sábado, 6 de outubro de 2012

"Cabo" Anselmo: traidor ou provocador?

 

Está para ser julgado na Comissão Especial de Anistia do Ministério da Justiça, nos próximos dias, o pedido (Processo nº 2004.01.42025) de reparação econômica por perseguição política, durante a ditadura civil-militar instaurada em 1964, de José Anselm




Ainda reina em setores da esquerda, do jornalismo e da historiografia política nacional uma dúvida quanto a se o “Cabo” Anselmo foi um traidor dos grupos de esquerda ou simplesmente, desde o início de sua atividade política, um agente provocador infiltrado a serviço das forças golpistas de 1º de abril de 1964. Coloco “Cabo”, assim entre aspas, para lembrar que Anselmo jamais foi cabo. É notório que ele era apenas marinheiro de primeira classe. Não se sabe ao certo porque foi apelidado de “cabo”.

O debate sobre a questão, porém, recebeu luz especial por meio de um depoimento pessoal contido em um artigo simples, cujo objetivo geral era defender o Governo Lula, do escritor Fernando Soares Campos, intitulado Cabo Anselmo e os Neogolpistas, publicado no site espanhol La Insignia em 22.07.2005. O autor, pernambucano atualmente radicado no Rio de Janeiro, serviu à Marinha de Guerra a partir de janeiro de 1969. Seu artigo, veiculado em site alternativo estrangeiro, quase nada repercutiu, muito embora trouxesse algo que faltava à análise da trajetória de Anselmo: uma visão interna da força naval sobre o personagem, o insight militar, não da oficialidade, mas sim dos subalternos, daqueles a quem Anselmo supostamente liderara.


Desde sua entrada na Marinha, em janeiro de 1969 frise-se, portanto bem antes do que se propaga como o momento da traição de Anselmo, que teria ocorrido no primeiro semestre de 1971, Fernando ouvia dos colegas que este sempre fora um farsante infiltrado a serviço das forças reacionárias da direita: “E era disso que o pessoal se lembrava. Alguns se referiam a ele imprimindo um tom de desprezo; outros falavam de seus liderados tratando-os com jocosidades, considerando-os elementos ingênuos, inocentes úteis; todos, porém, concordavam que o cabo Anselmo não passava de um oportunista, um indivíduo sem convicções ideológicas, tratando-se tão-somente de um pau-mandado a serviço das forças de repressão, um elemento sem vontade própria, movido por interesses pessoais menores.”

Anselmo, à frente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB) realizava agitação no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, distribuía panfletos nas unidades militares (acreditem!) do maior complexo de instituições da Marinha de Guerra do Brasil, “sem ser importunado, sem sofrer represália ou qualquer tentativa de obstrução de sua panfletagem - exceto alguns poucos casos em que a ‘repressão’ e ‘punição’ serviram apenas para lhe conferir aspectos de agente do ‘comunismo ateu’. As eventuais punições que sofrera com base no regulamento interno tinham como propósito disfarçar as relações de servilismo do cabo Anselmo com a oficialidade do CENIMAR. Ele sofreu duas ‘punições de prisão rigorosa’ por 10 dias em cada aplicação da pena. De acordo com o regulamento interno da Marinha, com mais uma punição dessas, ele seria automaticamente desligado do serviço militar (praticamente uma expulsão). E isso sempre foi fácil aplicar. Qualquer tenente que tivesse interesse em demitir um marinheiro perseguia seu desafeto e, com pouca sutileza, encontrava motivos para enquadrá-lo e enviá-lo para audiência de julgamento de sua infração, arbitrada pelo comandante da unidade.” (FSC) Anselmo, contudo, foi preservado para dar continuidade à sua farsa.

A própria AMFNB tinha surgido com finalidade meramente assistencial e recreativa. “A entidade era dirigida por disciplinados marinheiros, os quais, a exemplo do próprio cabo Anselmo, eram, em geral, elementos protegidos de certos oficiais graduados, do contrário não teriam oportunidade de criar qualquer núcleo de defesa dos próprios direitos dentro das instalações militares (a AMFNB não tinha sede própria, funcionava nas dependências do Centro de Instrução Almirante Wandenkolk – CIAW).” (FSC) Jamais poderia ter um papel insurgente se não contasse com conivência da oficialidade superior. O comprometimento de Anselmo com a reação golpista pode ser confirmada por suas duas fugas suspeitas da prisão após o Golpe.

A íntegra do artigo de Fernando Campos pode ser lida em http://www.lainsignia.org/2005/julio/ibe_074.htm .

Há que admitir que Anselmo conseguiu durante parte de sua trajetória política, com habilidade, enganar muita gente boa, não somente seus pares marinheiros e fuzileiros navais, políticos democratas e militantes da luta clandestina contra o regime ditatorial, mas até mesmo, ao que parece, o governo cubano. Ele e seus mentores valeram-se das circunstâncias específicas da época. Resta saber a soldo especificamente de que organismo repressivo e de informações ele concretamente atuou inicialmente: do CENIMAR, da CIA ou de alguma articulação clandestina dos golpistas ainda desconhecida? Nas cercanias do Golpe antidemocrático é de se supor que não só a imensa maioria da oficialidade militar brasileira e os círculos reacionários, mas até mesmo o grosso dos serviços de informação nacionais ignoravam seu papel oculto de provocador. Foi “plantado”, naquele momento, para uma tarefa específica: acenar com a ameaça da indisciplina e da quebra da hierarquia militar para a parte da oficialidade vacilante em aderir ao golpe em marcha. As próprias circunstâncias da assembléia por ele liderada no Automóvel Clube do Brasil às vésperas do Golpe são cercadas de suspeitas. Depois, ele tornou-se um trunfo importante para as forças repressivas ligadas ao novo regime.

É importante, portanto, que a Comissão de Anistia tenha isto em conta quando do julgamento do processo em que Anselmo reivindica reparação do Estado por danos materiais e profissionais durante o regime pós-1964. Que danos? Ele sempre foi um subproduto beneficiário das forças que instalaram o regime.

*Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco

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