma mesa e aproximar e resolverem as suas diferenças pela via racional. Este feito será por todos nós recordado até o prevalecer dos tempos.
Cremos nós que celebramos o “04 de Outubro” não pela data em si, porque poderia ter sido em outra, mas por aquilo que deixou de acontecer a partir daquela data. A 04 de Outubro de 1992 colocámos fim aos episódios mais horrendos e da vulgarização da espécie humana. A guerra colocou o País de rastos e em situação lastimável no que os direitos humanos concernem.
Mas ao celebrarmos esta paz, o fazemos na mesma proporção que ainda estão activadas nas nossas memórias, as razões que levaram parte dos moçambicanos a pegarem em armas e exigirem aquilo que consideram ser seus direitos que estavam a ser usurpados. Dito em outras palavras, foi radicalismo ideológico que nos levou à guerra. Radicalismo por parte de quem se julgava dono dos moçambicanos e de quem pegou, primeiro, em armas para resgatar a sua dignidade enquanto cidadão.
O radicalismo usa a intolerância como combustível para olear a sua máquina de acção. E o egocentrismo é o motor dessa mesma máquina. Quando alcançamos a paz o maior desafio que nos foi colocado em Roma foi o da manutenção dessa paz e que servíssemos de exemplo de tolerância e de cultura de diálogo para outros povos.
Pensamos nós que de uns tempos para cá, mais do que celebrarmos, é preciso olharmos para o conceito de paz e tentar ajustá-lo ao nosso modus vivendi. Derivado do latim Pacem = Absentia Belli, a paz, refere-se à ausência de violência ou guerra. Estudiosos definem a paz como um estado de calma ou tranquilidade, uma ausência de perturbações ou agitação. No plano pessoal, paz designa um estado de espírito isento de ira, desconfiança e de um modo geral todos os sentimentos negativos. Assim, ela é desejada por cada pessoa para si próprio e, eventualmente, para os outros, ao ponto de se ter tornado uma frequente saudação (que a paz esteja contigo) e um objectivo de vida.
Entre os filósofos Emmanuel Kant é mais elucidativo no seu conceito de “Paz Eterna” inspirado nos ideais da Revolução Francesa. Para ele, a paz designa um estado obtido através de uma “república” única, capaz de representar as aspirações naturalmente pacíficas de todos os indivíduos.
Ora, que tipo de paz vivem os moçambicanos desde 1992? É consensual que a paz é mais do que o calar das armas, tal como é óbvio que a paz não se garante com discursos em cada “04 de Outubro” pelas praças deste vasto Moçambique. Tal como dissemos acima, a paz nacional implica para além do estado de calma, a representação e a concretização das aspirações de todos os indivíduos.
Sendo assim, não podemos falar de paz num País onde as pessoas continuam a morrer por falta de hospitais. Não há paz num País onde mulheres grávidas morrem penduradas numa bicicleta à procura de um hospital que dista a mais 20 quilómetros da sua aldeia que também não tem serviço de transporte. É fácil falar de paz a partir da Sommershield ou da Polana, porque o conforto e a tranquilidade das nossas mansões não nos permitem ver e perceber o além dos nossos quintais. Quando saímos de Mercedes Benz, para recebermos nossos filhos no Aeroporto Internacional de Maputo, que voltam de férias de Paris (onde estudam), esquecemo-nos de que há filhos de outros moçambicanos como nós que desistem da escola por causa de fome. Ignoramos que depois dos nossos quintais não há paz. Há crianças a comer frutos silvestres para não morrerem de fome em Gaza. O exemplo repete-se um pouco por todos os distritos do País.
É para nós um exercício absolutamente demagógico falar de paz num País onde em plena capital as pessoas são transportadas como gado em carrinhas de caixa aberta, expostas a todo o tipo de perigo. Não há paz se os que devem resolver o problema dos transportes preferem burlar o Estado vendendo sucatas de autocarros e obrigando o Estado a pagá-los como se de novos se tratasse. Não está em paz, no nosso modesto entender, um País onde empresários e seus familiares são sequestrados sem que o Estado consiga encontrar e provar os culpados.
Portanto, convém a alguns falar de paz nos actuais moldes porque, enquanto nos entretêm com estes discursos, vão avolumando os seus castelos financeiros. Mas pensamos nós que não podemos falar de paz numa República onde uns usam o Estado contra os outros. Não há paz onde as pessoas não podem dizer o que pensam, porque lhe pode ser tirado o emprego.
Queremos aqui, neste espaço chamar a atenção que é esta privação imposta que um grupo de moçambicanos no passado decidiu pegar em armas para se libertar dos anteriores libertadores. A nós, quer nos parecer que os libertadores voltaram a alimentar os seus apetites egocêntricos, encurralando os outros para a segunda categoria. É indisfarçável que há moçambicanos de primeira categoria e os de segunda que serve para pagar impostos e de matéria-prima para garantir ajuda financeira. Está claro que os moçambicanos de primeira e os de segunda não têm o mesmo conceito de paz. Que paz pode ter um indivíduo que vê sua mãe, esposa ou irmã, a morrer pendurada numa bicicleta a caminho do hospital num País onde o ministro tem mais de 10 viaturas do Estado, parqueadas em casa para seus empregados e sobrinhos? Que paz vivem os jovens moçambicanos ao saberem que a filha de quem lhes devia criar condições de emprego é, sem ter trabalhado (na verdadeira acepção do termo) uma única vez, uma das mais ricas do mundo? Que tipo de paz estamos a criar? Os acontecimentos de 5 de Fevereiro de 2008, 01 e 02 de Setembro de 2010, mostraram que a nossa paz está afundada no castelo da mentira e que a qualquer altura os moçambicanos estão dispostos a resgatar a sua dignidade. Não são discursos feitos em gabinete por gente lunática que vão manter a paz, mas o compromisso de construção de uma sociedade justa onde todos têm as mesmas oportunidades em igualdade de circunstâncias. (Canal de Moçambique/Canalmoz)

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