segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Ainda o assassinato do José Gaspar Mascarenhas, o ‘Chico’, na Beira, em 2006

 

Jose_mascarenhasOUTRA INVESTIGAÇÃO AINDA SEM DESFECHO, E JÁ SE PASSARAM SEIS ANOS. Reproduzo aqui o texto que escrevi para um dos grupos do MSN em 2006. O ‘Chico’ Mascarenhas foi encontrado morto no dia 06 de Março de 2006. Notícia do caso pode ser vista AQUI
Respeito quem não se entregue ao ‘mainstream’, a essa corrente principal da mediania, do cinzentismo moldado pela força dos dias e da comunicação plastificada que nos rodeia, tão célere tornada mediocridade, embora possa parecer a muitos um arco-íris de tentações, sofisticação.
Não! Pelo contrário, se hoje há uma separação nítida em termos sociológicos, é entre aqueles que se deixam moldar tal como um pedaço de plasticina, e os outros, os que são capazes de superar tal mediocridade, e com todo um ritual, como algo de sagrado, apanham com ambas as mãos a Informação, e em rituais quase sagrados, como uma nova classe clerical, traçam o futuro dos dias, dão um objectivo aos pedaços de bits que nos rodeiam. Estes, não se limitam a papar o que lhe metem à frente: ouvem, lêem, analisam, dissecam, racionalizam, e preparam, manipulam nova informação para dar às massas: paparoca devidamente moldada, que ávidos, em jornais famosos, emissoras de rádio ou de TV com nome feito, todos se aprestam a devorar como se fosse uma verdade suprema.
Vem isto a propósito dos riscos – e de quem os corre – na senda da verdade, seja uma verdade fabricada ou a Verdade pura e absoluta que, aliás, cada vez menos existe e se enxerga.
‘Ele era um dos nossos’. A frase, pode ser encontrada em Le Carré (The Honourable School Boy, e outros escritos), ou em Conrad (Lord Jim). Retrata alguém que se atreve, recebe a chancela de cúmplice, num círculo quase iniciático, compartilhando sortes e objectivos. O ‘Chico’, o José Gaspar Mascarenhas, atreveu-se, era também ‘um dos nossos’. Dizem os depreciadores, em termos raciais, que ‘mulato é mecânico ou é ladrão’.
O ‘Chico’ Mascarenhas atreveu-se a desafiar cânones, mandou chavões às urtigas, e foi mais, muito mais que isso. E abraçou o risco inerente a essa coisa de moldar, processar informação, aproximar-se da verdade. Só que como uma mariposa girando em torno da apelativa mas traiçoeira chama, a labareda por vezes, num crepitar súbito, devora as asas.
Qualquer dos lados ou partido com que estivesse comprometido, isso é deveras secundário. O ideal, qualquer que fosse, de pensar e lutar por esta terra de Moçambique, o abraçar do risco, o assumir do perigo consentido, isso sim, é de louvar. Mas aqui nesta bela terra, a Verdade, procurá-la, descobri-la, proferi-la, é ainda algo de perigoso, continua, infelizmente, a ser uma provocação, um desafio ao silêncio eterno e à Morte.
Até quando terão que existir nesta terra Carlos Cardosos e Chicos, vitimados por um ou outro lado dos antigos contendores, ou tão simplesmente pela abafadora e densa teia de uma corrupção que se impregnou tão profundamente no tecido social e político moçambicano? Até quando os malabarismos com os Aníbalzinhos, capangas a soldo e protegidos?
Como um choque a notícia chegou no início do mês: ‘Deputado da Renamo assassinado na Beira’. Já mo tinham dito, à hora do almoço, na ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas). Só ao fim do dia a folhear o ‘Público’, tropecei no nome. O ‘Chico’… O Chico que fora, aqui em Lisboa, da minha delegação da Renamo, nos finais dos anos ’80. E num tropel, relembro todo um rol de recordações, as almoçaradas no ‘Cantinho do Aziz’ com os célebres frangos à zambeziana preparados pela Farida, e a conversa até às tantas, sobre Moçambique e o futuro desta terra. Uma autêntica tertúlia, com o Ascêncio de Freitas, um velhote português do Inchope, escritor, e o João da Silva Ataíde, ex-embaixador de Moçambique em Lisboa, também já ‘falecido antes do tempo’.
Tudo, frangos e conversa, regados com boas cervejolas que, para o Chico, eram mais um ‘canhonaço’: ‘Oh mais velho…!’ dizia ele por vezes, e isso era sempre uma incógnita, pois ‘velho’ era eu, estando à frente da delegação rebelde, ou era o próprio velhote Ascêncio. E debitava todo um rol de neologismos adaptados aqui à escorreita conversa da politiquice moçambicana, pois o Chico era habilidoso e macaco-velho nestas coisas, e não se cansava de apontar os que também já sabiam ‘traquetear’ – dizia ele – convenientemente nestes malabarismos da informação ou cabriolice política. Se era algo lá longe e distante, ficávamos a saber que era em ‘conamain street’. E entretanto, venha de lá mais outra rodada de canhonaços!
Nasceu em Tomar 52 anos antes. Era casado com uma médica portuguesa, a Mécia, que trabalhou em dado tempo pelos Algarves. Desbobina-me um pedação da sua vida num encontro a sós, aqui no Aziz, e noutras vezes no alto da Graça, perto da Senhora do Monte, num outro atascamento que servia de ‘sede’ a algumas maquinações e onde matávamos a sede. Conta a sua ascensão pelo SNASP – o Serviço Nacional de Segurança Popular – até ser o director máximo financeiro, a purga política e a fuga para a África do Sul, os pastores alemães abatidos depois em Maputo, e os sul-africanos a quererem empurrá-lo logo ali para a RENAMO.
Vejo toda uma série de fotos: o Chico em Sófia, Bulgária. Na Roménia, em tantos outros países e capitais para lá da ‘cortina de ferro’, em delegações da Segurança. Com a segurança e dignatários desses países. O Chico em Moscovo, na Praça Vermelha, mais malta do SNASP e KGB, e com cúpulas da FRELIMO e do PCUS, incluindo o próprio hipopótamo-senil ou dinossáurio-mor Brezhnev.
Depois, sei do documento extenso que ele e o Cipriano, outro descontente com o regime, elaboram, e que o Ascêncio está a dar letra de forma, sobre o ‘job’, o ‘serviço’, como o Chico Mascarenhas gostava de se referir ao SNASP. E que passara a Cascais, ao Evo e Ivete Fernandes. Dou uma vista de olhos pelo documento. Como o ‘job’ era um autêntico Estado dentro do Estado. A rede de instalações que controlava, clubes desportivos, associações, até os únicos cavalos de raça de Moçambique, a sua criação, era um exclusivo e monopólio do ‘job’.
Por fim, há também o ‘Chico’, que desafia o ‘job’ português, os serviços de informação civis e militares, e acho que está 110% correcto quando afirma que não têm estatuto para ombrear com os seus congéneres: CIA é CIA, Mossad é Mossad, STASI é STASI, e por aí fora… mas quem é o SIS? Quem é o DINFO? E é claro que SIS e DINFOs também não tinham o ‘Chico’ em boa conta.
Não posso deixar de agradecer ao ‘Chico’ já em finais de 1987 quando à revelia da RENAMO me alerta – estava eu já fora do movimento – sobre alguém que os sul-africanos acabam de enviar a Lisboa para fechar o meu ‘dossier’. Eliminar os riscos… Claro que o aviso pode ter duas leituras, e entronca na questão principal sobre o ‘Chico’, quem era de facto o ‘Chico’, e por que lado corria. Ou a informação era verídica, sendo o Chico Mascarenhas RENAMO de facto, tendo o cuidado de alertar. Ou, e esta hipótese arrasta-se no tempo, o Chico nunca deixou de ser de Maputo, há toda uma lenda construída, e a frase do Chico foi mais um dos factores que pesou na minha decisão em voltar a Maputo no início de 1988. Como aliás se pretendia, se de facto assim fosse. Mas isto agora, pelo menos para mim, pouco importa, nesta altura do campeonato.
Não sei, contudo, se para o ‘Chico’, José Gaspar Mascarenhas, não terá importado. Se a morte dele não é precisamente por essa causa longínqua, de 1984, quando sai de Maputo para a África do Sul, a tal purga ou abandono do SNASP. Em África, há gente pior que os elefantes, e coisas que nunca se esquecem. Ele bem afirmava que a contradição nascera em relação ao vice-ministro da Segurança, na construção dessa ‘lenda’. Se a deserção foi verídica, a FRELIMO levou tempo a apresentar a factura, mas não se esqueceu. Se foi tudo encenado, a RENAMO tratou de ‘arrumar’ a casa e criou um mártir que pode chorar com lágrimas de crocodilo.
A verdade pode até ser mais simples, como em tantos casos do género, negócios mal feitos, histórias de saias, sei lá, mas não caio na tentação de me agarrar a tais facilidades. A forma como tudo se passou denota sadismo e uma execução, algo quase ritual. Esperemos pela Verdade, com ‘V’ grande. E que também aqui não seja ela uma vítima dos inúmeros riscos que toldam e distorcem a bela visão deste país.
Paulo Oliveira – In MGM (Internet) – 28.03.2006

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