quinta-feira, 25 de outubro de 2012

IMPLEMENTANDO O PROTOCOLO DA SADC SOBRE ARMAS DE FOGO - CAPÍTULO 3


A Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC)1adoptou
um protocolo para controlar o fluxo de armas de pequeno porte e armas
ligeiras (SALW) na região, o Protocolo da SADC sobre o Controle de Armas
de Fogo, Munições e outros Materiais Relacionados. O principal objectivo
deste Protocolo é impedir, combater e irradicar o fabrico ilegal de armas de
fogo, munições e outros materiais relacionados, e regulamentar a
importação e exportação legais de armas de pequeno porte e armas
ligeiras.
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Moçambique foi signatário do Protocolo da SADC em Agosto de 2001 e
ratificou o acordo em Setembro de 2002. A implementação do Protocolo
requer, no entanto, a acção de vários departamentos do governo e a
coordenação das medidas que são adoptadas: a legislação nacional sobre
SALW tem que ser revista, adaptada aos requerimentos regionais e
aprovada; novas instituições podem ter que ser criadas enquanto outras
necessitarão de ser desenvolvidas; mecanismos de coordenação têm que
ser estabelecidos e é necessária a capacidade para executar todas estas
acções.
A fim de coordenar e controlar a implementação do Protocolo, o governo
de Moçambique (GdM) criou a COPRECAL – Comissão para a Prevenção
e Controle de Armas Ligeiras.
Não é a primeira vez que Moçambique estabelece uma organização multi-institucional – as actividades de desminagem foram coordenadas em
Moçambique, primeiro pela Comissão Nacional de Desminagem(CND) e
depois pelo Instituto Nacional de Desminagem (IND). Há inúmeras lições
a serem aprendidas do trabalho destas instituições, tanto para os doadores
como para o GdM: A corrupção e rivalidade institucional levaram à
paralisia da CND, enquanto as contribuições dos doadores deram origem
ao crescimento assimétrico do IND em relação a outros departamentos do
governo. Equipamento moderno permite ao IND produzir, por exemplo,
mapas exactos das zonas prioritárias para desminagem; no entanto,
ministérios e agências governamentais não têm a capacidade para coordenar
as actividades dos doadores de modo a permitir-lhes determinar com
exactidão quais as áreas, das sugeridas pelo IND, a serem escolhidas. Como
resultado a desminagem é, ainda hoje, feita de uma forma casual.
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COPRECAL
A COPRECAL, presentemente a ser montada sob a alçada do Ministério do
Interior, será a organização estabelecida para supervisar a implementação
da legislação nacional, acordos nacionais e regionais, coordenação de
pesquisa e disseminação de informação. Está planeada para incluir
membros de várias instituições governamentais – Ministério do Interior,
Ministério da Defesa, Ministério da Justiça, Ministério dos Negócios
Estrangeiros, representantes das Forças Armadas, Serviços Aduaneiros e
Migração, uma instituição académica: ISRI – Instituto Superior de Relações
Internacionais, através do seu CEEI – Centro de Estudos Estratégicos
Internacionais, e duas organizações da sociedade civil: PROPAZ e
Conselho Cristão de Moçambique (CCM) através do seu projecto TAE –
Transformação das Armas em Enxadas.Cada instituição seleccionará os seus
representantes para o Comité.
A Necessidade de uma Visão Comum
Membros da COPRECAL pariciparam num workshop, em Setembro de 2003,
para avaliar a situação corrente em Moçambique no que respeita à questão
das armas de pequeno porte.4Dado o número de instituições envolvidas, o
objectivo principal do encontro foi o de reunir as diferentes partes
interessadas e avaliar a capacidade das diferentes instituições para o
objectivo comum do controle de armas de pequeno porte. No entanto,
durante a preparação do encontro, tornou-se claro que diferentes instituições
tinham ideias diferentes sobre qual era o objectivo comum. Para além disto,
os direitos estatutários da COPRECAL estão ainda a ser discutidos em
Conselho de Ministros e nenhum dos participantes tinha uma ideia clara
sobre o papel ou funções da COPRECAL.
Cedo se tornou claro que a falta de uma visão para o sector da segurança
em Moçambique representava um constrangimento importante para o
controle e prevenção da proliferação de armas ligeiras. Duplicação de
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responsabilidades, falta de definição sobre as atribuições das diferentes
instituições, pequena corrupção generalizada e falta de clareza no que
respeita às atribuições e competência da COPRECAL foram identificados
como sendo obstáculos importantes para a definição de planos de acção e
medidas para implementação. Os participantes questionaram a lógica de
investir fundos de doadores na destruição de armas ligeiras e em medidas
para controlar a sua proliferação, sem um investimento igual no
desenvolvimento da capacidade de instituições no sector da segurança com
o objectivo de fazer a gestão das armas armazenadas no país.
Os participantes também expressaram as suas preocupações no respeitante
ao funcionamento da COPRECAL, como um comité composto por
representantes de diferentes instituições, com o que se podia considerar
agendas rivais e capacidades diferentes. Os participantes pareceram
concordar que a COPRECAL devia ser sujeita a um exercício para definição
da sua visão e missão antes de ser iniciada qualquer outra acção. Espera-se
que tal exercício permita à equipa ultrapassar a competição institucional e
assim evitar a paralisia que atormentou o agora extinto CND. Mais ainda:
uma visão clara devia garantir o enquadramento para o estabelecimento de
prioridades e o desenvolvimento de um modo de aflorar questões comuns a
nível nacional.
Durante este encontro em forma de workshop, os participantes discutiram o
Protocolo da SADC detalhadamente e verificaram o seguinte:
• Medidas Legislativas– A legislação existente em Moçambique sobre
SALW define armas de pequeno porte para a posse de civis como
qualquer arma de calibre até 9mm. Na prática isto significa que um civil
pode importar legalmente para Moçambique uma metralhadora. A lei
também não tem em consideração armas de fabrico caseiro, apesar de
ter cláusulas respeitantes à produção de munições caseiras. A revisão das
medidas legislativas está presentemente a ser debatida no Minisério da
Justiça, com a participação de vários departamentos do governo,
nomeadamente a polícia, serviços aduaneiros e o Ministério do Interior.
• Capacidade Operacional – os participantes admitiram que a falta de
capacidade podia tornar-se uma importante limitação à implementação
do Protocolo da SADC. Enquanto a cooperação em termos de exercícios
para desenvolvimento de capacidades e missões conjuntas não
constituiam problema (apesar de por vezes o problema da língua impedir
os mais qualificados de participarem), o estabelecimento de bases de
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dados e sistemas de comunicação podiam ser muito problemáticos. Os
sistemas de registo existentes não são exactos e, por muito que os
Moçambicanos desejassem dispor de um sistema computerizado, este
também pode provar-se inadequado, dada a falta de infraestruturas
básicas em muitas partes do país.
• Serviços Aduaneiros – Moçambique tem 2.700 Km de costa e cerca de
4.212Km de fronteiras terrestres, das quais a polícia apenas patrulha
717Km. Dizer que as fronteiras de Moçambique são porosas é uma
afirmação por defeito – o número de postos de fronteira não é apenas
insuficiente como a maior parte dos que existem mal estão a funcionar.
Os serviços alfandegários têm tido grande apoio por parte de doadores e
os melhoramentos são visíveis e reconhecidos. Mas os Serviços
Alfandegários não têm os recursos para realizar o trabalho completo –
têm apenas um detector de metais, não têm cães nem veículos suficientes.
A maior parte dos postos de fronteira são demasiado remotos e as
comunicações são difíceis. Grandes áreas de fronteiras terrestres estão por
patrulhar. O mesmo é verdadeiro para a vasta costa Moçambicana. O
tráfego de combóios é o mais difícil de controlar, segundo um funcionário
das alfândegas. Os funcionários das alfândegas sabem que necessitam de
mais e melhor equipamento a fim de serem mais eficientes, mas, mais
uma vez se diz, fazem o melhor que podem com aquilo de que dispõem.
Presentemente, os Serviços Aduaneiros de Moçambique estão a ser
pressionados pela África do Sul para manterem o posto de fronteira em
Inkomati aberto 24 horas por dia.. Por muito que apreciem a ideia, não
dispõem dos meios para fazê-lo.
• Armas de fogo propriedade do estado e dos civis – Os membros da
COPRECAL manifestaram-se preocupados com o modo como os registos
são mantidos presentemente. O sistema é manual e demasiado vulnerável
à ‘interferência humana’. Há uma necessidade urgente de tratar desta
parte vital do Protocolo. No entanto, a implementação de um novo
sistema de registo de armas devia ser incorporado num enquadramento
mais vasto da reforma do sector da segurança. A COPRECAL também
salientou a necessidade de saber exactamente a quantidade e os tipos de
armas presentemente guardadas em armazéns legais. Quanto à destruição
de armas de fogo, os membros COPRECAL têm que estudar os diferentes
métodos de destruição e apresentar recomendações. As iniciativas de
desarmamento em curso deviam continuar a ser apoiadas e deviam,
também,dar os seus contributos à COPRECAL a fim de permitir a criação
de um quadro exacto da situação.
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• Entrega voluntária de armas de fogo, educação e consciencialização do
público –Os membros da COPRECAL gostariam de ver um maior número
de iniciativas de consciencialização das comunidades no que respeita as
SALW. A polícia tem feito algumas campanhas nas comunidades,
particularmente nas áreas em que estão em experiências com um
programa piloto de policiamente comunitário. Iniciativas da sociedade
civil são bem acolhidas mas o GdM devia também ser um importante
participante.
Conclusões
No final do encontro, os participantes tinham identificado, para serem
tratadas pela COPRECAL, as seguintess questões:
A necessidade de realizar um exercício para definição da visão:  os
participantes reconheceram a necessidade da COPRECAL definir uma visão,
criando assim um enquadramento para acções futuras. Os membros da
COPRECAL salientaram a importância de se evitar a situação que flagelou a
CND e a necessidade de os membros representando as diferentes instituições
trabalharem como uma equipa. Apesar de a COPRECAL ser suposta de
coordenar e controlar a imlementação do Protocolo da SADC, os seus
membros têm consciência de que outras instituições, não envolvidas
directamente, terão que ser contactadas e admitidas no seio da equipa.
A recolha de informação: nenhum dos participantes pareceu ter
conhecimento sobre quem ficou com com os registos do armamento
entregue ao governo pela ONUMOZ. Alguns dos participantes salientaram,
no entanto, o mau estado de conservação da maior parte do equipamento
que foi entregue. Os membros da COPRECAL insistem que é importante
recolher informação respeitante a armas de pequeno porte existentes nas
forças de segurança – e não só aquelas que foram entregues pela
ONUMOZ.Como entidade suposta de centralizar e disseminar informação,
os membros da COPRECAL sentem que deviam ter acesso a tal
documentação.
Destruição de armas: os participantes salientaram a necessidade de
destruição do equipamento obsoleto, presentemente ainda armazenado em
paióis. Exise a percpção de que as forças armadas estão com excesso de
armamento mas ninguém parece saber a dimensão exacta do problema.
Uma vez que seja recolhida a informação sobre o armazenamento de armas
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legais, será necessária uma avaliação desse equipamento em termos de tipo
e quantidades. Esta informação permitirá a compilação de uma lista do
equipamento a ser destruído e o respectivo custo. Esta lista pode então ser
incluída numa proposta para obtenção de fundos.
Armas ligeiras e a criminalidade: os participantes reconheceram a
percepção geral de que as armas ligeiras utilizadas presentemente em crimes
vêm de armazéns sob a responsabilidade das forças de segurança e não de
esconderijos de armas. Contudo, questionaram a dimensão do problema. Os
participantes sugeriram a realização de um projecto de investigação sobre a
origem das armas ligeiras presentemente utilizadas em crimes, quer para
eliminar ou confirmar esta percepção como, também, para determinar a
dimensão do problema.
Marcação de armas ligeiras:os participantes salientaram a importância de
ser estabelecido um sistema de marcação de armas específico para as
diferentes forças de segurança. Para fazer isto, a COPRECAL necessita saber
se existe a necessária vontade política para implementar uma tal medida; se
a vontade política existir, quais são os custos. Medidas deviam ser tomadas
para impedir o uso de tal sistema de marcação por parte de terceiras pessoas.
A destruição de armas contra a inclusão em paióis legais:os
participantes exigiram que a destruição de armas em boas condições fosse
questionada num contexto, como o de Moçambique, onde o governo possui
armazéns de armamento obsoleto que é necessário substituir. Mas também
reconheceram que tal medida não seria popular, quer entre os doadores
quer no seio da sociedade civil, particularmente num meio onde as forças de
segurança são consideradas como incapazes de gerir os armamentos sob a
sua responsabilidade. A investigação proposta sobre a origem das armas de
pequeno porte presentemente utilizadas em crimes pode identificar
problemas com exactidão, mas outras questões tais como a manutenção de
registos e a corrupção, necessitam igualmente de ser tratadas.
Manutenção de registos: todas as forças de segurança existentes têm em
vigor um sistema para proceder ao registo de armamentos sob a sua
responsabilidade. Este sistema, no entanto, é muito vulnerável a erros e à
corrupção uma vez que depende de livros escriturados manualmente. Assim,
a investigação sobre a origem das armas ligeiras utilizadas na prática de
crimes, devia ser complementada pela avaliação do sistema vigente de
manutenção de registos e por propostas para a sua melhoria, tendo em mente
o desenvolvimento assimétrico das infraestruturas em Moçambique.
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Transparência:os participantes consideraram que o estado presente das
forças de segurança pode constituir um importante obstáculo para a reforma
e para o apoio de doadores a qualquer iniciativa de reforma. Salientaram a
necessidade de mais adestramento nas medidas de transparência e de mais
apoio na implementação de tais medidas. Reconhecem que isto será um
processo lento e controverso que, contudo, não pode ser rejeitado como
sendo “impossível de resolver”.
Manutenção dos armamentos existentes em armazém: os armamentos
existentes necessitam de ser avaliados, mas os participantes consideram
igualmente importante a avaliação das condições em que estes armamentos
estão sendo presentemente armazenados, devido ao perigo que podem
eventualmente representar para a população. A COPRECAL devia fazer um
inventário dos armazéns existentes, as condições em que se encontram,
quais os mehoramentos necessários e os respectivos custos.
Envolvimento do sector privado:as iniciativas de desarmamento em curso
(Operação Rachel e o projecto TAE) dependem bastante dos recursos e
capacidade Sul Africanos e do apoio de doadores externos. Os participantes
admitiram que, presentmente, a imagem negativa das forças armadas pode
causar limitações ao financiamento directo por parte de doadores e ao apoio
directo por parte do sector privado. No entanto, também concordaram que a
COPRECAL devia fazer esforços no sentido de engajar tanto os doadores
como o sector privado em tais iniciativas. Os participantes sentiram ainda
que Moçambique tem que mostrar sinais inequívocos de vontade de
reformar, de forma a poder procurar apoio.
Medidas específicas contra a proliferação de armas de pequeno porte:
os participantes, embora acolham bem a COPRECAL e apoiem a prevenção
e controle da proliferação de armas de pequeno porte, questionam a eficácia
de lidar apenas com aquilo que eles consideram como “uma parte de um
problema maior”. Os modos de aflorar a questão das armas ligeiras deviam
ser integrados no enquadramento de uma reforma mais generalizada do
sector da segurança em Moçambique.
Legislação nacional: a legislação existente foi considerada desactualizada
e com grande necessidade de ser revista. Existe um grupo no Ministério da
Justiça que está a preparar uma proposta para uma nova lei a ser apresentada
ao parlamento. Este grupo está também a estudar o Protocolo da SADC com
o objectivo de incorporar na proposta as modificações que possam
acomodar este acordo internacional.
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Cooperação internacional: os participantes afirmaram que as
contrapartidas internacionais nem sempre mostram ser compreensivas em
relação à presente situação em Moçambique. Embora querendo obedecer
aos artigos do Protocolo da SADC, os participantes salientaram a
necessidade de maior desenvolvimento nas instituições nacionais. Os
participantes também mencionaram a necessidade da troca de lições
aprendidas e experiências com os países da região que estão mais avançados
na implementação do Protocolo da SADC.
A feição característica mais evidente, resultante deste encontro, foi a grande
devoção dos participantes às suas instituições e ao seu país. Eles foram
honestos e claros quando discutiam situações e identificavam problemas.
Mostraram-se frustrados quando os seus pedidos enfrentam suspeitas por
parte dos doadores, mas também reconhecem que existem razões para os
doadores e agências internacionais se mostrarem suspeitas. Acima de tudo,
desejam ser ouvidos e apoiados.
Notas
1.  Originalmente conhecida como Conferência de Coordenação do
Desenvolvimento da África Austral (SADCC), a organização foi formada
em Lusaka, Zâmbia, em 1 de Abril de 1980, a seguir à adopção da
Declaração de Lusaka. A Declaração e Tratado estabelecendo a
Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) foi assinada
na Cimeira dos Chefes de Estado e Governo, em 17 de Agosto de 1992,
em Windhoek, Namíbia. O Tratado compromete os membros a cooperar
em política, diplomacia, relacões internacionais, paz e segurança.
Presentemente, os Estados Membros da SADC são Angola, Botsuana,
República Democrática do Congo, Lesoto, Maláwi, Maurícias,
Moçambique, Namíbia, Seichelles, África do Sul, Suazilândia, Tanzânia,
Zâmbia e Zimbabué.
2. N Stott, “O Protocolo da SADC sobre o controle de armas de fogo,
munições e outros materiais relacionados”, ISS Paper 83, Novembro de
2003.
Entrevista pessoal com um antigo funcionário do projecto
IDRC/Programa de Acção de Minas.
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O encontro foi financiado pelos governos da Holanda, Noruega, Suécia e
Suíça como parte das actividades do programa de gestão de armas do ISS
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