sexta-feira, 5 de outubro de 2012

ANGOLA - O princípio do fim da União Soviética, de José Milhazes

 

Angola_jose_milhazes_capa PREFÁCIO
O fracasso do expansionismo soviético
Os maiores acontecimentos e pensamentos
[...] são os que mais tardiamente são
compreendidos: as gerações que lhe são
contemporâneas não vivem tais
acontecimentos - sua vida passa por elas.
Aqui acontece algo como no reino das
estrelas. A luz das estrelas mais distantes é a
que mais tardiamente chega aos homens; e,
antes que chegue, o homem nega que ali -
haja estrelas.
Friedrich Nietzsche, «Para Além do Bem e do Mal Prelúdio de Uma Filosofia do Porvir».1

Todos os homens esperam sempre que aconteçam surpresas especiais. Para os estudiosos em geral a surpresa mais grata é ver surgir nos escaparates das livrarias um novo livro que se distinga pela sua qualidade e contribua decisiva­mente para o avanço e a renovação do conhecimento. O livro de José Milhazes é, sem margem para dúvidas, uma dessas incríveis surpresas. Chega, como diria Juan Villoro, escritor mexicano, qual «um raio verde numa paisagem marítima».
Realmente, o enfoque deste livro, como o próprio tí­tulo sugere, é uma tentativa, agora ensaiada pela primeira vez, de colocar em perspectiva toda uma série de questões altamente controversas (e em grande parte desconhecidas) sobre um passado ainda fechado no «armário obscuro das coisas proibidas»: o expansionismo militar soviético na Africa Austral. Mais propriamente em Angola. É certo que a safra de escritos a este respeito ainda é muito escassa. Nenhum livro, porém, foi tão longe no grau de sistematização e riqueza de in­formações como este. O autor realizou uma empresa dificílima: conseguiu até certo ponto penetrar no mundo desaparecido da documentação fechada dos arquivos russos; entrevistou vete­ranos de guerra que estiveram em Angola; entrevistou perso­nalidades dos altos escalões da política soviética; joeirou a imprensa periódica do país e mergulhou na leitura de memórias e biografias que falam da presença soviética em África. Um trabalho soberbo, não obstante as limitações decorrentes da pró­pria pesquisa.
Podia, é certo, ter sido uma empreitada de maior fôlego. Não que tenha faltado vontade ao autor. Nem sempre o guião de desejos de um estudioso se conforma com a realidade so­cial que o cerca. Ele bem tentou penetrar mais fundo nos sub­terrâneos da memória, quando muito para encontrar respostas incisivas e esclarecedoras a uma questão que continua a ser pre­texto para subjectivismos e manipulações da parte de grupos políticos e intelectuais conhecidos pelo seu anti-sovietismo: a questão da hipotética participação russa na "conspiração de Nito Alves" em 1977 para depor Agostinho Neto.
É verdade: o terreno é tortuoso, cheio de obstáculos e a aridez de informações total. O autor apenas se contentou em desenterrar duas pequenas preciosidades: a entrevista de Leo-nid Sarviro (ex-conselheiro do primeiro presidente de Angola) que saiu nas páginas de um diário bielorrusso; e as observações de Vladimir Chubin, historiador e artífice de um livro sobre Neto. Mau grado as simpatias deste último pelo líder angolano, eis o registo das suas observações que vale a pena reter:
Parece que os rumores sobre a participação soviética na «conspiração de Nito Alves» foram difundidos de propósito por determinados círculos do Ocidente e por alguns angolanos adversários da aproximação a Mos­covo. Contudo, o pretexto foi «maravilhoso»?
No mais, os arquivos permanecem inacessíveis de há uns anos a esta parte. Um dos mais importantes desses arquivos, senão o mais importante, o da KGB, que poderia fornecer dados de interesse capital, também não escapou ao selo da interdição. De novo o transformaram em sepulcro, como já havia sido antes do colapso da União Soviética.
A par disto, outras contrariedades se antepuseram no ca­minho de Milhazes: não conseguiu chegar a todas as pessoas que desejava entrevistar. As poucas com quem conversou e prestaram o seu depoimento num primeiro momento recusa-ram-se a fazê-lo uma segunda vez; e outras que declararam a sua disposição para serem ouvidas acabaram por defraudar todas as expectativas. E assim por diante. O hábito do segredo, como é manifesto, voltou a ser a chave do dia-a-dia do cidadão russo. A grande nação de Solzhenitsyn retrocedeu no túnel do tempo até aos seus piores códigos e refugiou-se num imaginá­rio de silêncio pelo qual se pretende, nas palavras do historia­dor Simon Montefiore, proteger a «Ideia, a União Soviética, o santo graal».3
É bem provável que os altos dignitários do Kremlin te­nham dificuldade em digerir o desastre simbolizado pelo curso da política externa da URSS na África negra. Inclusive no Afe­ganistão. O livro mostra claramente este aspecto: «a ideologi-zação excessiva da política externa, bem como a aposta excessiva no factor militar», tendo por pano de fundo «resquí­cios de uma ideologia "revolucionário-narcisista"»4 e por su porte estratégico de Estado pretensões imperiais. Duas ten­dências, enfim, na opinião de politólogos russos, que fun­cionaram fora dos carris do controlo político e se revelaram fortemente responsáveis pelo fracasso nacional. Na percep­ção de Karen Brutentz, antigo funcionário da Secção Inter­nacional do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética [PCUS], estas duas linhas de orientação pesaram - e muito - no processo de enfraquecimento da Rússia co­munista e no seu posterior desabamento como superpotên­cia planetária.
O presente volume oferece, em suma, uma ampla gama de matérias para quantos se ocupam ou venham a ocu-par-se da ingerência soviética em Angola e até no Golfo da Guiné. Toda a sua estrutura narrativa se ampara, do princí­pio ao fim, em fontes russas. Sendo de destacar ainda, como seu principal mérito, o facto de trazer ao conhecimento dos leitores de língua portuguesa um debate que pouco a pouco, apesar de tudo, começa a despontar no firmamento das preo­cupações da intelligentsia russa e a dar os primeiros frutos: o de saber até que ponto a intervenção em África, ditada por objectivos geopolíticos e expansionistas, respondeu efecti­vamente aos interesses globais do Estado russo e quais as causas do fracasso.
A este propósito, e sem me querer dilatar, atrever-me-ia a dizer que o sintoma mais palpável da catástrofe é o facto de os combatentes russos que passaram por Angola hoje nem se­quer serem reconhecidos como tal. E como se nunca tives­sem existido. O fenómeno em si, tratado no capítulo VII, guarda curiosamente algumas similitudes próximas com o que ocorreu na Holanda do século XVII após a perda repentina de Angola, São Tomé, Pernambuco e outras praças do Brasil. Chefes militares, conselheiros de finanças, feitores-mores e governadores, que em terras africanas e brasileiras se haviam coberto de glória, subitamente, após a derrocada, desapare­ceram dos livros e da correspondência da Companhia das índias Ocidentais «[...] para se ocultarem nos nevoeiros cin­zentos das terras baixas e frias do Mar do Norte sem deixar rasto».5 Por longas décadas as Sete Províncias Unidas vive­ram enlutadas pela vergonha.
Claro que muita coisa fica por esmiuçar. Contudo, desde logo surge uma dúvida que poderá servir de reflexão em futuros trabalhos de investigação: será que a direcção política em Moscovo alguma vez se deixou contaminar por resquícios de uma ideologia revolucionária ultrapassada ao ponto de, como asseveram antigos funcionários russos, ter querido exportar a revolução para Angola e para outros ter­ritórios africanos?
Como se sabe, a odisseia militar soviética em África arrancou na década de 60. Já então haviam sido detectados em Janeiro ou Fevereiro de 1961 os primeiros submarinos perto das águas territoriais de Angola, assim como navios de rastreio de telecomunicações dissimulados como barcos pesqueiros. Porém, nada mais do que isso. Para a URSS desse tempo o tabuleiro africano pouco significava do ponto de vista geopolítico e nem a emergência de novos Estados independentes capitalizava a sua atenção. De resto, o co­nhecimento que os políticos russos e os seus estrategas ti­nham da Africa negra e dos movimentos de libertação pouco ia além do exótico. Sirva de exemplo a confusão que se gerou no Kremlin em 1963 quando as autoridades russas se preparavam para reconhecer e apoiar o Governo Revolu­cionário de Angola no Exílio [GRAE] tutelado pela FNLA de Holden Roberto. Os russos mal distinguiam as diferenças e estirpe ideológica entre o MPLA e a FNLA, pois um e outro pareciam-lhes semelhantes e igualmente aptos a servir os desígnios estratégicos da grande potência. Seja como for, o verdadeiro interesse para eles, no «plano do confronto glo­bal com os Estados Unidos», residia então quase que exclu­sivamente no corredor estratégico do Cabo da Boa Esperança que conheciam bem, o que explica a presença tão cedo de sub­marinos devassando as águas do sul do Atlântico.
Entretanto, Nikita Khrushchov é deposto em 1964 por meio de um golpe palaciano e toda a sua política de libera­lização (assente «no fortalecimento da confiança e desen­volvimento da colaboração com todos os países» na base da «coexistência pacífica e cooperação económica»6) é posta de lado. De imediato se assiste no Kremlin ao que Draganov chama de um processo de «reestalinização progressiva». Ou seja, os novos senhores são agora Leonid Brezhnev [pri­meiro secretário do PCUS], Aleksei Kosygin [primeiro-mi-nistro], Nicolai Podgorny, Mikhail Suslov [ideólogo-mor do PCUS] e Piotr Shelest. São eles que vão impulsionar a aber­tura de um período de «transição lenta e paulatina do totali­tarismo "mal desenvolvido" [da era stalinista] para um regime pessoal típico do autoritarismo».7 Encerrava-se assim o efémero e não menos indefinido período de coexistência pacífica e não-agressão. Doravante a URSS iria apostar em novas regras do jogo no choque com o imperialismo norte-americano. A Africa, que até então estivera fora dessa grande disputa, logo iria ser alvo da cobiça dos rus­sos na conquista por novas áreas de influência. «Se os ame­ricanos estão lá e os chineses também, por que não estamos nós também?», eis como em Moscovo se terá equacionado o problema. Havia, portanto, que entrar em força no conflito para disputar pedaços de Africa com os seus reservatórios de matérias-primas e criar problemas ao projecto expansionista dos EUA e da China no continente.
É aqui, creio, que entra a figura de Fidel Castro com o seu pendor populista e paladino de revoluções violentas. Embora, no início, Moscovo se mostrasse pouco receptiva em aceitar os projectos terceiro-mundistas de Castro, com o tempo tolerou-os na condição de tais projectos não interfe­rirem nos assuntos internos dos países da América Latina. Os soviéticos estavam conscientes de que o hemisfério la-tino-americano constituía uma «zona geoestratégica pri­vada» dos Estados Unidos, conforme transparece da doutrina Monroe.8 Por isso, não valia a pena criar na região mais situações de conflito. Na memória dos dirigentes rus­sos permanecia vivo o embate de 1961 motivado pela crise dos mísseis instalados em Cuba que quase levou à deflagra­ção de uma nova guerra mundial. Pressionando o líder cu­bano a moderar os seus ímpetos e a não intervir na crise do Panamá9, nem a deixar-se tentar por lutas armadas, os so­viéticos por fim acabaram por transigir em utilizar a Africa para novas experiências revolucionárias.
Assim, sem se comprometer directamente, a URSS iria utilizar Cuba como ponta-de-lança da sua nova estratégia de expansão. A primeira área de interesse foi a costa ocidental com as suas instalações portuárias em Conakry e Freeport. A faixa litoral de Cabo Verde foi igualmente mapeada e refe­renciados os seus pontos vitais e respectivas infra-estruturas, razão por que se decidiu ajudar o grupo insurgente de Amíl car Cabral na Guiné-Bissau com homens, armas e dinheiro. O primeiro contingente cubano de apoio ao Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde [PAIGC], com­posto por instrutores, artilheiros, canhoneiros e médicos, de­sembarcou em Conakry, em 1966, para se juntar às caravanas de guerrilheiros africanos nas regiões sul e leste da Guiné-Bissau. Castro e a URSS tinham em mente, de­pois da independência do arquipélago, fazer estacionar nos seus portos a frota pesqueira cubana e as unidades navais russas. Todavia, como lembra Norberto Fuentes, jornalista cubano exilado nos Estados Unidos, a instalação mais im­portante era o promontório da Ilha do Sal, base aérea de re­serva da OTAN, «[...] 500 quilómetros a oeste do Senegal e próxima das principais rotas dos mares do sul e do norte e considerada pela CIA como "importante estação de comu­nicações" e importante base de reabastecimento de navios e aviões».10
Estava dado o primeiro passo, sem esquecer o apoio em material de guerra ministrado ao MPLA de Agostinho Neto e ao Comité de Libertação Nacional do Congo. Se-guir-se-iam outras investidas: na Guiné Equatorial, Castro obteve em 1972 facilidades de trânsito aeronaval e, sem demora, despachou para Malabo, a capital, 100 peritos mi­litares cubanos. Manobras regulares nas costas atlânticas e do Índico foram realizadas pela armada soviética entre 1968 e 1972. Quer dizer: a África iria exercer o papel de «receptáculo decisivo da logística militar nas campanhas posteriores de Angola e Etiópia». O objectivo da dupla Moscovo-Havana era apoiar os movimentos de libertação, torná-los dependentes e catapultá-los até ao poder como forma de, nas palavras de Benemelis, «privar o Ocidente de recursos e posições vitais».11
Volvo à pergunta inicial: alguma vez a União Soviética teve em mira exportar a revolução para a África? Em ne­nhum momento colhi indícios que façam pensar em tal hi­pótese. Pelo contrário: os russos depressa se deram conta de que as chamadas lutas de libertação estavam infestadas de oportunistas e «vulgares arrivistas»; a mediocridade das li­deranças guerrilheiras e as rivalidades étnicas e tribais que dilaceravam os agrupamentos independentistas saltavam aos olhos. Nos círculos políticos e militares do Kremlin, por exemplo, prevalecia desde o final dos anos 60 a ideia de que Agostinho Neto encarnava uma chefia frágil devido ao seu carácter hermético e intolerante. Longe de representar um factor de união, ele dividia as hostes e concorria para minar o frágil equilíbrio da estrutura colectiva do Movimento e gerar reacções de medo e de inércia, fatalmente causadores de fracassos contínuos. A crise sangrenta de 1973 no Leste de Angola, entre outras tantas (que culminou no fuzilamento de cinco dos melhores comandantes da guerrilha, todos ovim-bundu) é por si um testemunho eloquente. Neto foi o grande culpado dessa crise que quase arrastou o MPLApara o abismo da desintegração. E não só: os soviéticos também se aperce­beram do carácter aberrante do socialismo de Neto - um so­cialismo incerto, de vaga filiação marxista e sem nenhum conteúdo filosófico. O capítulo III deste livro reporta-se, e bem, a esta questão a propósito do I Congresso do MPLA em Dezembro de 1977, cuja orientação ideológica suscitou fortes reparos da parte da direcção soviética. Como seria possível exportar a revolução nestas condições ?

A concluir direi que a prioridade número um do ex­pansionismo russo na África Austral não foi tanto de natu­reza material, mas sobretudo de natureza política. Tal prioridade visava acima de tudo a República da África do Sul e, nesse contexto, Angola apenas cumpria a função de placa giratória de modo a permitir à URSS alargar a sua fronteira de influência ao país de Mandela. Isto mesmo me foi revelado em Budapeste nos anos 80 por um alto funcio­nário húngaro ligado ao COMECON.12
Carlos Pacheco Historiador
Rio de Janeiro, 18 de Setembro de 2009

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