sexta-feira, 26 de outubro de 2012

As aparições de Fátima e a filosofia portuguesa (ii)

 

As aparições de Fátima e a filosofia portuguesa (ii)

Escrito por Pinharanda Gomes


«O poeta do Marão, referindo-se à religião dos portugueses falou em «Deus sem intermediários». Este não constitui, a nosso ver, o fundamento de um certo anti-clericalismo, anotado por vários escritores e testemunhado pelos tempos fora. A religião dos portugueses, pelo contrário, como dissemos, é mediata, através do mundo e da saudade, propensa a intercessores, disposta a reconhecer e criar santos. Aceita naturalmente o clero mas não lhe suporta o poder temporal como classe nem os possíveis abusos; de modo algum lhe concede o exclusivo da Divindade, porque a intui sem custo e a sente por igual sua - tão sua como do Clero. Daí a exigência em relação aos sacerdotes, enquanto sacerdotes, e a liberdade que sempre tomou de os criticar. Tal atitude não envolve, as mais das vezes, heterodoxia.

O nosso povo é muito sensível aos exemplos vivos da virtude, especialmente nos aspectos de caridade e de justiça - equivalente a amor; logo toma por medianeiros os seus autores, não lhes regateia qualificação de santos, perdoando-lhes humanais fraquezas; nem espera que os canonizem.

A devoção a Santa Maria - a Virgem e a Mãe, comovem-no por igual - e gradações riquíssimas, pluriformes de naturalismo e ternura (Senhoras do Ó, do Leite, de África, de Entre-as-Vinhas, da Silva, etc...) como de invocação angustiosa (dos Remédios, das Dores, das Angústias, da Expectação, do Pranto, da Consolação, da Esperança, da Ajuda, do Socorro, da Piedade, dos Aflitos, dos Mártires), de excelsa virtude e glória (da Pureza, da Purificação, das Neves - mesmo onde não há neve - da Conceição, da Assumpção, dos Altos Céus, da Luz, da Graça, dos Anjos), na linha mítica da sublimação do feminino, constitui um dos traços mais salientes de uma religião entranhada em sentimento. A mensageira ideal, segundo a lei humana do coração, à qual o próprio Deus feito menino obedeceu, outra não pode ser.

Quanto ao caso de Fátima, aceite ou não o factor sobrenatural - de qualquer ângulo sobressai, exigindo reflexão, a espantosa dinâmica realidade espiritual ali surgida colectivamente e que tanto se prende à psique do povo português. Em que medida foi esta influente, ou decisiva, para criar e impor à hierarquia eclesiástica e ao mundo inteiro tamanha polarização de fervor religioso, em que a fé humilde se exalta pela mais contagiosa esperança do apelo à Divindade? De que modo foi influente ou decisiva em sublinhar a intercessão mariana?

Por ela um árido ermo de azinheiras se transfigura em sede sentimental do Catolicismo, em coração de Cristandade, - «altar do Mundo», que é templo sem tecto nem paredes, ora lago de lume, ora nuvem de aves brancas. Dissolução ecuménica da Igreja que deixou de se dizer romana? Pentecostes a congregar de novo os que rodeiam a Virgem - ontem assembleia de apóstolos, agora ajuntamento de nações?

O português esquiva-se à rigidez ordenancista e à exteriorização. («A muita cera queima a Igreja»). Com vivência religiosa intensa ao longo de toda a história contrasta o número pequeno de Santos que houve em Portugal e assim também a escassez de padres. Poderá objectar-se que esta é recente, pois outrora isso não acontecia; há que descontar porém na antiga superabundância de frades, os efeitos de uma pressão económica e social em meio desafecto ao labor utilitário que atirava para a vida eclesiástica muitas pessoas falhas de vocação. Aliás sempre dependemos em certa escala de padres estrangeiros para as nossas missões. Não me recordo em que livro li, registada, a explicação de um galego para o caso: «Somos humanos em demasia...».

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).


«A par da meditação dos mistérios da vida de Jesus, é notável a preferência que o povo português manifesta pelo culto mariológico. A Imaculada Conceição, a Anunciação e a Assumpção, isto é, os três mistérios diferentes segundo os quais correlacionamos a Mãe com o Filho, tem seu equivalente na incredulidade e cepticismo com que os portugueses recebem as doutrinas que afirmam a irredutibilidade e contradição entre o que chamam matéria e o que chamam espírito. A Mãe de Deus está para nós, não como salvadora, mas como advogada e, na própria missionação portuguesa perpassa o traço azul e branco do seu manto protector e benéfico. Efectivamente, há dois processos de missionação: um a que , poderemos chamar dialéctico, opondo o ser ao não ser e que se propaga pela contradição ou controvérsia, substituindo a religião considerada falsa por aquela que se considera verdadeira. Este, o processo dos espanhóis com sua iconoclastia bárbara e violenta. O outro que poderemos chamar de missionação categorial, consiste em respeitar toda a verdade da religião indígena, alterando apenas aquelas categorias que os impossibilita de serem integrados na catolicidade. Assim as religiões nativas passam a ser membros de um grande todo, dentro do qual se dá a transfusão de um sangue purificador - a alma é sangue - no processo mariológico e cristão da redenção da humanidade. Esta foi a típica missionação dos portugueses, embora houvesse dela afastamentos de lamentáveis excepções.

A missão do homem é ajudar a evolução da natureza, frase que Sampaio Bruno atribui a Novalis. O pensamento deste modo expresso é linha de acção no grande poeta católico cujas comunhões intermitentes se exprimem nos admiráveis poemas que são a «Oração à Luz» e a «Oração ao Pão».

Grande distância separa o verbo vezar do verbo orar. Segundo o nosso pensamento, os sacramentos interiorizam-se na oração. Queremos dizer que os ritos existem e válidos se nos afiguram na medida em que operam a transformação do homem; na distinção do objecto e do sujeito vai toda a distância que pusemos em nossa anterior afirmação, distinção que se anula somente apenas no homem que supera o processo imaginífico, porque ascendeu à imaculada concepção. Efectivamente admitimos a mácula na palavra e no pensar, razão porque nem todas as línguas são sagradas. Mas toda a natureza aspira, na perpetuidade que lhe foi concedida pelo processo de geração e corrupção, à eternidade esplendorosa. Guerra Junqueiro, poeta-profeta, autor dos «Simples» que na «Pátria» nos revela o ideal português, vaticinou em suas obras o aparecimento de Nossa Senhora em Fátima aos três pastores. É certo que nos sujeitamos à crítica dos que não vêem senão a letra na obra do vate. Mas a maternidade de Nossa Senhora é afirmada na, por assim dizer, jesuitificação dos três pastores e na designação do destino desta pátria eleita, cujos representantes, nesse momento, eram três crianças».

Francisco Sottomayor («O Ideal Português perante a Religião»).


«Em «o ideal português perante a Religião», Francisco Sottomayor frisou demoradamente a específica atitude portuguesa perante a religião católica, onde sobressai, fundamentalmente, a meditação dos mistérios cristológicos, por um lado, por outro a predilecção pelas formas do culto mariano. Este, como uma constante ou tendência portuguesa, para o processo alquímico da sublimação da matéria, teve, desde a proclamação do dogma da Imaculada Conceição, até às aparições de Fátima, em nossos dias, uma importância primordial no sentimento religioso português. Para nós, sempre a Virgem Maria é Mãe e ainda em Fátima os pastores prefiguram a Jesus. Por outro lado, entre os portugueses não houve heresiarcas, nem nenhum cisma religioso teve origem em Portugal».

Síntese conclusiva do Colóquio sobre o tema «O que é o Ideal Português», realizado na Casa da Imprensa, de 20 de Junho a 25 de Julho de 1962.


As Profecias de Junqueiro e de Pascoaes

A imagem de Guerra Junqueiro continua na luz crepuscular, ou na penumbra. Quem o acompanhou testemunha que, "nos últimos dias da vida, Junqueiro amava a penumbra" (12), e nela permanece ainda. Uma penumbra projectada pela recusa que a sua obra mereceu a alguns, esses mesmos que professavam já o que ele procurava (13) "e reforçada pelo seu voluntário afastamento cultural e social, como se desejasse esconder-se na sombra de Jesus, que dramaticamente interpelara. O que sabemos do poema A Velhice do Padre Eterno (1885), talvez proceda mais do daguerreótipo crítico ainda vigente, do que de uma nova leitura a uma luz paidêutica. Há quem a interprete como uma viva e faústica interpelação a Cristo e, por concomitância, ao Pai. Nem toda a profecia é júbilo, nem todo o profeta geme, nem toda a admonição chora. Alguma contesta e protesta. Como Leonardo tão bem inteligiu, e como está ostensivo em toda a obra do poeta, Junqueiro é uma alma tão religiosa que pode pecar por excesso. Um excesso que transborda uma congestão de negatividade: o mal é tão presente, o mundo é tão amoral, que a responsabilidade é trespassada dos imperfeitos cristãos para o próprio Cristo. Em nenhum outro texto humano Cristo terá sido tão interpelado, e interpelado segundo a palavra violenta e abjurgatória. Mas quem abjurga se não ama? Se Junqueiro fosse indiferente a Cristo, porque haveria de criar e de escrever o poema? Este, o poema, é um protesto de amor ferido, mas a religiosidade prenhe de messianismo - de Buda a Cristo, como em Sampaio Bruno - permanece intacta no peito do poeta e do pensador da unidade do ser e da superação da natureza pelo Espírito, como provou na Oração ao Pão e na Oração à Luz, verdadeiras orações cristocósmicas e eucarísticas, ocultas sob um prodigioso panegírico ao altar da natureza (14).

Dez são as categorias possíveis para se formular a definição. Junqueiro define A Velhice do Padre Eterno. Exegetas há que a definem tomando como categorias as influências ideológicas da sua época, a partir dos factores complementares ou acidentais, positivismo, evolucionismo, materialismo, naturalismo. Junqueiro define a obra a partir da primeira categoria, a da essência. Ele não diz que A Velhice é um acto de racionalismo evolucionista. Diz, atesta, professa que o poema é uma "expressão de cristianismo exarcebado, ou exasperado" (15). Só isto. Expressão de um perfectismo que chega ao ponto de abjurgar, não os membros do corpo, mas a cabeça, Cristo. Aliás, Junqueiro é uma alma orante. "Toda a alma do poeta, apesar das irregularidades e das vicissitudes, se escala na difícil gradação que vai dos problemas humanos aos segredos naturais e dos segredos naturais aos mistérios divinos" (16) tudo procurando explicar, sobretudo as limitações da Matéria, à luz do divino (17), recorrendo à transposição das formas litúrgico-nomenclaturais da cultura católica para o seu ideal da cidade terrena, como se verifica na admirável mensagem do poeta aos soldados que partiam, em 1917, para a guerra em França (18).

No caso vertente, não se cura de inquirir do catolicismo de Junqueiro. E, no entanto, também se cura disso, em perplexivo paradoxo. Ao apresentar as suas teses sobre "o ideal português perante a religião", que melhor se intitularia "o ideal português perante a religião católica", Francisco Sottomayor, porventura o mais ortodoxo dos católicos que partilhavam, nos meados do século XX, da tertúlia de Álvaro Ribeiro e de José Marinho, afirmou: "Guerra Junqueiro, poeta-profeta, (...) vaticinou em suas obras o aparecimento de Nossa Senhora em Fátima aos três pastores". E justifica-se: "É certo que nos sujeitamos à crítica dos que não vêem senão a letra na obra do vate. Mas a maternidade de Nossa Senhora é afirmada na, por assim, dizer, jesuitificação dos três pastorinhos e na designação desta pátria eleita, cujos representantes, nesse momento, eram três crianças" (19).

Esta nótula é complexa. Em primeiro lugar, exara o futuro de uma exegese que decorre de um diálogo hermenêutico com Álvaro Ribeiro; em segundo lugar, responde às objecções de Álvaro pelo facto de a Senhora ser iconografada sozinha, sem o filho; em terceiro lugar, o autor introduz o termo jesuitificação, para dizer que, naquele instante aparicional, Jesus não viera, e que o seu lugar fora ocupado pelos Pastorinhos, eles mesmos tornados Jesus. Quanto a texto escrito em que Sottomayor haja inteligido a profecia, claro que não o revelou, mas presumimos que ele sejadeduzido do contexto geral da obra religiosa de Junqueiro, e do ponto de vista literal, do episódio do sonho do Condestável na cena XXI do poema Pátria: "Já o mundo a meus olhos se adelgaça!.../ Montes, fraguedos, tudo se evapora.../ sonho... sombra vã que passa./ Quase liberto já!... não tarda a hora... / Sorri-me a Virgem!... como vem brilhante!.../ Deus! quanta luz!... que mar de luz! que aurora..." (20).

O mote da "Senhora mais brilhante do que o sol" não carece de Junqueiro para se formular; mas o achado estilístico acontece no seu poema muitos anos antes das confissões, declarações e imputações dos Pastorinhos acerca do que lhes foi dado ver e do que julgaram ter visto. Ou ouvida, que é muito mais importante. Hajamos em vista que Junqueiro navega muito mais no oceano da Teologia Fundamental e da Teologia Moral, deduzindo aquela desta, de modo que reinstitui, não as teses, mas as aflições, as agonias do arcaísmo priscilianista: Deus é a Bondade, mas Satã é a Maldade. Satã é criatura criada pelo mesmo que criou o Bem. Logo, Satã é o mundo, o corpo de Deus mundanal, o pecado. Só por ele está perdido. E só Deus o pode salvar. É necessário violentar o céu para que Satã seja salvo.

Há muita gente que tem a presunção de que os homens precisam de ajudar o Espírito Santo. Que, no acender das luzes, o Espírito tem a luz, mas que os homens devem levar a lucerna. Para que o Espírito lhes dê a luz. Assim como se a inteligência do Espírito só fosse possível mediante a cooperação da humana vontade... mas ninguém sabe o que diz quando diz isto. Depois do pecado original o homem é totalmente indigente. Da sua vontade nada depende. Tudo depende da inteligência do Espírito. A única coisa que se pede aos homens é para abrir as portas, nada mais: "Se hoje ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações" (21). Presumir que o Espírito actua por impulso humano é presunção. Já foi dada a recompensa. Junqueiro estava muitíssimo ciente deste facto, e de outros. Apresenta-se-nos como um cristão rebelado, perante uma paixão que, no ciclo da história do tempo, parece ter sido inútil, louca. Como S. Paulo sentira em alguns dos seus contemporâneos. Para quê? Sim, para quê?

A lição já fora dada por Leonardo Coimbra, ao ensinar como Junqueiro é a "voz profética e amorosa das falas de Nun'Álvares, pensador-poeta das grandes ansiedades de infinito espalhadas pelos mundos" (22). A geração do "57", a mais próxima de Leonardo, de Álvaro e de Marinho, assumiu Junqueiro como profeta do brilho da Senhora.

Pascoaes aceitou o milagre de Lourdes sem rebuço. Quando o invocou já tinham decorrido mais de seis decénios sobre as aparições a Bernadette de Soubirous, na margem esquerda do rio Gave, enquanto apenas um lustro era passado sobre os alegados fenómenos da Cova da Iria. A invocação ocorre no contexto de uma apologia do amor fraterno, da Caridade, aduzida como filha do sofrimento e da pobreza, mãe do amor, origem e fim de todas as coisas, a causa da divinização de Jesus Cristo, cuja história acha íntegra explicação na sua vinda por uma única causa: a causa do amor. A aparição de Cristo é o necessário absoluto, mas permite reaparições, não Ele mesmo, Cristo, mas mediante escolhidos que, por obras, como que o reincarnaram para memorial à humanidade. Pascoaes considerava Francisco de Assis uma "nova aparição de Cristo". Junto a S. Francisco ele evoca a "humilde e simples pastorinha" a quem apareceu "a Virgem Mãe de Deus descida das Alturas a este vale de lágrimas e dores". Pascoaes deixa a afirmação na interrogativa, mas é claro tratar-se de uma afirmação, porque logo conclui: "Bernadette é irmã de S. Francisco de Assis". O mal apaga-se perante a visão. "A crueldade, a ferocidade e o egoísmo, e todas as guerras e catástrofes diluem-se no espanto luminoso da pastorinha de Lourdes", e, por fim, "todo o sorriso inocente nuns lábios virginais é uma estrela desprendida do manto azul de Nossa Senhora" (23).

Na imagem: Vitral relativo a Bernadette de Soubirous e à Virgem de Lourdes.

Ignoramos se Pascoaes, em 1922, ano em que proferiu estes juízos, já ouvira referências aos Pastorinhos da Cova da Iria. O livro testemunhal do Padre Manuel Nunes Formigão (Visconde de Montelo), intitulado Os Episódios Maravilhosos de Fátima circulava no país desde que, em 19 de Maio de 1921, ficara impresso na Casa Veritas, da Guarda. Conhecia Pascoaes as maravilhas de Fátima? É possível que, no mínimo, ouvisse falar delas, preferindo abstenção quanto a ajuizar dos acontecimentos, mas, a esta distância, difícil seria recusar idêntica apologia à mensagem e, de modo especial, à mensagenzinha de Jacinta, lábios virginais, sorrindo em dor: "Ó Jesus, é tudo por vosso amor e pela conversão dos pecadores" (24). Um Pascoaes tão ciente do peso do mal no mundo e do pecado no coração do homem, seria capaz de recusar a Jacinta os predicados de Bernadette?

Como justificar, nesse caso, a trilogia profético-saudosista de Pascoaes?

A trilogia sacra surge em público entre 1909 e 1912, adentro do tempo literário que a melhor crítica identifica como a segunda fase do poeta (25). Pascoaes ainda espera uma visita da hermenêutica teológica, porque a sua obra de poeta é poética, sem dúvida, mas contém uma teologia in genere, algumas vezes expressa numa teologia fundamental in specie com óbvias incidências da teologia cristã, mormente a arcaica da era patrística, já com laivos de Santo Agostinho, já com veios de Prisciliano. Pascoaes é também um eidos de uma gnose, não sendo agora o momento oportuno para analisar a realidade das duas vertentes vivas da "Filosofia Portuguesa" - o leonardismo e o pascoalismo, que são faces do mesmo rosto renascentista, mas faces diversas na sua unidade fisionómica.

Revertendo à trilogia, ela é constituída pelos poemas Senhora da Noite (1909), Marânus (1911) e Regresso ao Paraíso (1912). Segundo um filósofo que de perto lidou com Pascoaes, Marânus é um texto mariano por excelência, porque nele o Marão (serra, ou montanha) é figurado como radical cósmico, como radical mítico e como radical religioso (26). O poeta transporta Belém para o Marão e suscita o paradigma do "Seio Imaculado da Virgem Maria".

Preferimos inferir que Marânus é o termo médio entre a Senhora da Noite e o Regresso ao Paraíso. Poema da visão da "Virgem Pura", aí a saudade aparece como "irmã da eternidade". Tudo se formata em aparições, como nesse longínquo poema de As Sombras: "Ah, quando o sol, mais alto que o horizonte,/ Tem a máxima força da ilusão,/ E brilha, a prumo, sobre a minha fronte,/ ...É tudo misteriosa aparição" (27). Ao modo do sol do meio dia em Fátima, o cenário está desenhado no contraste da sombra e da luz: a luz não vê, mas faz ver. A luz da luz já não é visão; é a própria luz, visão unívoca. A pastorinha Lúcia dá-nos uma imagem próxima desta visão de Pascoaes, também assumida no conceito de "visão unívoca" segundo José Marinho: "via apenas que estava na luz", "viamo-nos e sentíamo-nos pessoalmente em ela" (28).

O poema Senhora da Noite abre curso para o regresso ao paraíso. É o poema cristológico por excelência, na dor e na assunção de Maria, similada em Vénus:

"... E Vénus, para sempre, em harmonia,
Há-de viver e confundir sem riso
Com as lágrimas de Santa Maria!
E Cristo não morreu; está na cruz,
Amarrado, a sangrar, como no instante
Em que às mãos do Pai rendeu a alma
E o Céu se fez nocturno e trovejante".

O cataclismo sobrevém. E de novo a Mãe:

"E a Virgem Mãe, na sombra (Estrela d'Alva)
De luto e de joelhos? Vêde o Filho
É sempiterna aquela dor que salva".

O poema é uma aparição. Amar o mal, para o redimir é necessário. Amar a Deus e guardar o rebanho. A Mãe é saudade:

"Ó Saudade, ó saudade! Ó Virgem Mãe,
Que sobre a terra portuguesa
Conceberás, isenta de pecado,
O Cristo da esperança e da beleza" (29).

Maria é Eleonora, a filha do Sol. A medianeira de todas as graças, para se regressar ao Paraíso, o acme da perfeição e da felicidade, depois de vencida a procela do vale de lágrimas. Pascoaes anteviu, com Junqueiro, antes dos Pastorinhos, a Cova da Iria?


Notas:

(12) Moreira das Neves, O Grupo dos Cinco, Lisboa, Bertrand, 1945, p. 227.

(13) Aludimos ao Padre Senna Freitas, Autópsia da Velhice do Padre Eterno, S. Paulo, 1986, e às abjurgatórias de Antero de Figueiredo, eventualmente refutadas por Leonardo Coimbra. Cf. L. Coimbra, Guerra Junqueiro, Nova edição com nota prévia de Paulo Samuel, Porto, Lello Editores, 1996; Id., Cartas, Conferências, Discursos, Entrevistas e Bibliografia Geral, Lisboa, Fundação Lusíada, 1994.

(14) Guerra Junqueiro, Oração ao Pão. Oração à Luz. Prefácio de Pinharanda Gomes, Porto, Lello Editores, 1997. A fisionomia espiritual de Junqueiro é agora mais visível, após a notável Antologia Poética, de A. Cândido Franco, Lisboa, Guimarães Editores, 1998.

(15) Guerra Junqueiro, Prosas Dispersas, Porto, Lello&Irmão, 1922, p. 12. "A cruz verdadeira é a do Calvário, a do amor infinito e do infinito perdão. (...) Não pertence à Igreja, pertence a toda a Humanidade". Junqueiro, Horas de Combate, Porto, Lello&Irmão s.d., p. 82.

(16) Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, Lisboa, Portugália Editora, 1955, p. 176.

(17) Id., ib., p. 177.

(18) Pátria divina de Camões e de Nun'Álvares, santificado seja o vosso nome, Venha a nós o valor e a vossa glória. Seja feita a vossa vontade em nossas almas. Dai-nos em cada dia o pão imortal da vossa esperança, e perdoai, Senhora, os nossos erros. Para nos libertar de toda a fraqueza e de todo o crime, encheremos os corações do vosso amor, Amen". (Jornal República, Lisboa, 13.2.1917).

(19) Francisco Sottomayor, in O que é o Ideal Português, Lisboa, Edições Tempo, s.d. (1962), p. 114. O texto acha-se reproduzido em Francisco Sottomayor, Ensaios de Filosofia Portuguesa, Lisboa, Fundação Lusíada, 1991, pp. 103-110.

(20) Guerra Junqueiro, Pátria (1896), Nova Edição: Porto: Lello Editores, 1996. A Virgem do Sorriso sorrira a Teresinha de Lisieux em 1883. É natural que Junqueiro, em 1896, não conhecesse bem esse sorriso, só tornado público mais tarde, com o início da campanha de canonização de Teresinha pelo Carmelo de Lisieux e, sobretudo, por essa grande personalidade, sua irmã, a Madre Inês de Jesus. Cf. Pinharanda Gomes, Santa Teresinha do Menino Jesus na Devoção Portuguesa, Lisboa: Paulinas, 1998.

(21) Antífona do Ofício Divino.

(22) Leonardo Coimbra, Guerra Junqueiro, ob. cit., p. 96.

(23) Pascoaes, A Caridade, Porto, 1922. Texto in Pascoaes, O Homem Universal e outros Escritos. Fixação do texto, prefácio e notas de P. Gomes, Liv. Assírio e Alvim, Lisboa, 1993, pp. 141-153.

(24) P. Luís Gonzaga Alves da Fonseca, S.I., Nossa Senhora de Fátima, Porto: Liv. Apostolado da Imprensa, 1947, p. 229; Memórias da Irmã Lúcia, Fátima, 1990, a 1.ª Memória, acerca de Jacinta.

(25) Mário Garcia, Teixeira de Pascoaes. Contribuição para o estudo da sua personalidade e para a leitura crítica da sua obra, Braga, Faculdade de Filosofia, 1976; Jorge Coutinho, O Pensamento de Teixeira de Pascoaes, Braga, Faculdade de Filosofia, 1955. Acerca deste excelente estudo, cf. Ângelo Alves, "A Primeira Síntese Global do Pensamento Saudoso de Teixeira de Pascoaes", in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo LIII, 1997, pp. 88-94.

(26) Afonso Botelho, Saudosismo como Movimento, Braga, Faculdade de Filosofia, 1960. Compilado in Afonso Botelho, Da Saudade ao Saudosismo, Lisboa: ICALP, 1990, pp. 131-152.

(27) Teixeira de Pascoaes, "Aparições" in Sombras.

(28) Lúcia, resposta a D. José Pedro da Silva, in Sebastião Martins dos Reis, A Vidente de Fátima dialoga, Braga, 1970. Cf. Pinharanda Gomes, Teodiceia Portuguesa Contemporânea, Lisboa: Liv. Sampedro, 1975, p. 256.

(29) Teixeira de Pascoaes, As Sombras. Senhora da Noite. Marânus. Introdução de Fernando Luso Soares, Lisboa: Círculo de Leitores, 1973.

Continua

1 comentário:

Anónimo disse...

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